05 Outubro 2019
"Se o protagonismo indispensável às providências que devem ser tomadas para garantir direitos sociais, ficar relegado ao juízo dos agentes públicos, a história já demonstrou que ele sempre chega atrasado, depois que a injustiça já se transformou em fato consumado", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Alimentação e moradia são condições de vida naturalmente dependentes de terra. Para o reconhecimento da satisfação dessas necessidades humanas vitais como direitos, é o uso da terra que a maioria das leis impõe ser provado como lícito. A interpretação e a aplicação das mesmas nem sempre respeitam esse dado elementar, pela distância que guardam da realidade, levando em consideração apenas a documentação existente sobre ela.
Se a tal defeito somar-se o número vergonhosamente inadmissível de mulheres e homens sem teto e com fome, no Brasil e no mundo, abatidos pelo pessimismo de se libertar de uma situação miserável como essa, não faltam perguntas sobre se alimentação e moradia são mesmo direitos e, se forem, qual a razão de não se refletirem nos fatos. Como os fins das leis que os prevêem nem são discutidos, tão inerentes à preservação da vida se mostram, é nos meios do seu acesso e gozo para todos os seres humanos que se enfrentam as maiores dificuldades para não serem excluídos (!) da sua condição jurídica de direitos, como excluídas, socialmente, são todas as vítimas da sua violação.
Três, entre muitas outras causas dessas dificuldades, podem ser identificadas facilmente à simples observação da realidade onde esses direitos reclamam presença. A primeira delas se encontra na forma de distribuição e utilização da terra. Desde a sua mais remota e primitiva ocupação pelos seres humanos até os modos atuais da sua apropriação e exploração, existe uma permanente disputa entre pessoas, grupos, países, sobre as mais variadas formas de isso ser feito, não havendo necessidade de se lembrar aqui todas as guerras e as tragédias que a história registra sobre esse conflito. Uma solução definitiva para eliminá-lo parece muito pouco provável, independentemente de todo o aparato legal que se tem construído para debelar os seus efeitos.
A segunda reside na própria previsão legal dos direitos sociais e de toda a polêmica armada pelo juridiquês sobre o onde, quando, como eles devem ser diferenciados dos individuais. Na Declaração universal dos direitos da pessoa humana de 1948, a visível generalidade das disposições ali contidas permitiu até a países - que tinham se confrontado como inimigos na segunda guerra mundial - unirem-se, pelo menos na aparência, para assiná-la. Como a Declaração contém uma lista de obviedades relativas à boa qualidade de vida dos seres humanos, cada um considerou vexatório não concordar com a sua redação. Reconhecidas as suas disposições como direitos, no geral, deixou-se, no particular, a escolha específica de todos os meios indispensáveis às suas garantias relegados para um futuro, de fato, descompromissado de qualquer vínculo obrigacional. Uma autêntica promissória com prazo de vencimento indeterminado. Aí, a chamada “progressividade” dos meios de acesso à casa e à comida (progresso econômico, progresso social, cultural, ambiental etc.), presente em algumas das disposições de declarações da ONU (Habitat inclusive), chega à letra das leis como um dogma dotado de um poder de efeito automático. É como se este denominado progresso fosse imune a qualquer retrocesso posterior, casa e comida hão de chegar em breve...
A terceira dificuldade é, talvez, a mais poderosa, pelo domínio que o seu paradigma ideológico-político de formulação e aplicação das leis exerce no mundo inteiro. É o poder econômico-financeiro capitalista o responsável por esse modelo. Com o objetivo não declarado de dominar o Estado e a terra (transformá-la toda em “território”), ele precisa de um aparato legal que disfarce esse propósito. Os seus representantes políticos, então, infiltrados nos poderes públicos, fazem previsão expressa de direitos sociais, via elaboração de projetos e votações de leis que, via conveniências conjunturais do capital e do mercado no presente e no futuro, fiquem privados de garantia e eficácia.
Nada disso é novidade, mas o que precisa ser continuamente repensado é se a efetiva proteção e defesa dos direitos sociais devem continuar esperando indefinidamente pelo Estado para ele decidir quando a “reserva de possível”, com que ele sempre se desculpa, não continuará reduzindo esses direitos a letra morta. O tempo, modernamente, ganhou tal velocidade para atender os interesses de poderosos grupos econômicos e financeiros, que não há centímetro de terra, subsolo, ar e água, que não esteja sob a ameaça de ser apropriado apenas por alguns, com exclusividade, colocando a vida da terra e das gentes sob permanente risco de extinção.
A organização e o ritmo da resiliência contrária a esse monstruosa forca nem se compara. Se o protagonismo indispensável às providências que devem ser tomadas para garantir direitos sociais, ficar relegado ao juízo dos agentes públicos, a história já demonstrou que ele sempre chega atrasado, depois que a injustiça já se transformou em fato consumado. No Brasil de hoje, então, pela forma como o atual (des)governo reprime esses direitos, colocando em cada ministério alguém contrário às suas garantias, tratando gente pobre como inimiga, do Estado é que não se pode esperar nada.
Daí a oportunidade de se pensar em alternativas, como as de empoderar as ações afirmativas, as que não se limitam a conquistar políticas compensatórias, mas abrem caminho para o poder constituinte popular produzir direito, como o do direito achado na rua, do pluralismo jurídico, entre outros exemplos. Para isso, a autoridade ético-política dessas ações vai ganhando prestígio e espaço até a revelia do Estado, fazendo-se próxima de quem este - pelo menos na administração atual que o dirige (?) - oprime, reprime e até desdenha.
Um apoio doutrinário específico sobre essas ações, pode ser encontrado no livro “Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade” do ex ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa Gomes, no qual ele se dedica a mostrar como ações afirmativas, promovidas pelo povo negro dos Estados Unidos, alcançaram amplo sucesso, vencendo as piores formas de racismo que o impediam de exercer os seus direitos, particularmente os sociais.
Em estudos de direito não alheios a militância popular contrária aos poderes públicos e privados indiferentes ou até hostis aos direitos sociais, como se o livre mercado os dispensasse, vale lembrar as publicações periódicas do “direito achado na rua”, organizadas pelo professor José Geral de Souza Junior, as obras de Antonio Carlos Wolkmer sobre o pluralismo jurídico e a série de estudos de Boaventura de Sousa Santos sobre sociologia crítica do direito. “Bifurcações da ordem” (São Paulo: Cortez Editora, 2016), é o volume 3 desta série. Nele, Boaventura distingue três tipos de direito, provando como existem e se fazem valer, de fato, na realidade. O direito estatal vigente, é identificado como configurativo, sujeito a uma “dualidade abissal”, por um duríssimo reflexo da divisão de classes existente na sociedade, imposta pelo sistema econômico capitalista juridicamente hegemônico:
“O direito estatal oficial foi pré-ocupado pelas elites do poder, pelos opressores. Esta pré-ocupação opera através de uma divisão radical entre dois sistemas jurídicos: o direito dos 1% e o direito dos 99%, o direito dos opressores e o direito dos oprimidos. Essa divisão é tão radical quanto invisível. Os dois tipos de direito coexistem no mesmo espaço geopolítico e a articulação entre eles é intrínseca apesar de invisível.” (página 359)
Dá para se ver retratado aí o que os direitos do povo pobre brasileiro estão sofrendo agora. Para enfrentar uma injustiça como essa, só a criação e o desenvolvimento de um poder contra-hegemônico, um direito reconfigurativo, como Boaventura o denomina, em linha bem semelhante àquela que as ações afirmativas pretendem promover:
“...sem uma reconfiguração profunda das relações de poder num sentido mais equitativo e democrático, não é possível reconfigurar o direito. Deste modo, o apelo não é dirigido, como de costume, à legislação constitucional, mas antes à uma democracia radical e a uma profunda reforma do Estado impulsionada de baixo para cima através de um processo político, participativo, no qual os 99% exerçam um forte poder constituinte.” (página 371).
O conselho é extraordinário e muito oportuno, mas o império atual do arrogante e prepotente veto a tal participação, imposto pelo 1% instalado no atual (des)governo, só pode ser vencido se os 99% das suas vítimas se unirem em oposição coletiva radical, rigorosamente planejada, decidida e ativamente executada.
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Sem ações afirmativas, os direitos sociais nascem mortos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU