28 Novembro 2019
"Ellacuría compreende o propósito da filosofia em sua função libertadora, na busca do verdadeiro ser e sentido na realidade, promovendo a vida, a liberdade e a justiça libertadora com os pobres, com uma tarefa ‘desideologizadora’ do real”, escreve Agustín Ortega Cabrera (Espanha), missionário leigo, doutor em ciências sociais (Departamento de Psicologia e Sociologia, da Universidade de Las Palmas de Gran Canaria - ULPGC), em artigo publicado por Rebelión, 27-11-2019. A tradução é do Cepat.
Diz-se muito bem que se entende melhor a obra de um autor, e com mais razão tratando-se de um filósofo, quando se une ao que foi sua vida. Em Ignacio Ellacuría, um dos conhecidos como jesuítas mártires da Universidade Centro-Americana – UCA [El Salvador], de quem fazemos memória pelo Dia Mundial da Filosofia, no trigésimo aniversário de seu martírio, essa união de obra e vida é luminosa.
Nesse sentido, em nossas atividades acadêmicas e formativas, para esta semana de comemoração do trigésimo aniversário do martírio dos queridos Ellacuría e jesuítas da UCA, apresentamos o livro Ellacuría en las fronteras, editado pela Universidade Jesuíta Iberoamericana do México. Nesta publicação, sou coautor e escrevo um capítulo com o título: “Filosofia da ação-formação social no horizonte da espiritualidade. Chaves a partir de Ellacuría, Martín-Baró e os jesuítas mártires da UCA”. Fizemos esta apresentação em alguns centros universitários de Lima, onde atualmente realizo minha missão na América Latina e sou professor e pesquisador.
Como mostra um dos conhecedores, A. González, é “a forma socrática de filosofar e ser filósofo a primeira chave para nos aproximarmos da obra de Ignacio Ellacuría. Parafraseando Zubiri, poderíamos traçar um paralelo com Sócrates dizendo que a característica do trabalho intelectual de Ellacuría não consiste tanto em colocar a práxis histórica de libertação no centro de suas reflexões filosóficas, mas em ter feito da filosofia um elemento constitutivo de uma existência dedicada à libertação”.
De forma similar a outros pensadores e filósofos, além do próprio Sócrates, E. Mounier e S. Weil e mesmo o professor que foi L. Milani, Ellacuría apreendeu o pensamento em unidade inseparável da ação, com a práxis e o compromisso solidário pela justiça com os pobres, oprimidos e vítimas da história. Uma filosofia a serviço da vida e da promoção libertadora e integral das pessoas, povos e excluídos frente à violência estrutural do mal, desigualdade e injustiça social (global), a violência repressora e pessoal, com um compromisso claro com o diálogo, a reconciliação, a não-violência, a paz, a liberdade e a igualdade.
É com essa inteligência social e histórica, a partir de uma filosofia comprometida com o real, usando mediações socioanalíticas como são as ciências sociais, que assume a realidade, analisando criticamente suas possibilidades, capacidades e estruturas com seus poderes e dominações. Toma a realidade com essa inteligência ética da compaixão, assumindo solidariamente o sofrimento dos povos crucificados que são sempre o sinal dos tempos, em uma hermenêutica histórica da realidade da “passionis”. E assume a realidade com a inteligência que se faz práxis libertadora dos povos crucificados para descê-los da cruz, na opção pelos pobres como sujeitos de sua libertação integral.
Nesse sentido, González afirma: “Ellacuría mostrou com sua vida (e - por que não considerar? - também com a sua morte) que a função social da filosofia não é primeiramente uma função acadêmica, muito menos uma função legitimadora de um ou de outro poder, mas - ao menos como uma possibilidade - uma função libertadora. E que essa função libertadora não consiste, em primeira linha, na transmissão de uma determinada filosofia, de uma determinada tradição e de alguns determinados conhecimentos filosóficos, mas, ao contrário, como também foi o caso de Sócrates, em uma tarefa maiêutica e crítica ..., em certo sentido mais próximo da expressão grega original maieúomai (ajudar no parto, desatar). Trata-se, pois, de acompanhar filosoficamente o difícil momento histórico dos povos do Terceiro Mundo, situando-se parcialmente ao lado daqueles que tentam impedir que a morte triunfe e ao lado da nova vida que, apesar de todas as dificuldades, luta para nascer”.
Ellacuría compreende o propósito da filosofia em sua função libertadora, na busca do verdadeiro ser e sentido na realidade, promovendo a vida, a liberdade e a justiça libertadora com os pobres, com uma tarefa “desideologizadora” do real. Trata-se de buscar a verdade aprisionada pela injustiça (Rm 1, 18), desmascarando os ídolos da morte que negam a vida dos povos e dos pobres. Libertar-nos das idolatrias da riqueza-ser rico, do capital, poder e violência estrutural, de modo que as maiorias populares (empobrecidas) tenham ser, vida e vida em abundância (Jo 10, 10), frente ao nada, o não ser, que sofrem os povos crucificados.
A realidade estrutural com seu dinamismo, em sua unidade de natureza e história, de inter-relações dos seres humanos com o mundo, converte-se em práxis social e histórica. Empregando o método de “historicização” das chaves filosóficas, como é a justiça com os direitos humanos na opção pelos pobres, para que sejam verificadas na realidade histórica. Desta forma, é revelada a mentira ideológica que nega a vida e a libertação integral da humanidade.
Em oposição a esses falsos deuses da civilização do capital e da riqueza, para reverter a história e lançá-la em outra direção, Ellacuría apresenta a civilização do trabalho e a pobreza. Ou seja, a dignidade das pessoas trabalhadoras e a humanização do mundo social e histórico, com uma economia a serviço da vida e das necessidades dos povos, que nos liberta do lucro e do lucro-capital como motor da história. E isso na civilização da pobreza, com a solidariedade compartilhada como sentido da história no real, a partir desses “pobres de espírito”. A existência solidária de compartilhar a vida, os bens e a luta pela justiça com os pobres que nos liberta da escravidão do ter, possuir e do ídolo da riqueza-ser rico.
Como afirma Ellacuría, é “uma filosofia feita a partir dos pobres e oprimidos, a favor de sua libertação integral e de uma libertação universal que, em sua autonomia, pode se colocar no mesmo caminho do trabalho em favor do reino de Deus, conforme se prefigura no Jesus histórico”.
Para Ellacuría, a história tem sentido de “forma utópica e esperançosa: crer e ter ânimo para tentar com todos os pobres e oprimidos do mundo reverter a história, subvertê-la e lançá-la em outra direção”. A realidade histórica, em seu dinamismo estrutural, está aberta à transcendência e à esperança, ao Deus transcendente no real e histórico. O sentido de utopia profética e a esperança “nesse futuro sempre maior, para além do futuro histórico, onde se avista o Deus salvador, o Deus libertador” (Ellacuría).
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Ellacuría e o testemunho da filosofia da vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU