13 Dezembro 2019
A Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu é uma vasta região que abrange cerca de 1,7 milhão de hectares nos municípios de São Félix do Xingu e Altamira, no Pará. Trata-se de um tesouro ecológico que abriga vários tipos de vegetação e uma rica biodiversidade de espécies vegetais e animais. Lá também vivem grupos indígenas e comunidades tradicionais, que dependem da preservação da floresta para extrair seu sustento.
A reportagem é de Ana Ionova, publicada por Mongabay, 11-12-2019.
Criada em 2006, a área goza de um status de conservação que preserva sua biodiversidade e, ao mesmo tempo, permite o uso sustentável de seus recursos naturais. Sob esse tipo de proteção, é possível abrir algumas clareiras em uma pequena parte do território, enquanto o restante deve ser destinado à preservação ambiental.
No entanto, dados de satélite da Universidade de Maryland (UMD) mostram que a APA Triunfo do Xingu perdeu cerca de 22% de sua cobertura florestal entre 2007 e 2018. E os números preliminares de 2019 indicam que a taxa de desmatamento pode estar aumentando ainda mais. Entre janeiro e outubro, a UMD recebeu mais de meio milhão de alertas de desflorestação dentro dos limites da reserva – mais da metade somente em agosto.
Há cerca de duas décadas, a APA Triunfo do Xingu estava quase totalmente coberta de floresta. O mapa mostra a perda de vegetação de lá para cá. Fonte: GLAD/UMD, acessado através do Global Forest Watch.
Segundo fontes da região, a maior parte do desmatamento está ocorrendo sem o devido licenciamento, necessário para o desenvolvimento legal da atividade industrial na área. As mesmas fontes sustentam que trechos de floresta muito maiores do que o permitido está sendo derrubados dentro da APA.
“Oitenta por cento da área deveria ser preservada”, disse um funcionário público da região, que pediu anonimato. “Mas, na prática, não é esse o caso. Acontece o contrário. A maior parte da floresta está sendo desmatada ilegalmente. Aqui é uma terra sem lei”.
Há cerca de duas décadas, a APA Triunfo do Xingu estava quase totalmente coberta de floresta. O mapa mostra a perda de vegetação de lá para cá. Fonte: GLAD/UMD, acessado através do Global Forest Watch.
No interior da floresta, segundo Ricardo Abad, analista do Instituto Socioambiental (ISA), o aumento do desmatamento ilegal em Triunfo do Xingu faz parte de uma tendência notada em toda a Amazônia Legal brasileira, que é a invasão recorrente de pecuaristas em áreas protegidas.
“Não é só o aumento no desmatamento, mas o fato de que ele está ocorrendo dentro de áreas protegidas, que deveriam servir como um escudo para impedi-lo”, diz Abad. “O que temos visto nos últimos meses, no entando, é um movimento cada vez maior de invasões vindo de fora das áreas protegidas para dentro delas.”
Em Triunfo do Xingu, a maior parte do desmatamento recente foi impulsionada pela pecuária. São Félix do Xingu, município de cerca de 125 mil habitantes no qual estão inseridos cerca de dois terços da APA, é o maior município produtor de gado do Brasil – abriga quase 20 vezes mais reses do que pessoas. Outras áreas menores, principalmente na parte norte da APA, também sofreram com a perda de cobertura vegetal como resultado da mineração, da exploração madeireira e da ocupação de terras.
A retórica de Jair Bolsonaro parece ter desempenhado um papel determinante no aumento do desmatamento nessa região, onde o apoio ao presidente é forte. Depois das promessas de Bolsonaro de afrouxar as restrições à ocupação da Amazônia e da redução das multas por crimes ambientais, grandes e pequenos produtores agropecuários têm se sentido encorajados a avançar APA adentro com suas pastagens.
“A retórica política está incentivando crimes contra a Amazônia”, disse Ananza Mara Rabello, professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), a uma plateia reunida na Câmara Municipal de São Félix do Xingu no início de setembro. “Porque o incêndio na Amazônia não é natural.”
A localização remota de Triunfo do Xingu, entretanto, tem facilitado a derrubada de árvores com a certeza da impunidade. Embora esteja muito próxima da cidade de São Félix do Xingu, apenas do outro lado do rio, a APA é acessível apenas por via fluvial – por meio de barcos que regularmente transportam tudo o que se possa imaginar, de caminhões e motocicletas a bois e bens de consumo.
Uma vez cruzado o rio Xingu, o porto de desembarque que serve como porta de entrada informal à APA exibe um imenso outdoor que anuncia uma futura feira de gado. Dali em diante, o que se segue é uma rede de estradas de terra improvisadas se estende território adentro.
Durante a visita da reportagem, nosso caminhão com tração nas quatro rodas serpenteou durante horas por caminhos pedregosos e estreitos, até alcançar trechos de floresta recém-desmatados. Passamos por grandes áreas de mata queimadas nas últimas semanas e, bem no interior da APA, encontramos um incêndio que engolia a floresta virgem. A paisagem era pontilhada com uma ou outra fazenda ou chácara, mas, na maior parte, a área estava desabitada.
Segundo Danilo Antônio Lago, pastor da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em São Félix do Xingu, a região vem sofrendo há muito tempo com a negligência das autoridades em regular a área. “Eles [os pecuaristas] agem com impunidade porque se sentem protegidos”, afirma. “É tão remoto que as pessoas sabem que ninguém vai multá-las. Nada lhes acontecerá”.
Nos últimos meses, porém, diante da repercussão internacional aos grandes incêndios que tomaram a Amazônia este ano, autoridades governamentais se movimentaram para reprimir o desmatamento ilegal em Triunfo do Xingu. Houve operações do Ibama, da polícia ambiental estadual, do Batalhão de Infantaria de Sevla, da Força Aérea e das secretarias ambientais municipais e estaduais.
No entanto, fontes locais afirmam que as operações têm sido um esforço simbólico e paliativo, com escopo limitado para conter o desmatamento em longo prazo. Sem uma sede em São Félix do Xingu e com poucos agentes na região, o Ibama é incapaz de fazer cumprir a lei de maneira uniforme. E, embora a presença de autoridades nas últimas semanas tenha ajudado a retardar temporariamente o avanço das clareiras, o que se espera por ali é que os pecuaristas retomem seu fluxo de desmatamento com força total assim que as atenções sobre o local diminuam.
Mesmo quando as operações são realizadas, continua sendo difícil aplicar as leis ambientais e distribuir multas devido à falta generalizada de titulação de terras na região. Em alguns casos, os grandes empreendimentos agropecuários alugam terras de pequenos agricultores, tornando ainda mais complexo estabelecer que é responsável pelo desmatamento.
A invasão desenfreada sobre a APA teve um impacto profundo nas pessoas que dependem dessa área para sua subsistência. As atividades de extração de madeira, exploração de terras e mineração na parte norte de Triunfo do Xingu já começaram a exercer impacto sobre a Terra Indígena Apyterewa, que abriga o povo Parakanã, e Terra Indígena Trincheira/Bacajá, lar dos Xikrin, ambas nas imediações.
À medida que mais florestas desaparecem na região de Triunfo do Xingu, também aumenta a pressão sobre áreas indígenas situadas em áreas mais remotas da Amazônia, que até agora têm sido em grande medida protegidas do avanço das motosserras. Com o desmatamento se alastrando, retalhado a mata em fragmentos cada vez menores, ativistas de direitos humanos temem que se torne cada vez mais difícil para as comunidades dependentes da floresta sobreviverem dentro dela.
“Quando vemos a destruição da floresta, o que se vê é a destruição da capacidade dessas pessoas de continuar seu modo de vida”, diz Christian Poirier, diretor de programa da Amazon Watch. “Eles precisam ter floresta suficiente para praticar a caça e a colheita tradicionais e dar continuidade a seu estilo de vida nômade.”
Os pequenos agricultores tradicionais da região também dizem estar sentindo o impacto do desmatamento – o que, segundo eles, está causando chuvas fora de época e mais irregulares. Neste ano, os produtores da cooperativa agrícola local viram sua produção de cacau cair 45%. Enquanto isso, a produção de castanha-do-brasil, que foi a praticamente zero na safra anterior, permanece cerca de 95% menor que o normal.
“O ciclo das chuvas está mudando e isso é uma grande preocupação para nós; causa um grande impacto na cooperativa e na comunidade”, diz Raimundo Freire dos Santos, presidente da Cooperativa Alternativa Mista dos Pequenos Produtores do Alto Xingu (Camppax), qua, além de cacau e castanha, cultiva também jaborandi – usado em medicamentos e cosméticos – em sistema de agrofloresta. Os membros da cooperativa variam entre 220 e 325 famílias, incluindo povos indígenas e tradicionais.
Outra preocupação de Santos é que o desmatamento desenfreado manchará a reputação da região, dificultando a venda dos produtos no mercado. “No futuro, as pessoas não vão querer comprar cacau ou castanha daqui por causa do desmatamento”, diz Santos.
É provável que o desmatamento também tenha grande impacto na biodiversidade da região, inserida dentro do Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental – área de 28 milhões de hectares que engloba 21 terras indígenas e nove unidades de conservação contíguas.
A APA Triunfo do Xingu em particular é o lar de inúmeras espécies de plantas e animais, muitas das quais não são adequadas para viver em áreas com temperaturas mais altas e menos vegetação. Isso inclui o gato-do-mato (Leopardus tigrinus) e a anta (Tapirus terrestris) – ambas listadas como vulneráveis pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). No entanto, grande parte da diversidade da região permanece inexplorada, o que significa que os efeitos dos incêndios florestais e do desmatamento ainda não são totalmente compreendidos, observa Poirier, da Amazon Watch.
“A biodiversidade é tão vasta e tão localizada”, diz ele. “É impossível saber quantas espécies foram exterminadas por esses incêndios. Mas há uma chance muito boa de estarmos testemunhando a extinção nessas chamas”.
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APA no Pará queima para abrir caminho ao agronegócio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU