16 Agosto 2019
“Tendo em conta que Trump retirou os Estados Unidos do Acordo Climático de Paris, que seu homólogo brasileiro, Jair Bolsonaro, está disposto a incendiar a Amazônia e que há poderosos movimentos por toda a Europa em defesa do estilo de vida baseado nos carros que funcionam a diesel, somente uma ideia nova, grande e global poderá reverter a situação”, escreve Paul Mason, renomado jornalista e ensaísta britânico.
“A dupla suposição tecnocrática do nosso tempo - de que o atual sistema social pode reduzir as emissões de carbono a zero e que a moeda fiduciária pode compensar o aumento das dívidas para sempre - é o que faz com que tantas políticas se tornem tão pouco realistas. Temos que ser realistas”, avalia Mason.
O artigo é publicado por Ctxt, 14-08-2019. A tradução é do Cepat.
O que caracteriza o momento histórico atual é uma sensação generalizada de falta de realismo entre as elites. Os discursos oficiais não são mais usados como guias de ação, as leis não se aplicam e os regulamentos são ignorados. O símbolo por excelência da falta de realismo no mundo está representado em dois gráficos. O primeiro é a previsão do Escritório de Orçamento do Congresso (CBO, sigla em inglês) dos Estados Unidos da relação entre dívida e produto interno bruto até 2048.
Dívida como porcentagem do PIB per capita nos Estados Unidos ao longo do tempo e previsões de futuro.
Este gráfico prevê os níveis de dívida que haverá em tempos de guerra, em 2030 - exceto os períodos de paz -, motivados principalmente pela determinação dos Estados Unidos de seguir gastando em defesa, segurança social e Medicare sem aumentar impostos e como percentagem do PIB. Ao contrário do que ocorria na Segunda Guerra Mundial, não há plano realista - nem mesmo uma intenção declarada - para reduzir esse acúmulo de dívidas. Pela primeira vez na história do capitalismo industrial, uma grande economia está acumulando uma quantidade de dívida em tempo de paz impossível de reduzir de um modo realista.
De acordo com as projeções do CBO, nos próximos 30 anos, o PIB dos Estados Unidos aumentará de 20 para 65 trilhões de dólares, enquanto sua dívida crescerá rapidamente e passará de 16 para 97 trilhões de dólares. O déficit se situará em 8% ao ano, e isto fará os principais economistas exigirem uma austeridade em uma escala insustentável na América de hoje. A hipótese subjacente é que a população dos Estados Unidos aceitará o colapso de seu nível de vida, que o mundo seguirá comprando a imprensa dos Estados Unidos e que o Estado imprimirá dinheiro para sair da insolvência.
Agora, observemos a segunda prova: um gráfico procedente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas que mostra até que ponto temos que reduzir drasticamente as emissões de CO2, nos próximos 20 a 35 anos, se quisermos evitar um colapso incontrolável e catastrófico.
Emissões de CO2 no mundo e redução necessária para atingir zero emissões em 2040 ou 2055.
Para alcançar estes níveis, disse a direção de Prevenção e Controle Integrado da Contaminação: “serão necessárias transições rápidas e de grande alcance em energia, terra, cidades e infraestrutura (incluindo transportes e edifícios) e os sistemas industriais”, o que exigirá“ um aumento considerável dos investimentos nessas opções”.
A única questão estratégica que a humanidade enfrenta é se os países do mundo desenvolvido que estão fortemente endividados estão preparados para encontrar os recursos necessários para realizar essa transformação. A próxima questão é se, para conseguir isso, estamos preparados para acabar com a influência política da indústria de combustíveis fósseis e do setor financeiro que sonega impostos. Enquanto não respondermos essas questões, estamos perpetuando a cultura da falta de realismo.
Nos Estados Unidos, surgiu um poderoso movimento novo que quer alcançar isso. O New Deal Ecológico, que foi publicado como projeto de lei no Congresso, pela nova representante por Nova York, Alexandria Ocasio-Cortez, promete compromissos de gastos de dez anos que seus críticos elevam até um total de 6 trilhões de dólares adicionais por ano. Os defensores do New Deal Ecológico rejeitam esse número. De acordo com a chamada teoria monetária moderna, argumentam que o preço pode ser pago em todas as circunstâncias, mediante a emissão de dívida e imprimindo dinheiro, portanto o número é irrelevante.
Embora aplaudo seu ‘descaramento’, de certa forma, se baseia nos mesmos pressupostos da política fiscal do presidente Donald Trump: que o dinheiro fiduciário permite ao estado controlar a dinâmica tradicional da dívida para sempre. Em outras palavras, a dinâmica interna de um sistema de mercado capitalista - na qual, em um dado momento, uma dívida alta gera instabilidade e a depreciação da moeda, e o custo para um governo do endividamento cria uma espiral fora de controle - que pode ser contornada por decreto.
A única maneira de introduzir realismo neste debate é fazer uma pergunta que nem os membros da elite de Davos e nem os democratas progressistas - nem mesmo o movimento mais ambientalista - estão dispostos a considerar: as soluções são compatíveis com o capitalismo?
Em Pós-capitalismo: Um guia para o nosso futuro (2015), argumentei que não são. O maior problema para a sustentabilidade da dívida dos Estados Unidos (ou também para o Japão e a zona do euro) não é se o sistema financeiro pode sobreviver com moeda fiduciária, mas que a tecnologia da informação se rebelou contra as instituições sociais e econômicas que a cercam.
Gera-se muito pouco valor em uma economia informacional-capitalista para justificar o tamanho da atual acumulação de dívida, os déficits contínuos e as previsões fiscais dos principais estados. A tecnologia da informação gera quedas exponenciais nos custos de produção de informação, elementos informativos e alguns bens e serviços físicos. Gera grandes quantidades de ferramentas de forma gratuita, através de efeitos de rede, e tende a democratizar e reduzir a inovação.
Suprime os mecanismos de adaptação normais, através dos quais a inovação cria novos bens com maiores custos de produção (incluindo a mão de obra) e que permitem um emprego melhor remunerado. Além disso, a automatização tem capacidade para erradicar 47% dos empregos ou 45% das atividades.
Nos últimos quinze anos, construímos um sistema extremamente disfuncional que é insustentável em todos os pressupostos tradicionais. Trata-se de um sistema de monopólios únicos e permanentes, com um enorme desejo de enriquecimento e exploração econômica, a criação de empregos de baixa remuneração e baixa qualificação destinados a manter as pessoas dentro do sistema de extração de dados e crédito, e assimetrias massivas de poder e informação entre as empresas e os consumidores.
Como consequência, a tão esperada decolagem da quarta revolução industrial não está acontecendo. Por mais que os economistas schumpeterianos prevejam sua chegada iminente, a não ser que os estados desempenhem um papel mais ativo na coordenação industrial, isso não pode ocorrer dentro de uma economia de mercado global que é fortemente endividada e monopolizada.
Deste modo, juntamente com a transição para uma economia sem emissões de carbono, necessitamos de um redesenho rápido do sistema, no qual o setor comercial seja reduzido em relação ao setor público, surja um setor colaborativo alheio ao mercado, o dinheiro deixe de funcionar como uma reserva de valor e haja uma rápida redução das horas de trabalho dentro do sistema salarial.
Se olharmos com cuidado a previsão da dívida para os Estados Unidos e um gráfico como o da Figura 3 - que mostra a rapidez com que a humanidade arruinou o mundo ao usá-lo como um dreno para processos com altas emissões de carbono - é óbvio que o capitalismo atingiu um ponto crítico. Está muito endividado para continuar igual e muito ligado ao carbono de um ponto de vista estrutural. Ou aqueles a quem se deve a dívida e aqueles que têm o direito de queimar o carbono vão à falência, ou o clima mundial vai abaixo.
Emissões anuais de CO2 (bilhões de toneladas por ano) por região.
A médio prazo, necessitamos de outro tipo de capitalismo, mas não será estável, nem permanente. Inclusive, terá que ser criado através de algo que se pareça com uma revolução. Terá de desestimular o uso de carbono, ao mesmo tempo em que redistribui profusamente a riqueza e permite que o hemisfério sul continue se desenvolvendo, além de superar as enormes tergiversações estruturais criadas pelos monopólios tecnológicos, rentistas, especuladores financeiros e estados e empresas que monopolizam os dados.
Mudar para o pós-capitalismo não implica erradicar as tendências do mercado da noite para o dia, nem aceitar os métodos de planejamento de controle da economia soviética. O objetivo é desenhar uma transição controlada, na qual as forças do mercado deixem de operar como o principal distribuidor de bens e serviços no planeta, no qual o estado se contraia e a montanha da dívida se reduza.
A tecnologia da informação facilitará um movimento para além da escassez em grandes setores da economia. A mudança climática exige que nós erradiquemos certas formas de usar carbono. A dinâmica da dívida mundial, combinada com o problema do envelhecimento, implica que precisamos de algo mais radical e sustentável que a moeda fiduciária e uma acumulação de dívida que nunca será liquidada.
Quando em Pós-capitalismo adverti que se não abandonássemos o neoliberalismo, a globalização desapareceria, o Financial Times qualificou essa advertência de "desnecessariamente estridente". Acontece que não foi suficientemente estridente.
Tendo em conta que Trump retirou os Estados Unidos do Acordo Climático de Paris, que seu homólogo brasileiro, Jair Bolsonaro, está disposto a incendiar a Amazônia e que há poderosos movimentos por toda a Europa em defesa do estilo de vida baseado nos carros que funcionam a diesel, somente uma ideia nova, grande e global poderá reverter a situação.
Nestas colunas que escreverei para Social Europe, descreverei o que isso significa para as novas alianças políticas progressistas que devem ser formadas, como devem lutar inteligentemente na guerra cultural que se aproxima e por que o estado – deixado de lado por tanto tempo pelos movimentos de justiça ambiental e social – está no centro da solução.
A dupla suposição tecnocrática do nosso tempo - de que o atual sistema social pode reduzir as emissões de carbono a zero e que a moeda fiduciária pode compensar o aumento das dívidas para sempre - é o que faz com que tantas políticas se tornem tão pouco realistas. Temos que ser realistas.
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A insuportável falta de realismo do presente. Artigo de Paul Mason - Instituto Humanitas Unisinos - IHU