10 Dezembro 2019
“Os escritos de Fiorito destilam misericórdia espiritual – ensinamentos para quem ignora, bons conselhos para quem precisa, correção para quem erra, consolação para o triste e ajudas para ser paciente na desolação ‘sem fazer mudança’, como disse Santo Inácio –, todas graças que conformam e se sintetizam nessa grande obra de misericórdia espiritual que é ensinar a discernir. O discernimento nos cura da cegueira espiritual, triste doença que nos impede de reconhecer o tempo de Deus, o tempo de sua visita”, escreve o Papa Francisco no prefácio ao livro Escritos (1952-1957) I, de Miguel Ángel Fiorito S.J., edição preparada por José Luis Narvaja S.J. A tradução é de André Langer.
A edição dos “Escritos” do Padre Miguel Ángel Fiorito S.J. (1916-2005) é motivo de consolação para aqueles de nós que nos alimentamos de seus ensinamentos ao longo dos anos. Estes escritos farão um grande bem a toda a Igreja.
O Mestre Fiorito – assim o chamavam familiarmente os jesuítas da Argentina e do Uruguai – costumava lembrar com frequência uma apreciação espiritual de São Pedro Fabro sobre a importância de saber como comunicar as coisas de Deus – um dom, um carisma, o próprio Evangelho – com tão bom espírito como Aquele com que foram recebidos (1). Saber receber e saber comunicar são duas coisas diferentes e cada uma requer uma graça. É por isso que devemos pedir expressamente ao Senhor esta segunda, a de comunicar com bom espírito o bem recebido. Penso que esta edição dos “Escritos” do Padre Fiorito, preparada com esmero pelo Padre José Luis Narvaja S.J., cumpre plenamente esta tarefa.
Destaco o fato de a edição ser feita por um de seus discípulos. Isso atesta a vitalidade de um pensamento que soube criar Escola. Uma característica da Escola é que o pensamento é comum e os discípulos podem desenvolvê-lo seguindo o espírito do mestre – não apenas a letra – com liberdade e criatividade. Além disso, a publicação do “corpus” principal dos escritos de Fiorito, cronologicamente perfilados, tem uma força particular: torna possível recompor o conjunto de uma existência à luz do que Deus fez com ela (cf. GE 171), descobrindo o significado do tempo em cada fragmento.
Também acredito que é justo que um pensamento que soube desviar a atenção de si mesmo e, em vez disso, desgastar-se publicando, comentando em notas e fazendo os outros “sentir e saborear”, seja agora apresentado em sua coerente simplicidade e com nome próprio. Não por vanglória, mas no sentido evangélico com o qual o Senhor assina a publicidade que devemos dar às boas obras: “Brilhe do mesmo modo a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, eles glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5, 16).
Os escritos de Fiorito destilam misericórdia espiritual – ensinamentos para quem ignora, bons conselhos para quem precisa, correção para quem erra, consolação para o triste e ajudas para ser paciente na desolação “sem fazer mudança”, como disse Santo Inácio –, todas graças que conformam e se sintetizam nessa grande obra de misericórdia espiritual que é ensinar a discernir. O discernimento nos cura da cegueira espiritual, triste doença que nos impede de reconhecer o tempo de Deus, o tempo de sua visita.
O Padre Fiorito publicou uma imensa quantidade de artigos, notas e comentários, mas apenas dois livros. Para o segundo, intitulado Discernimiento y lucha espiritual, ele me pediu que escrevesse um prólogo, lá pelo ano de 1985. Retomo uma afirmação que fiz naquela ocasião: “Discernimento espiritual é animar-se a ver em nossos traços humanos os vestígios de Deus”.
Fiorito deixou marca em muitos e acredito que estes “Escritos” ajudarão a imprimi-la em muitos outros. Deixou-nos a marca divina que o Senhor Jesus imprimiu em sua vida: a da paixão pelos Exercícios Espirituais, que são instrumento para saber “sentir e saborear” as pegadas do Senhor em nossa alma e ajuda para purificá-la de toda ambiguidade, de tal modo que possamos segui-las, especialmente nas situações nas quais o espírito maligno se empenha em tratar de nos confundir.
