17 Outubro 2014
"Com a mídia brasileira toda voltada para as eleições, quase nenhuma atenção tem merecido o fato de um número grande de pessoas pobres sem-teto estarem na iminência de sofrerem o desapossamento de alguns espaços urbanos ocupados, em Porto Alegre. De julho para cá, mais de vinte mandados judiciais de reintegração de posse já foram expedidos contra elas, alguns já cumpridos e outros na iminência de o serem", escreve Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
“Espere um pouco” é uma expressão corriqueira mas, conforme o caso, ambígua na sua formulação e ambivalente nos seus efeitos. Se for um simples pedido, dado como resposta à uma solicitação sem urgência, vai ficar restrito, quase certamente, às regras da boa educação; se for uma ordem, ainda mais se partida de autoridade, a quem tem direito urgente de ser atendido, vai ser sempre uma solicitação muito incômoda, em muitos casos irritante e injustificada.
Bem antes do antigo programa de governo “Fome Zero”, por exemplo, tentando instituir uma política pública capaz de satisfazer uma necessidade vital como essa, com a presteza que ela exige, Betinho já tinha lançado uma campanha nacional com um lema muito expressivo não só para motivar mas também para estimular ações eficazes de enfrentamento do problema, fossem públicas, fossem privadas: “quem tem fome tem pressa.”
Num sistema jurídico como o nosso, alimentação e moradia são necessidades vitais, cuja satisfação é reconhecida como direito fundamental social, pelo art. 6º da Constituição Federal. O sucesso ou insucesso, entretanto, das garantias devidas a tais direitos, ficam dependentes de duas circunstâncias: a postura de quem, pessoa, órgão público, sindicato, partido, ONG, igrejas, seja lá o que for, que toma conhecimento de uma necessidade alheia cuja satisfação seja intransferível, está consciente da urgência ali implicada e se dispõe a providenciar o que puder para impedir o fatal prejuízo decorrente de nada fazer; ou aquela atitude, geralmente assumida sem má consciência do tipo “O que tenho eu, nós, o Poder Público, ou outras organizações da sociedade civil como as referidas acima, a ver com isso?”. Essa é uma outra forma de não se deixar envolver pelo problema, esquecer o que pode ser feito já nem se pensa o suficiente para diminuir os seus efeitos, quanto mais para resolvê-lo.
Esse último procedimento é indesculpável se for o adotado pelo Poder Público, bem como antigas lições relacionadas com os direitos humanos preconizam. Elas distinguem os direitos civis e políticos dos sociais, culturais e ambientais, exatamente pela visível diferença de tratamento que uns e outros exigem do Estado. Para os primeiros, o quanto convier a omissão, ou seja, a guarda de uma distância que favoreça o máximo de liberdade para o seu titular. O direito ao voto, ora em pleno exercício no país, é um exemplo adequado. Para os segundos, o máximo de ação, o maior respeito pela criação de meios e garantias capazes de torná-los eficazes.
O ritmo exigido para essa ação, portanto, tem que ser condizente com o grau de urgência impondo atenção e satisfação das necessidades que estiverem em causa. O povo sem-terra e sem-teto, índias/os e quilombolas, catadoras/es de material, integram uma parte considerável do nosso povo pobre brasileiro, entre outros, não havendo razão para se lembrar o quanto a própria vida das pessoas depende desses direitos à moradia e à alimentação.
Com a mídia brasileira toda voltada para as eleições, quase nenhuma atenção tem merecido o fato de um número grande de pessoas pobres sem-teto estarem na iminência de sofrerem o desapossamento de alguns espaços urbanos ocupados, em Porto Alegre. De julho para cá, mais de vinte mandados judiciais de reintegração de posse já foram expedidos contra elas, alguns já cumpridos e outros na iminência de o serem.
De conjunturas como essa, porém, tem-se, lamentavelmente, notícia diária. Ocupações no campo e nas cidades, sendo reprimidas por mandados judiciais munidos de força pública, com efeitos os mais dramáticos, desde humilhações morais, lesões corporais e até mortes. Se há uma injustiça social empurrando esse povo a fazer justiça pelas próprias mãos, tal a indiferença, o desrespeito com que a sua dignidade e cidadania são tratadas no Brasil, o uso da violência contra ele só vai acentuar essa injustiça.
Como é no Poder Judiciário que esses conflitos acabam exigindo resposta, o debate sobre eles tem freqüentado a pauta de muitos encontros de estudo, seminários, congressos de estudantes, professores, ONGs, lideranças de movimentos sociais e profissionais do direito. Aí se observam opiniões as mais diversas, desde as que objetivam reforçar ainda mais o poder da mais rápida e violenta repressão, prejulgando tudo como crime, até aquelas mais preocupadas com as causas socioeconômicas responsáveis por essas manifestações massivas.
As últimas, embora ainda em minoria, já contam com alguns precedentes doutrinários e jurisprudenciais importantes, testemunhando a gravidade da insuficiência e da visível defasagem do nosso ordenamento jurídico para tratar desses conflitos. Um exemplo recente dessa constatação foi feito pelo Superior Tribunal de Justiça, julgando um pedido de intervenção no Estado Paraná em razão de um mandado de reintegração de posse contra sem-terras não ter sido obedecido pela força pública do Estado (Intervenção federal nº 111, PR (2014/0003456-0).
A decisão do STJ foi unânime, seguindo o relator, ministro Gilson Dipp, em cujo voto pode-se ler o seguinte: “Ocorre que o Governador do Estado considera inexistir desobediência uma vez que o cumprimento da ordem pode vir a provocar estado de conflito social ou coletivo e possíveis danos ou lesões muito mais graves que o prejuízo do particular proprietário que perdeu a posse. As justificativas alinhadas pelo Poder Público local procuram mostrar que a ordem judicial nesse caso deve ceder ante um quadro de circunstâncias capazes de tornar ilegítima a atuação do Poder Judiciário em favor de uma pessoa quando os efeitos danosos e negativos podem se abater sobre dezenas de outras. Em suma, pelo principio da proporcionalidade não deve o Poder Judiciário promover medidas que causem coerção ou sofrimento maior que sua justificação institucional e assim sua recusa não é ilícita. Os números da causa mostram, segundo as últimas informações, que a remoção das 190 pessoas que ocupam o imóvel, já agora corridos vários anos, constituindo cerca de 56 famílias sem destino ou local de acomodação digna, revelam quadro de inviável atuação judicial, assim como não recomendam a intervenção federal para compelir a autoridade administrativa a praticar ato do qual vai resultar conflito social muito maior que o suposto prejuízo do particular.”
Se todos os julgamentos do país sobre lides dessa natureza, seguissem tal orientação e, em vez de afirmarem sua autoridade a custa da repressão e da violência, fizessem-no chamando as partes em litígio e as representações de outros Poderes responsáveis pelo seu deslinde, valorizando as formas modernas de conciliação e negociação como o PNDH3 preconizava, muitas famílias pobres vítimas da repressão judicial não estariam chorando a morte de parentes abatidos por esse tipo de inadequada e injusta ação policial.
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Alimentação e moradia constituem direitos ou não? Porto Alegre está perguntando isso, hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU