18 Fevereiro 2017
"Embora ainda sem a unidade desejada para a grandeza dos seus objetivos, o lema-bandeira de ordem e progresso, propagandeado pelo governo, está sendo execrado como desordem e retrocesso, nisso não faltando críticas baseadas em dados que o governo ainda não conseguiu manipular e até, para seu desgosto, frequentando parte da mídia cúmplice do golpe por ele perpetrado", alerta Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
O grau de interesse e urgência imposto à execução de medidas administrativas dos Poderes Públicos, tramitação de projetos de lei considerados indispensáveis à implementação de políticas a seu cargo, processos judiciais entendidos como de julgamento prioritário, é um indicador preciso de uma realidade nem sempre visível, um outro grau de preocupação oculto, o da motivação inspiradora da pressa carente da pressão.
Comparadas as prioridades consideradas inadiáveis pelo Poder Executivo (?!) da União, para execução de políticas de interesse do capital privado, com a prorrogação indefinida, há décadas, das necessárias para garantir direitos humanos fundamentais sociais, o Brasil de hoje fornece um exemplo de como um Estado de Direito, um regime político democrático, todo um ordenamento jurídico e até uma Constituição, podem passar incólumes pelos efeitos esperados e não efetivados de cada uma dessas instituições, a ponto de elas vigerem sem mandar em coisa nenhuma.
Tudo se encontra soterrado sob uma atmosfera de crise geradora de um medo quase generalizado e pânico imposto ao povo, assim mantida artificialmente para assegurar-se, no presente, a impossibilidade de as novas providências legais, agora exigidas da sociedade, independentemente até do que, no passado, tinha sido considerado “pétreo”, ser questionada ou modificada depois. O ajuste fiscal, tão propalado quanto mal compreendido pela maioria do povo, considerado urgente e necessário - como se “fiscal” não implicasse nenhum outro valor que não o do equilíbrio das contas públicas, excluída qualquer cogitação das consequências sociais daí decorrentes - engessa o porvir da nação de modo a privar o seu futuro de qualquer criatividade suficiente para viver sob outro modelo de convivência humana.
Por mais que se tente disfarçar, o Brasil vem passando por situações idênticas em toda a sua história. Elas são consequência direta do tipo de economia refletida nos grupos de predominância política, aqui radicalmente interessados no seu interesse próprio, indiferentes ou até hostis a qualquer outro.
Marilena Chauí fez uma análise em profundidade dessa repetida inconveniência de exercício do poder. Num dos seus livros (Conformismo e resistência, aspectos da cultura popular no Brasil, São Paulo: Brasiliense 1986), fez uma advertência prévia para leitoras/es brasileiras/es e estrangeiras/es de que “não foi com pessimismo que o escrevi”, possivelmente preocupada em não desacorçoa-las/os com a extensão e a gravidade das crises sucessivas que o Brasil tem atravessado com frequência, como está acontecendo hoje:
“Uma crise nunca é entendida como resultado de contradições latentes que se tornaram manifestas pelo processo histórico e que precissam ser trabalhadas social e politicamente. A crise é sempre convertida no fantasma da crise, irrupção inexplicável e repetina da irracionalidade, ameaçando a ordem social e política. Caos. Perigo. Contra a “irracionalidade”, a classe dominante apela para técnicas racionalizaforas ( a célebre “modernização”), as tecnonologias parecendo dotadas de fantático poder reordenador e racionalizador. Contra o “perigo”, representado sempre pela manifestação explícita das classes populares, os dominantes partem em busca dos agentes “responsáveis pela subversão”, isto é, iniciam a caça às bruxas que ameaçam a “paz nacional” e a “união da família brasileira”. Finalmente, contra o “caos”, a classe dominante invoca a necessidade da “salvação nacional.” ( o grifo é da autora, na pág. 60).
Esse modo de enganar precisa ser conhecido, desautorizado e desmoralizado pelo conjunto da população. Internautas de variada ideologia, partido político, movimento popular e religião estão trocando informações e, diante do aprofundamento das tendências obscurantistas dos reais propósitos dessa “crise”, estão mobilizando uma inconformidade popular, essa sim urgente e necessária, para enfrentar com coragem, com força e determinação, essa avalanche de medidas oficiais tomadas contra direitos humanos conquistados com muito sacrifício no passado.
Embora ainda sem a unidade desejada para a grandeza dos seus objetivos, o lema-bandeira de ordem e progresso, propagandeado pelo governo, está sendo execrado como desordem e retrocesso, nisso não faltando críticas baseadas em dados que o governo ainda não conseguiu manipular e até, para seu desgosto, frequentando parte da mídia cúmplice do golpe por ele perpetrado.
Quando a colonização europeia chegou a América, escravizando e matando a população nativa, não lhe faltou fundamentação legal para agir como agiu, uma comprovação histórica de que a lei pode ser o motor da injustiça. Bartolomé de Las Casas, então, defendeu as/os índias/os com argumentos jurídicos até hoje válidos, enraizados num indormido “direito natural”, um direito sempre criticado, mas de muito difícil deslembrança, quando se trata de dignidade humana, direitos humanos, cidadania, imperativo ético inerente a qualquer ordem, em tempos como o de agora no Brasil.
Um desses argumentos lembrava princípio jurídico polêmico por sua própria natureza: “Obedeça-se, mas não se cumpra”. Se, para qualquer outra finalidade, o princípio pudesse parecer forma de ludibriar a autoridade opressora do povo indígena, esse tratava de se socorrer dele para, ainda na hipótese de não se libertar de todo dos efeitos perversos das leis espanholas, manter uma “atitude” neutralizada por uma “ação”.
Como isso era e ainda hoje possível, legítimo? A própria etimologia (ciência das raízes de significação das palavras, aqui esclarecida para leitoras/es pouco familiarizadas/os com o seu estudo) distingue a palavra obediência de uma ordem da palavra cumprimento dela. Obediência vem do latim, conforme explica Esquivél Obregon, como "atitude de uma pessoa que escuta a outra, atitude de atenção e respeito." Nada mais que uma atitude, portanto. Cumprir, de forma muito diferente, também vem do latim "complere", mas significa “acabar, completar, aperfeiçoar, ou seja, tem o sentido de uma ação.”
A desobediência popular, então, às medidas do governo impopular aqui no país impondo desgoverno, pode se socorrer do mesmo princípio jurídico para, em mera atitude de escuta e atenção, descumprir, em ação e de fato, tudo quanto ele ordenar.
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Quando a desobediência e o descumprimento da lei se justificam plenamente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU