Papa Francisco, Newman e a canonização da consciência

Mais Lidos

  • Marco ecumênico: Autoridades vaticanas e luteranas pedem estudo conjunto da Confissão de Augsburgo

    LER MAIS
  • Marx pregou o ateísmo? Artigo de Frei Betto

    LER MAIS
  • Sexualidade e Pastoral: aos párocos e agentes de pastoral. Artigo de Eliseu Wisniewski

    LER MAIS

Newsletter IHU

Fique atualizado das Notícias do Dia, inscreva-se na newsletter do IHU


Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

17 Outubro 2019

“A canonização do cardeal John Henry Newman, um grande defensor da consciência, oferece uma oportunidade para considerar novamente as profundezas teológicas do retorno de Francisco a uma tradição católica negligenciada sobre a consciência.”

A opinião é do teólogo estadunidense David E. DeCosse, diretor de Ética Religiosa e Católica do Markkula Center for Applied Ethics, da Santa Clara University. O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 15-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Poucos temas teológicos do Papa Francisco evocaram tanta oposição quanto sua ênfase na consciência. Mais notavelmente, na Amoris laetitia, ele disse que a Igreja Católica é chamada “a formar as consciências, não a substituí-las”. Em resposta, os críticos lamentaram essa linguagem como uma porta aberta para o inevitável subjetivismo dos católicos divorciados em segunda união que podem decidir por conta própria se podem receber a Comunhão.

Mas o escritor Austen Ivereigh observou com inteligência que a ênfase de Francisco na consciência, de fato, é um apelo a um ensino da Igreja negligenciado, embora perene. A canonização do cardeal John Henry Newman, um grande defensor da consciência, oferece uma oportunidade para considerar novamente as profundezas teológicas do retorno de Francisco a essa tradição católica negligenciada.

Os santos não se enquadram nas categorias usuais de direita e esquerda, conservadoras e liberais. E esse certamente é o caso de Newman, um gigante intelectual inglês do século XIX e padre católico que, no auge de sua considerável reputação pública, abandonou um cargo distinto em Oxford para iniciar uma escola e trabalhar entre os pobres de Birmingham.

Suas inovadoras contribuições teológicas e literárias levaram o papa Paulo VI a chamar o Vaticano II de “Concílio de Newman”, e James Joyce a dizer que Newman era o melhor estilista inglês do século XIX.

Newman não escreveu um tratado teológico sobre a consciência, mas o tema teve um papel de destaque em algumas de suas maiores obras – especialmente a “Apologia Pro Vita Sua” (seu relato clássico da sua conversão do anglicanismo ao catolicismo); “Essay in Aid of a Grammar of Assent” e “A Letter Addressed to His Grace The Duke of Norfolk on Occasion of Mr. Gladstone's Recent Expostulation”.

Antes de Newman, a tradição teológica católica afirmava uma compreensão integrada da consciência em duas partes. Primeiro, a consciência referida a uma orientação humana inalienável e geral a buscar a verdade, a fazer o bem e a evitar o mal. Segundo, a consciência também referida a julgamentos morais práticos e específicos sobre algo que foi feito ou deve ser feito.

Newman adaptou essa tradição de uma maneira distinta. Ele reformulou a noção de consciência como uma orientação geral, ao enfatizar mais a conexão da consciência com a liberdade, a responsabilidade e a crença em Deus. Newman constatou que as provas clássicas para a existência de Deus tinham deficiências. Por outro lado, sua experiência pessoal e vivida da consciência fornecia toda a “prova” de que ele precisava.

Ele disse sobre essa experiência: “Quando eu a obedeço, eu sinto uma satisfação; quando eu a desobedeço, uma dor – exatamente como eu me sinto ao agradar ou ao ofender algum amigo reverenciado. O eco implica uma voz; a voz, um falante. Esse falante, eu amo e temo”. Por sua vez, Newman conectava o julgamento prático da consciência ao seu senso vívido de que, em questões morais concretas, sempre há uma exceção à regra.

Os católicos conservadores elogiaram os escritos de Newman sobre a consciência pela sua ênfase na verdade: a verdade que Newman encontrou ao se tornar católico e a verdade que ele combateu para se defender contra as forças relativizantes do liberalismo filosófico do século XIX.

Da mesma forma, os conservadores elogiaram a sua rejeição dentro da Igreja a uma confiança singular naquele que ele chamava de “julgamento privado” ou consciência. Mas essa apreciação conservadora de Newman muitas vezes ignorou como ele situava a consciência dentro de um mundo ricamente personalista, afetivo, social e histórico. De fato, ele rejeitava uma ênfase singular em um “julgamento privado” subjetivista. Mas, ao mesmo tempo, ele afirmava um papel indispensável para a consciência na vida da Igreja quando disse: “A Cristandade católica não é uma simples exibição de absolutismo religioso, mas apresenta uma imagem contínua da Autoridade e do Julgamento Privado que avançam e recuam alternadamente como o fluxo e refluxo da maré...”.

Aqui, Newman antecipa uma mutualidade sobre a qual Francisco disse de modo semelhante: “Não é preciso sequer pensar que a compreensão do sentir com a Igreja esteja ligada somente ao sentir com a sua parte hierárquica. (...) Não: é a experiência da ‘Santa Madre Igreja hierárquica’ (...) da Igreja como povo de Deus, pastores e povo em conjunto”.

Além disso, a declaração mais famosa de Newman sobre a consciência – “Certamente, se eu sou obrigado a levar a religião para os brindes depois do jantar (...) Eu irei beber – ao papa, se vocês quiserem – ou, melhor, primeiro à Consciência, e depois ao papa” – encontrou um desfavor entre os católicos que favorecem um forte papel para a infalibilidade da Igreja e do papa.

O filósofo jurídico católico John Finnis refletiu essa visão quando disse que o brinde de Newman indicava erroneamente que a consciência de um católico poderia ser dispensada de estar vinculada aos mandamentos universais e sem exceção que são objeto da infalibilidade da Igreja. Na verdade, a afirmação de Finnis sobre o que constitui um ensinamento moral infalível é candentemente contestada. Mas o contraste é claro entre o retrato de Finnis de uma consciência vinculada a mandamentos universais e sem exceção, e a evocação de Newman a uma consciência sintonizada com um mundo “onde as exceções devem existir em todas as questões concretas”.

Aqui também vemos o contraste entre a crítica da consciência subjetivista de João Paulo II na Veritatis splendor (uma crítica semelhante ao argumento de Finnis sobre Newman) e o elogio da consciência prudencial de Francisco na Amoris laetitia.

Com Francisco, é crucial entender que a recuperação da tradição católica de consciência não é um retorno ao subjetivismo, mas ela se baseia em um respeito inaciano pela imediaticidade do encontro em consciência entre cada pessoa e Deus semper maior, o Deus sempre maior. O papa Francisco falou desse encontro quando explicou a sua recusa a julgar as pessoas homossexuais de boa vontade que buscam a Deus: “A religião tem o direito de expressar a sua opinião a serviço do povo, mas Deus, na criação, nos libertou: não é possível interferir espiritualmente na vida de uma pessoa”.

Ao dizer isso, ele devia muito bem estar canalizando Newman, que especificamente evocava temas inacianos quando escrevia sobre a consciência: “Pois, novamente, aqui, em um assunto que consiste nos atos mais puros e diretos da religião – nas relações entre Deus e a alma, durante uma seção de recordação, de arrependimento, de boa resolução, de inquirição da vocação – a alma está ‘sola cum solo’; não há nenhuma nuvem interposta entre a Criatura e o Objeto da sua fé e amor”.

A tradição católica da consciência está em um momento de renovação. A canonização do cardeal Newman confirma as saudáveis profundezas teológicas desse retorno.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Papa Francisco, Newman e a canonização da consciência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU