30 Outubro 2019
Protestos no Chile continuam mesmo após o presidente Sebastián Piñera ter substituído gabinete ministerial. Manifestações desencadeadas pelo aumento de tarifa se transformaram numa revolta contra a desigualdade.
A reportagem é de Sophia Boddenberg, publicada por Deutsche Welle, 29-10-2019.
"Fuera Piñera!", bradam os manifestantes nas ruas de Santiago do Chile, enquanto se aproximam com panelas e tambores do palácio de governo La Moneda. Sua demanda é clara: elas querem a renúncia do presidente.
Uma nuvem de fumaça paira sobre a metrópole, que cheira a plástico queimado. Há barricadas por toda a cidade. Uma lanchonete e várias estações de metrô estão em chamas. Passada mais de uma semana do início de protestos em massa contra a desigualdade social no país, sente-se novamente a ira das pessoas nas ruas.
"Estamos fartos do abuso de poder por parte do governo. Um por cento da nossa sociedade detém a maior parte do dinheiro e, portanto, a maior parte do poder", diz Ariela Contreras, professora de arte, de 30 anos.
"Não podemos voltar à normalidade, ainda não conseguimos nada", lê-se no cartaz que ela tem em mãos. "As reformas propostas pelo governo são superficiais e não resolvem os problemas mais profundos. Não se trata de 30 pesos, mas de 30 anos de abuso de poder", afirma a professora.
As manifestações no Chile foram desencadeadas há mais de duas semanas quando a tarifa do metrô aumentou em 30 pesos. Contra esse aumento, os estudantes protestaram através das chamadas "evasiones", ações coletivas de viajar sem o tíquete. Os protestos então se espalharam do metrô para as ruas e se transformaram numa revolta contra a desigualdade social no país.
Eles também se direcionam contra a política econômica neoliberal, não apenas do atual governo, mas de todos os governos após o fim da ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990).
Durante a ditadura, foram lançadas as bases do modelo econômico neoliberal no Chile. A Constituição da ditadura é válida até hoje. Os sistemas de educação, aposentadoria e assistência médica, bem como o fornecimento de água e eletricidade são em grande parte privatizados. A situação nas instituições públicas, por outro lado, é muitas vezes precária.
Ricardo Cáceres, de 31 anos, é cirurgião e trabalha num hospital público da capital chilena. Ele também vai às ruas protestar. "Nos hospitais públicos do Chile, os medicamentos são escassos, as operações são canceladas por falta de meios suficientes e o dinheiro que deveria realmente ser investido no sistema público de saúde flui para o setor privado", reclama Cáceres.
Muitas vezes, não existem leitos suficientes em hospitais públicos, e é por isso que muitos pacientes precisam ficar sentados em cadeiras. "O maior problema é o abismo entre ricos e pobres- Há tanta injustiça no Chile que a situação tinha que explodir em algum momento", diz o médico.
Os protestos se espalharam por todo o país. O presidente Sebastián Piñera impôs o estado de emergência, o toque de recolher e enviou cerca de 10 mil soldados com veículos blindados para as ruas. Tais medidas não haviam sido tomadas por nenhum governo desde o final da ditadura militar.
Atualmente, o estado de emergência foi suspenso, mas a polícia ainda age com violência contra os manifestantes. Desde o início dos protestos, já se registraram 20 mortos, mais de mil feridos e mais de 3.500 presos.
"Piñera extinguiu o fogo com gasolina. Isso ninguém o perdoará", diz Gianina Araya, que também participa dos protestos em Santiago. "Muitas pessoas foram mortas e torturadas. O fato de o governo não se importar me deixa irada."
O Instituto de Direitos Humanos do Chile registrou quase cem casos de tortura e assédio sexual. O caso de um jovem de 23 anos que, após sua prisão, foi despido por policiais, espancado e abusado sexualmente com um bastão provocou revolta popular.
Mais de 15 mulheres, que foram abusadas sexualmente ou estupradas por policiais ou soldados, recorreram à Associação de Advogadas Feministas (Abofem). "São mulheres adultas e menores de idade que foram presas durante os protestos ou após o toque de recolher. Elas foram despidas, abusadas e ameaçadas com armas, e algumas foram até estupradas", informa a advogada Natalia Bravo.
"Nunca pensamos em registrar tais casos em tempos de democracia, mas o ruim é que há um número muito grande de meninas e mulheres não identificadas que têm vergonha e não se atrevem a registrar uma queixa", acrescentou a advogada.
Devido aos muitos mortos, feridos e presos durante os protestos, cada vez mais vozes classificam de inconstitucional o comportamento do governo chileno durante o estado de emergência. Tomás Ramírez, jurista e professor da Universidade do Chile, explica: "O que vivenciamos nesta semana é uma violação sistemática dos direitos de todas as pessoas, tenham elas protestado ou não. A ação do governo é inconstitucional e viola os acordos internacionais de direitos humanos."
Os parlamentares da oposição querem lançar um processo de impeachment contra o presidente Piñera por violação dos direitos humanos durante o estado de emergência. A aliança Frente Amplio e o Partido Comunista já coletaram 16 assinaturas de senadores, conforme anunciado nesta segunda-feira (28/10).
Dez assinaturas são suficientes para iniciar o processo, mas dois terços dos votos do Senado seriam necessários para leva-lo à frente. Atualmente, o órgão é composto por 43 membros. Além disso, nesta semana, uma delegação das Nações Unidas está chegando ao Chile para analisar a situação dos direitos humanos.
De acordo com recente pesquisa do instituto de opinião Cadem, a aprovação de Piñera caiu para 14%. Desde a redemocratização do Chile, nenhum presidente teve números tão baixos.
O levantamento também revelou que 80% da população considera inadequados os planos de reforma do governo. "Piñera tem que renunciar, ele tem que pagar pelos crimes que cometeu", diz Ariela Contreras. Mais protestos estão previstos durante toda a semana no Chile.
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“Não se trata de 30 pesos, mas de 30 anos de abuso de poder” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU