19 Novembro 2019
“Em 1960, quando eu nasci, Manchester se via e sentia como uma versão eletrificada de si mesma no século XIX: ainda havia chaminés industriais, ruas de paralelepípedos e aquecedor a carvão. Hoje, parece que uma era chegou ao fim. No ano de 2080, uma transição qualitativa completamente diferente terá que ter ocorrido, mas nem sequer dará os primeiros passos, a menos que possamos imaginá-la”, escreve Paul Mason, escritor, jornalista britânico e autor de “Pós-Capitalismo: um guia para o nosso futuro”, em artigo publicado por Ctxt, 13-11-2019. A tradução é do Cepat.
Imagine o seguinte: uma criança nasce em uma cidade onde 40% da força de trabalho faz coisas com máquinas e trabalho manual. A relação social dominante é a relação salarial. O contrato social é forte e depende de impostos. A maioria dos serviços é prestado pelo Estado.
Sessenta anos depois, nasce uma criança na mesma cidade. Agora, apenas 10% da população trabalha em fábricas (e, desses 10%, a metade realiza tarefas que parecem mais com ciência ou computação). Para o capital, as formas de exploração agora são principalmente financeiras, e a relação salarial é secundária frente à extração de valor (por meio de juros, práticas monopolistas de fixação de preços, trabalho mal remunerado e exploração de dados comportamentais). A maioria dos serviços é fornecido através do mercado.
Nos 250 anos que dura o ciclo vital do capitalismo industrial, esse período de 60 anos testemunhou uma mutação considerável, impulsionada pela tecnologia, globalização e desenvolvimento humano. O impacto social que teve é evidente.
Nos anos 1960, as ruas da cidade eram calmas durante o dia e eram como um cemitério aos domingos. Existia uma clara linha divisória entre trabalho e lazer. Hoje, nas ruas dessa cidade, ouve-se o barulho incessante de cafés ao ar livre e as calçadas estão cheias de pessoas conversando e olhando dispositivos inteligentes, enquanto caminham.
Nos anos 1960, um destacado cientista da cidade foi processado por ser gay em seu círculo privado. Hoje, seu rosto aparece em notas de 50 libras e a cidade tem um bairro inteiro dedicado à cultura gay.
A cidade se chama Manchester, em cujas redondezas nasci em 1960. Conhecida por ser a zona zero da revolução industrial, atualmente, a dinâmica de sua força de trabalho é surpreendente. De uma população total em idade de trabalhar de 1.760.000, 24% trabalham em finanças e serviços profissionais, 20% trabalham no sistema de saúde, educação e serviços sociais e apenas 10% trabalham no setor manufatureiro.
A pergunta é: como será Manchester daqui a 60 anos? Gostaria de tentar imaginar o resultado mais favorável de uma transição que deixe para trás tanto o carbono, quanto o capitalismo no local onde nasceu a manufatura.
Seria perfeitamente possível, em 60 anos, automatizar totalmente a manufatura (e reduzir a força de trabalho na maioria das fábricas a um pequeno papel supervisor). A essa altura, deveríamos ter superado muito a automação simples dos processos humanos (como acontece com os robôs da indústria automobilística que dão pontos de soldagem como se fossem um humano gigante, posto de speed): os próprios processos em si serão fundamentalmente não humanos. Pode ser que ‘cultivemos’ um objeto de metal ou o imprimamos, assim como hoje em dia as hélices dos turbovetiladores são formadas a partir de um único cristal metálico em condições de laboratório.
Então, talvez 95% ou mais da força de trabalho se concentrará em serviços, dos quais muitos deles serão de humanos para humanos. Ao haver eliminado a especulação financeira e automatizado muitos processos financeiros (como o banco comercial, direito comercial, a contabilidade e o mercado de futuros), a força de trabalho financeiro também será pequena. Mas, a força de trabalho em saúde, cultura, esportes e educação é grande e ofusca o setor de serviços a empresas, assim como hoje em dia supera a manufatura.
A maioria das pessoas “trabalha” apenas dois ou três dias por semana (e o trabalho, como acontece hoje em dia, é uma mistura de trabalho e lazer). A famosa reprimenda de Marx a Charles Fourier (que o trabalho “não pode se tornar lazer”, só cabe reduzir sua duração) foi refutada. Mas, ambos tinham razão: a automação reduziu as horas de trabalho e esfumaçou as fronteiras.
Não existem monopólios tecnológicos, apenas uma mistura de pequenas e médias empresas inovadoras (PMEs), que obtêm benefícios de maneira tradicional, e empresas de serviços de informação pública, que cobram apenas o custo de produção e manutenção.
A assistência de saúde holística (incluindo a saúde mental, a fisioterapia e a odontologia), a educação até o ensino superior e o transporte público são todos gratuitos. O aluguel médio representa aproximadamente 5% do salário médio (como em Viena Vermelha, nos anos 1920) e a taxa de juros hipotecária não pode exceder mais ou menos o mesmo nível.
Em 2080, a cidade já alcançou a meta de zero emissões de carbono e seu governo progressista está comprometido em implementar processos inovadores que eliminem o carbono da atmosfera e em compensar os danos causados pelas emissões de carbono ao resto do mundo.
A próxima pergunta é: como chegamos a esse ponto?
Em primeiro lugar, fizemos com que os anos 2020-2030 fossem uma luta de massas cultural e política por um novo tipo de capitalismo. Formaram-se governos que suprimiram a especulação financeira, construíram um milhão de novas casas sociais ecológicas e começaram a adaptação verde de todo o parque imobiliário restante, subsidiaram a criação de um novo sistema de transporte urbano e a eliminação de todos os carros e caminhões a gasolina/diesel das estradas. Desagregaram ou nacionalizaram monopólios tecnológicos e fizeram com que os registros de dados passassem a ser propriedade comum. Fomentaram de maneira consciente a criação de um grande e granuloso setor sem fins lucrativos (incluindo bancos, lojas de varejo, prestadores de serviços de saúde e sociais e centros de produção cultural) e eliminaram todo tipo de coerção do sistema de assistência social, fundindo pensões e benefícios estatais em uma única e modesta renda básica, consagrada como um direito na Constituição.
O resultado, em 2030, ainda era o capitalismo, mas o governo havia aprendido a mensurá-lo de maneira diferente (não apenas calculando o valor agregado bruto, mas também medindo os resultados físicos, as horas trabalhadas e a produtividade). Se em 2020 a ‘utilidade econômica total’ estava dividida em 40% no Estado, 59% no mercado e 1% sem fins lucrativos, em 2030, aproximadamente 10% da economia estava operando 'a preço de custo'. O produto interno bruto nominal havia se estabilizado e começado a encolher.
Como resultado, os mercados financeiros começaram a refletir a supressão da especulação e o eventual fim do processo de acumulação de capital. Em uma palavra, entraram em pânico (dada a possibilidade de um mundo pós-carbono e pós-capitalista) e o Estado e o Banco Central se viram forçados a intervir para salvar, estabilizar e assumir a estrutura financeira. Permitiram a queda do capital especulativo. O resgate completo foi financiado através da criação de dinheiro no Banco Central e da monetização da dívida nacional.
Os anos 2020 foram uma batalha entre uma economia centrada no lucro e uma economia centrada nas pessoas. O governo social-democrata radical, ao reconhecer os perigos de uma intervenção estatal muito acelerada e drástica, promoveu conscientemente o crescimento de um setor privado em uma escala de microempresa e utilizou a intervenção e o financiamento públicos para afastar os empresários de operações de baixo valor e redirecioná-los para a inovação tecnológica e social.
O sistema econômico mundial, que já estava se desintegrando em 2020, não conseguiu superar a adoção simultânea de um pós-capitalismo verde por parte dos partidos liberais de esquerda e social-democratas. Em 2030, haviam se fragmentado em blocos regionais, dos quais a Europa era a mais bem-sucedida, a China abrangia e absorvia a maior parte da Rússia e da Ásia Central, e a América do Norte estava aglutinada em um mercado relativamente autossuficiente.
No entanto, depois de 2030, quando a globalização financeira havia sido eliminada, reviveu uma nova forma de globalização econômica baseada em viagens, troca de informações e comércio de matérias-primas.
Entre 2030 e 2050, o governo da cidade de Manchester priorizou de forma agressiva a ideia de uma transição justa para um status de zero emissão de carbono. Operava como cidade-região e distribuía entre as anteriormente estagnadas cidades ex-industriais as principais entidades de serviços, como as universidades, as instituições de pesquisa e desenvolvimento e grandes instalações sanitárias.
Em 2040, o centro de Manchester estava livre de veículos, e as bicicletas, os bondes e os passeios a pé eram o principal meio de transporte. O racionamento dos voos continua vigente, mas houveram avanços promissores na aviação em massa livre de carbono com tecnologia de células de combustível, portanto, a cidade decidiu manter o aeroporto de Manchester, apesar das demandas dos radicais para recuperar o estado selvagem da terra.
O rio Irwell, tão úmido em 2020 como quando Friedrich Engels o olhava da Ponte Ducie, agora tem lontras brincando em suas margens e rio acima, em algum ponto de Ramsbottom e Bacup, existem castores. No que diz respeito à vida social da cidade, é tão diferente à de agora como a de agora é em relação à época do pós-guerra de Ena Sharples e Stan Ogden (personagens do romance de Salford, Coronation Street), mas não sei como prever.
Para sobreviver às batalhas dos anos 2020, a esquerda precisa imaginar sua própria utopia, mas a parte mais frustrante do atual enfoque para alcançar um saldo zero de emissões de carbono é a total falta de imaginação (entre legisladores, cientistas e manifestantes) sobre como seria a economia, como pré-condição antes de obtê-la.
Em certo sentido, o fracasso da imaginação econômica é compreensível. A economia como disciplina acadêmica de massas só decolou durante os últimos 60 anos e o princípio fundamental é que ... nada de diferente é possível. Mas, como o mundo agora é obrigado a imaginar o capitalismo sem carbono, também é obrigado a contemplar uma economia sem trabalhos obrigatórios.
O objetivo é fazer com que a economia esteja livre de carbono e seja circular em termos de recursos, para reduzir as horas trabalhadas e promover aumentos quantificáveis na saúde e felicidade humanas, reintegrar o cinturão industrial dos subúrbios com o centro e encontrar fontes de alimentação sustentáveis. Apresentar e testar planos de transição tem que se converter em uma tarefa tremendamente séria.
A cidade será a unidade principal em que essa transição ocorrerá. É grande o suficiente para operar em escala e ainda suficientemente pequena para que diferentes planos de transição possam ser testados em diferentes cidades e para que a população possa se sentir próxima dos pontos de decisão e experimentar os resultados de maneira direta.
Em 1960, quando eu nasci, Manchester se via e sentia como uma versão eletrificada de si mesma no século XIX: ainda havia chaminés industriais, ruas de paralelepípedos e aquecedor a carvão. Hoje, parece que uma era chegou ao fim. No ano de 2080, uma transição qualitativa completamente diferente terá que ter ocorrido, mas nem sequer dará os primeiros passos, a menos que possamos imaginá-la.
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Manchester 2080: a utopia é realidade. Artigo de Paul Mason - Instituto Humanitas Unisinos - IHU