Fiorito tinha um olfato especial para “cheirar” o espírito maligno; ele sabia detectar sua ação, reconhecer seus tiques, desmascará-lo por seus maus frutos, pelo gosto do mau sabor e pelo rastro de desolação que deixa na sua passagem. Neste sentido, pode-se dizer que foi um homem de combate contra um único inimigo: o espírito maligno, Satanás, o demônio, o tentador, o acusador, o inimigo de nossa natureza humana. Entre a bandeira de Cristo e a de Satanás, fez sua escolha pessoal por nosso Senhor. No mais, procurou discernir “o tanto... quanto” e com cada pessoa foi um pai amável, mestre paciente e adversário firme – quando se apresentava a ocasião –, mas sempre respeitoso e leal. Nunca inimigo.
Seu outro livro, que intitulou Buscar y hallar la voluntad de Dios [Buscar e encontrar a vontade de Deus], nos fala sobre a jornada e a aventura de seguir Jesus Cristo, nosso Senhor, buscando o que mais lhe agrada: “sua santíssima vontade”, como disse Inácio. Para aqueles de nós que o conheceram em seu ambiente de trabalho, este livro tem as dimensões de sua biblioteca pessoal. A biblioteca de Fiorito tinha uma particularidade: além da parte comum, com prateleiras e livros, havia outra que ocupava uma parede inteira de seis metros por quatro de altura, formada por gavetinhas em cada uma das quais colocava – classificadas – suas “Hojitas”, fichas de estudo, oração e ação, cada uma com um tema dos Exercícios ou das Constituições da Companhia que ele levantava para pegar, subindo às vezes perigosamente uma escada, para entregar sem muitas palavras ao exercitante em resposta a alguma preocupação que este lhe havia manifestado ou que ele mesmo havia discernido ao ouvi-lo falar sobre suas coisas.
Miguel Ángel Fiorito, como diz Narvaja, era fundamentalmente um homem de diálogo e de escuta. Ensinou muitos a rezar – a dialogar em amizade com Deus – e a discernir “os sinais dos tempos” – dialogando com os homens e com a realidade de cada cultura. Sua Escola de Espiritualidade é escola de diálogo e de escuta, aberta para ouvir e dialogar com todos “com bom espírito”, provando tudo e retendo o que é bom.
Conta Fiorito em um dos seus escritos que na segunda metade da sua vida experimentou com maior intensidade a força espiritual dos Exercícios e se dedicou a eles, preferindo este a outras dedicações. O Mestre dava e recomendava os Exercícios em todas as suas formas: os exercícios de mês, em absoluta solidão, os exercícios na vida cotidiana, de acordo com a anotação 19, e os mais “leves”, em retiros de poucos dias e no marco de missões e novenas populares.
Como jesuíta, cabe-lhe a imagem do Salmo 1, a da árvore plantada junto da água corrente, que dá fruto. Como esta árvore das Escrituras, Fiorito soube deixar-se conter no espaço mínimo de seu quarto do Colégio Máximo de São José, em San Miguel, na Argentina, e ali criou raízes e deu frutos e flores – como diz muito bem seu nome – nos corações dos quais somos discípulos da Escola dos Exercícios. Espero que agora, graças a esta bela edição de seus Escritos, que tem a estatura de um grande sonho, criará raízes, dará flores e frutos na vida de tantas pessoas que se alimentam da mesma graça que ele recebeu e soube comunicar discretamente dando e comentando os Exercícios Espirituais.
Francisco
Roma, 06 de junho de 2019.
1. Cf. a nota 223 de J. H. Amadeo e M. Á. Fiorito ao n. 52 de P. Fabro, Memorial, Bilbao 2014.
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Escritos de Miguel Ángel Fiorito S.J. - Papa Francisco prefacia livro de jesuíta argentino. Leia a íntegra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU