13 Novembro 2019
O próximo dia 16 de novembro marca o 30º aniversário da morte de 6 jesuítas e duas mulheres no campus da Universidade da América Central em El Salvador.
A reportagem é de Fabrizio Mastrofini, publicada por Settimana News, 12-11-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
As celebrações começaram há algum tempo na Universidade da América Central (UCA) dos jesuítas de San Salvador. Em 16 de novembro participarão do evento o teólogo jesuíta Jon Sobrino, que escapou do massacre por estar no exterior e o padre Michael Czerny, que chegou logo depois no país da América Central e agora é cardeal.
Vamos dar um passo atrás - para os mais jovens! – para contar que, em 16 de novembro de 1989, seis padres jesuítas, sua governanta e sua filha, foram assassinados no campus da Universidade da América Central em San Salvador, por ordem do exército. As seis vítimas eram nomes bem conhecidos na teologia e na pesquisa social: eram Ignacio Ellacuría, Ignacio Martín-Baró, Juan Ramón Moreno, Amando López, Segundo Montes, Joaquín López e López, aos quais se somaram Elba Julia Ramos e Celina Ramos (as duas mulheres que entraram na trajetória dos tiros).
O país vivia uma grave situação de guerra civil entre militares, manifestantes e bandos paramilitares. Assassinados ocorriam a toda hora, massacres cruéis de civis aos quais a comunidade internacional assistia impotente, apesar das denúncias e as provas do envolvimento dos EUA. Eram os anos de medo da propagação do comunismo no "quintal de casa" dos Estados Unidos e a teologia da libertação, de que Ellacuría era um conhecido representante, causava medo.
Trinta anos depois, a Europa lembra principalmente (apenas?) a queda do Muro de Berlim. Em vez disso, é o caso de mudar de continente e se debruçar sobre os massacres da época, sobre os massacres de civis indefesos apenas porque eram camponeses e, portanto, por definição, revoltosos, sobre as valas comuns, as torturas indescritíveis, os acobertamentos de que desfrutam assassinos e mandantes, ainda hoje em grande parte impune.
Entre os seis jesuítas, o mais conhecido é Ellacuría, mas, entre os outros, quem deu uma contribuição significativa foi - e ainda é - Ignacio Martín-Baró, psicólogo, autor de muitos textos disponíveis online -no site da Universidade Centro-Americana. Em italiano, foi publicada uma coleção de escritos com o título Psicologia della libertazione, indicando uma chave de pesquisa original. Para ele, a psicologia tinha sentido se, e somente se, fosse capaz de contribuir para a evolução histórica das populações e dos sujeitos, desmascarando os mecanismos do terror e da opressão.
Uma cátedra com seu nome está presente no Departamento de Psicologia da Universidade Javeriana da Colômbia.
As professoras Marcela Rodríguez Díaz, Maria Margarita Echeverri Buritica, Maria Lucia Rapacci Gomez, concordaram em preparar para SettimanaNews duas contribuições distintas.
A primeira diz respeito à história do nascimento da Cátedra e a segunda à contribuição específica sobre a situação da Colômbia, um país que, por sua vez, vive uma transição complexa após décadas de guerra civil.
Ignacio Martín-Baró escrevia: "Se a psicologia científica realmente deseja contribuir positivamente para a história dos povos, deve ser permeada por uma consciência renovada dos determinismos sociais [...], a psicologia deve rejeitar de uma vez por todas o individualismo abstrato que a determinou até agora, concentrando-se no ser humano a partir de sua situação e de sua história real, que é uma situação e uma história social" (Psicología, Ciencia y Conciencia, San Salvador, UCA editores, 1977, p. 19)
A ideia de promover a Cátedra Internacional Ignacio Martín-Baró faz parte do legado dos diretores do Departamento de Psicologia Social da Pontifícia Universidad Javeriana em Bogotá e foi alimentada por diferentes cenários e eventos na história da psicologia social na faculdade.
Nessa jornada, se cruzam eventos envolvendo encontros, debates e conversas com Ignacio Martín-Baró, entre 1977 e 1979, nos anos em que ele trabalhava em nossa universidade; bem como as discussões do grupo acadêmico dos professores envolvidos no planejamento de uma formação orientada aos princípios e reflexões da teoria, da pedagogia e da psicologia latino-americanas, nas quais são centrais as contribuições de Paulo Freire e Ignacio Martín-Baró.
Outros eventos caracterizaram a criação da Cátedra: a reestruturação do programa de formação desde 1981, que define a psicologia social como um eixo transversal da formação; a reformulação dos currículos para uma perspectiva social na psicologia e a dinamização do trabalho interdisciplinar.
Também faz parte desse tecido coletivo o desenvolvimento de ações conjuntas que tornam visível uma linha de pensamento psicológico interessada em analisar as múltiplas expressões e dinâmicas dos nossos distúrbios sociais e culturais, impulsionadas pelo desafio de criar possíveis formas de convivência em nossa sociedade. A partir disso, iniciou-se um diálogo com a Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas, de El Salvador, a Pontifícia Universidad Javeriana, na seção de Cali, e a Universidade Alberto Hurtado, do Chile, que apoiaram a Cátedra como parte integrante de suas orientações acadêmicas.
A Cátedra Internacional Ignacio Martín-Baró é um espaço acadêmico interdisciplinar que promove uma reflexão coletiva, rigorosa e sistemática, sobre questões relacionadas às condições de violência sócio-política, ao sofrimento ético e à sua relação com a saúde mental, no contexto das sociedades latino-americanas.
Sua abordagem é de alta qualidade acadêmica, respeito à condição humana e busca de alternativas aos problemas psicossociais da Região.
Dessa forma, a Cátedra incorpora diferentes saberes: aquele acadêmico, aquele dos que vivem os efeitos de diversas violências e aquele dos diferentes atores sociais, com o objetivo de propor caminhos de saída dignos e praticáveis nos setores da assistência psicossocial, das política relações públicas, da convivência dos cidadãos.
Para esse propósito, desde 2006, foram desenvolvidas na Cátedra as seguintes atividades:
1. Os diálogos (encontros durante o ano com o objetivo de fazer refletir professores e alunos sobre temas de interesse teórico e de pesquisa em Psicologia Social no contexto da realidade nacional e latino-americana);
2. A Cadeira Virtual (com professores do Departamento de Psicologia da seção Pontifícia Universidade Javeriana de Cali, a Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá e a Universidade José Simeón Cañas de El Salvador). O objetivo é desenvolver um espaço de aprendizado e a reflexão conjunta sobre o papel e os desafios da psicologia social nos contextos latino-americanos, partindo da análise crítica das condições de violência social e política que as caracterizam.
O evento central da Cátedra Internacional Ignacio Martín-Baró, que se realiza todos os anos, pretende ser um cenário de discussão cultural e das temáticas que merecem um posicionamento político-público em referência a decisões que afetam o bem-estar coletivo. Em suma, é acima de tudo um exercício de cidadania democrática no sentido mais amplo. Sua estrutura possui um caráter polifônico que se expressa na criação de uma variedade de cenários, com diferentes pontos de vista e formas de expressão. Durante a sessão de dois dias, trabalhamos de maneira interdisciplinar para a construção coletiva de um pensamento complexo.
A partir de 2008, esse evento começou a ser realizado simultaneamente nas seções de Cali e Bogotá da Universidad Javeriana e na Universidade Alberto Hurtado do Chile, resultando nas seguintes publicações: Vigencia del pensamiento emancipatorio (2005, Impresa); Historia, memoria y ciudadanías: Memorias Cátedra IMB 2006 (Cd); Violencia sociopolítica, malestar ético, salud mental: Memorias Cátedra IMB 2007 (Cd); Acciones colectivas por la memoria y la identidad: Memorias Cátedra IMB 2009 (Cd); Reconfigurando la esperanza: practicas sociales de la memoria y procesos de reparación local: Memorias Cátedra IMB 2010 (Cd); Las víctimas: testigos históricos, sujetos de justicia. Tiempos de reflexiones urgentes: Memorias Cátedra IMB 2011 (Cd). Recordar, dignificar, reparar: Avances y desafíos desde la perspectiva Psicosocial para la reparación integral: Memorias Cátedra IMB 2012 (Cd), Mujeres que construyen la vida. Historias de resistencia y paz en Colombia: Memorias Cátedra IMB 2013 (Cd) y Notas en clave de Psicología: Reflexiones urgentes en torno a la violencia sociopolítica y el malestar ético, Cátedra Internacional Ignacio Martin Baro (2012, impresa) Cátedra IMB 2014. Ampliar el presente. Conversaciones para tiempos de paz en Colombia. Cátedra IMB 2015. Memorias y Reconciliación. Hilando las texturas de un país posible. Cátedra IMB 2016. Polifonías de la reconciliación y poéticas para la paz. Cátedra IMB 2017. La vida cotidiana en la urdimbre de la paz. Cátedra IMB 2018. Quehaceres, devenires y desafíos de los Acuerdos de paz en Colombia.
E aqui estão algumas reflexões sobre a importância, hoje, da obra de Ignacio Martín-Baró, mergulhadas no contexto social da Colômbia, que vive uma complexa transição rumo a uma pacificação social após décadas de guerra civil.
O pensamento de Ignacio Martin Baró e seus desenvolvimentos nos permitiram entender a natureza do dano, o reconhecimento das vítimas, os exercícios de memória e os desafios da construção da paz na Colômbia. Consciências que dialogam com políticas públicas, as instituições, as organizações das vítimas, as organizações de base.
O reconhecimento dessas realidades sociais vinculadas às nossas práticas pedagógicas enriqueceu o trabalho com nossos alunos, incentivando-nos a continuar o empenho para um conhecimento que nos estimula a imaginar outros cenários e mundos possíveis, articulando ações que nos ajudam a pensar em programas comuns de impacto nessas questões-chave da realidade colombiana. Temos uma Cátedra virtual que aborda o pensamento de Ignacio Martín-Baró e uma rede de trabalho colaborativo com universidades afiliadas e organizações sociais.
Ora, se olharmos para os "protagonistas" do contexto colombiano, entramos em contato com as dinâmicas e as lógicas da guerra e da violência; devemos entender que o conjunto de relações sociais é atravessado por essas dinâmicas e lógicas instaladas nos processos relacionais, marcadas pelo medo e pela desconfiança; com efeitos que vão além dos indivíduos e transcendem os vínculos e os vários campos de interação, construindo subjetividade, linguagens e práticas sociais, que são expressas na maneira como as pessoas percebem o mundo, definem as modalidades para interpretá-lo, agir dentro dele, encontrar seu próprio espaço de trabalho e profissional.
No que diz respeito à construção da paz na situação da Colômbia, a assinatura do acordo entre o governo e as FARC, os resultados de sua aprovação e as condições para sua implementação nos mostram, por um lado, uma sociedade dividida pela promessa de passar para um cenário de reconciliação e construção da paz; por outro lado, temos um arranjo institucional que não tem a capacidade para criar as condições que possibilitam a implementação do acordo, com a resistência de transformar aqueles problemas estruturais na origem da violência social e política que, por sua vez, é a base de conflito armado.
Restaurar as relações de uma sociedade afetada pela guerra implica a passagem de uma gramática da guerra para uma gramática da paz, criando as condições para a ruptura definitiva do vínculo entre armas e política.
No que diz respeito à justiça da fase de transição e seus mecanismos legais de esclarecimento histórico, memória e reparação, é importante promover o reconhecimento dos direitos das vítimas à verdade, à justiça, à reparação e à não repetição; reconhecer as graves violações dos direitos humanos, atribuindo a responsabilidade por algumas dessas violações, tornando visível uma história ainda não reconhecida que mostre e transmita a extensão do dano e a dor causada.
No entanto, é necessário saber que a linguagem dos direitos legais e humanos tem limites, "torna legíveis" algumas formas de sofrimento e outras” ilegíveis” por causa da prioridade dada à "necessidade de reconciliação nacional" com relação às outras necessidades das vítimas: distorce suas narrativas (modifica os significados, ignora a dimensão emocional do dano). Não é necessariamente uma oportunidade para curar as feridas ou entender o significado do sofrimento emocional.
Nas palavras de Rebecca Saunders (professora da Universidade Estadual de Illinois) é necessário "considerar o que é ganho e o que é perdido quando as expressões ligadas ao sofrimento são traduzidas para a linguagem normalizada dos direitos humanos".
Por fim, no que diz respeito à transformação de relações desfeitas, a tarefa de criar confiança no Estado e na sociedade pressupõe percorrer um caminho complexo para "cultivar o espírito de cidadania, um debate público, pluralismo e inclusão".
No campo da formação, é necessário continuar avançando em três âmbitos:
- desenvolver uma sensibilidade ético-política (compromisso com uma leitura sistêmica do dano, transformação dos espaços de acompanhamento, reconhecendo as diversas dimensões dos danos, necessidades e direito de todas as vítimas à ajuda e ao suporte psicossocial);
- leitura do contexto como lugar de trocas, interações e cenários em que os fatos ocorrem e têm significado e onde se elaboram as diferentes versões dos próprios fatos;
- desenvolver habilidades e capacidades para compreender, assistir e acompanhar grupos e organizações, incentivar ações como a caracterização psicossocial, oficinas de reflexão, exercícios de memória, elaboração de mapas a partir das redes sociais, diálogos significativos para a vida pessoal (Marcela Rodríguez Díaz, Maria Margarita Echeverri Buriticá, Maria Lucia Rapacci Gomez).
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16 de novembro de 1989, El Salvador chora 8 vítimas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU