19 Setembro 2019
Biólogos de todo o mundo participam de uma corrida rumo à edição genética — que permitirá curar doenças e “aprimorar” a natureza e o ser humano. Mas quais as consequências, num mundo hoje marcado por desigualdades e preconceitos?
O artigo é de Walter Isaacson, professor de história em Tulane e autor das biografias de Benjamin Franklin, Albert Einstein, Steve Jobs e Leonardo da Vinci, publicado por OutrasPalavras, 13-09-2019. A tradução é de Gabriela Leite.
Biologia é a nova tecnologia. Fui a uma conferência na cidade de Quebec sobre CRISPR [sigla em inglês para “Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Espaçadas”], a ferramenta molecular projetada para editar genes, e senti a mesma energia das reuniões que o Homebrew Computer Club [grupo de entusiastas de computadores que se reunia nos EUA nos anos 1970 e 80] fazia na Feira de Computadores nos anos 1970. Exceto que os jovens inovadores agora estão programando com código… genético. Agora que as escolas estão finalmente percebendo que toda criança deveria aprender a programar, elas terão que passar a ensinar, no lugar do 0101, o AGCT, as quatro bases do DNA.
Muitos dos cientistas pioneiros estavam lá, incluindo Jennifer Doudna, da universidade de Berkley, EUA, uma das pessoas que descobriu, em 2012, como combinar dois trechos de RNA com uma enzima para fazer uma tesoura que poderia cortar o DNA em uma localização precisa; e Feng Zhang, do Broad Institute, EUA, que concorreu com ela para mostrar como a ferramenta poderia editar genes em seres humanos, e está agora em uma batalha com ela pelas patentes da tecnologia.
A atmosfera é carregada com a combinação catalisadora de competição e cooperação remanescente de quando Bill Gates e Steve Jobs frequentaram os primeiro encontros de computadores pessoais. As grandes notícias envolvem transposões, conhecidos como “genes que saltam”, que na natureza podem pular de um lugar para outro em cromossomos. Sam Sternberg, um jovem bioquímico brilhante que estudou para Doudna, acabara de publicar seu primeiro paper inovador, que descreve como criar um sistema parecido com o CRISPR que insere um gene de salto personalizado no local desejado no DNA. Mas, para a surpresa de Sternberg, Feng Zhang conseguiu escrever um paper similar de sua autoria em uma publicação, alguns dias antes. “Existe algum campo tão degolador e competitivo quanto a pesquisa biológica?”, me pergunta Sternberg.
Bem, sim: eu penso que na verdade qualquer área pode ser assim, desde negócios, passando por jornalismo, até o campeonato de baseball. O que realmente distingue as pesquisas sobre biologia é a colaboração que a entrelaça. A camaradagem de serem guerreiros rivais em uma busca comum enche a conferência. O desejo de ganhar prêmios e patentes tende a criar competição — o que estimula o ritmo das descobertas — mas é igualmente motivante. Acredito que é a paixão de descobrir o que Leonardo da Vinci chamou de “trabalho infinito da natureza”, especialmente quando diz respeito a algo que é tão absurdamente lindo quanto os mecanismos internos de uma célula viva. “As descobertas sobre o gene que salta mostram o quanto a biologia é divertida”, diz Doudna.
Alguns de nós jantamos em um restaurante inventivo chamado Chez Boulay, que servia bolinhos crocantes de foca, enormes vieiras cruas, salmão do Ártico, bisão grelhado, gin e vinho produzidos no Quebec. O papo ia de ciência a questões éticas que pairam sobre o CRISPR. Feng Zhang e outro dos cientistas pioneiros, Erik Sonthemeier, falam sobre a necessidade de uma moratória para interromper edições que podem ser herdadas. Mas os genes já podem estar fora da garrafa. Em novembro, um médico chinês fez o anúncio explosivo de que havia editado dois embriões para tentar fazê-los imunes ao HIV, e um médico russo está divulgando seus planos de editar embriões para tentar curar a surdez congênita.
Há uma concordância geral entre os cientistas no jantar que, quando for seguro e prático, edições genéticas deveriam ser usadas para curar mutações malignas de um único gene, como a doença de Huntington e anemia falciforme. Mas ficam com o pé atrás com a ideia de usar edição de genes para aprimoramentos humanos, como tentar dar aos filhos mais massa muscular ou altura, ou quem sabe um QI mais alto e habilidades cognitivas. O problema é que a distinção é difícil de ser definida — prevenir a obesidade é uma cura ou um aprimoramento? — e ainda mais difícil de ser aplicada. “Veja o que os pais são capazes de fazer para pôr seus filhos na faculdade”, diz Feng Zhang. “Algumas pessoas certamente pagarão para aprimoramento genético.”
“Um grande problema com o aprimoramento é o acesso igualitário”, complementa Sonthemeier. “Será que pessoas ricas devem poder comprar os melhores genes que conseguirem pagar?” Isso levaria à distopia descrita por Aldous Huxley em seu romance de 1932 Admirável Mundo Novo, em que a modificação de embriões produz um sistema de castas que divide líderes de inteligência aprimorada e trabalhadores braçais atrofiados. Nosso mundo já sofre demais com a diferença cada vez maior de riqueza e oportunidade, e um livre mercado para melhorias genéticas pode produzir um salto quântico nessas desigualdades. E também codificá-las permanentemente. “Em um mundo no qual há pessoas que não têm acesso a óculos”, diz Feng Zhang, “é difícil imaginar como encontraremos uma maneira de oferecer acesso igualitário ao aprimoramento genético. Pense no que isso fará à nossa espécie.”
Falando de desigualdade financeira, viajei de Quebec a Aspen, no estado norte-americano do Colorado, para entrevistar alguns dos principais formuladores de políticas do mundo, que estão lutando com o desafio de regular o uso de CRISPR: Duanqing Pei, um charmoso biólogo celular chinês que dirige o Instituto de Biomedicina de Cantão; Victor Dzau, um refugiado chinês que é presidente da Academia Nacional de Medicina dos EUA; e minha amiga Peggy Hamburg, presidente da Associação Americana para o Avanço da Ciência e ex-comissária da Administração de Alimentos e Medicamentos, que foi nomeada copresidente do comitê consultivo da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre edição genética.
Pei e Dzau estavam em Hong Kong em novembro do ano passado, quando o cientista chinês Jiankui He fez sua revelação espantosa de que tinha editado o DNA de duas gêmeas recém-nascidas quando ainda eram embriões em estágio inicial. Pei soube do anúncio iminente a partir de Jennifer Doudna, quando chegou ao saguão do hotel de Hong Kong. “Foi difícil acreditar”, ele diz. “Estávamos todos parados lá tentando entender o que isso poderia significar.” Ficou horrorizado, disse, porque há uma restrição na China a tais experimentos, e ele assegurou a pesquisadores globais que isso não aconteceria. Então, como Hamburg e Dzau, ele agora percebe que será quase impossível para a OMS, ou quem quer que seja, trazer uma política global que possa se fazer cumprir em qualquer lugar.
“Não existe uma estrutura única que vai servir para todos os países”, diz Hamburg. “Cada um tem uma atitude diferente e seus padrões regulatórios, como já acontece com a modificação de alimentos.” Portanto, a OMS provavelmente criará um menu de opções para os países considerarem. Isso poderia, infelizmente, levar ao turismo genético. Pessoas privilegiadas que queiram aprimoramentos vão viajar para países que possam oferecê-los. “É muito difícil forçar práticas e padrões”, diz Hamburg. “Não é a mesma coisa que armas nucleares, que podem ser guardadas por seguranças e cadeados para impor um regime de segurança.”
De Aspen, parti para o Laboratório de Cold Spring Harbor, na costa norte de Long Island, também nos EUA, onde o prêmio Nobel James Watson, de 91 anos de idade, vive com sua esposa em um exílio esplêndido e torturado em uma mansão imponente e pálida, com vista para a Baía de Oyster e os prédios dos seminários para os quais ele não é mais convidado. Watson ajudou a iniciar a marcha da biologia molecular em direção à edição genética, quando ele e seu colega Francis Crick descobriram, em 1953, parcialmente baseados em imagens de difusão de raios-X produzidas por Rosalind Franklin e Maurice Wilkins, a estrutura de dupla hélice e o esquema de codificação de quatro bases do DNA.
Há uma década, Watson falou, para um repórter de um jornal britânico, que sabia, de maneira contundente e não filtrada, sobre sua crença de que há diferenças no QI médio de vários grupos étnicos, sendo o dos africanos mais baixo, e que essas diferenças são amplamente genéticas. Logo pediu desculpas, dizendo que “não há base científica para tal crença”, e foi forçado a se aposentar de sua posição de chanceler do Laboratório de Cold Spring Harbor, que liderou, junto a outros, por 40 anos. Mas, há um ano, quando foi entrevistado para um documentário de televisão, confirmou suas opiniões. O conselho de Cold Spring Harbor emitiu uma nota chamando suas opiniões de “infundadas … imprudentes … repreensíveis, sem o apoio da ciência”, e retirou seus títulos honorários.
Watson, pronto, apresenta aos historiadores o que poderia ser chamado de O Dilema de Jefferson; até que ponto você pode respeitar alguém por suas grandes realizações (“nós mantemos essas verdades”), quando estão acompanhadas por falhas repreensíveis (“todos nascemos iguais”)? Uma pergunta, levantada pelo Dilema de Jefferson, se relaciona, pelo menos metaforicamente, com a edição genética. Excluir um gene relacionado a uma característica indesejada (anemia falciforme ou receptividade do HIV) pode afetar algumas características desejáveis existentes (resistência à malária ou ao vírus do Nilo Ocidental).
Pelo que vale a pena, eu pessoalmente acredito que é igualmente verdadeiro, moral e útil acreditar que as falhas das pessoas não podem ser perdoadas por dizer que elas estão entrelaçadas com sua grandeza. Mas acredito, ainda assim, que podemos aprender com pessoas que fizeram grandes conquistas, mesmo quando nos afastamos de suas falhas.
Então, pergunto a Watson o que ele pensa sobre o CRISPR. “O que Jennifer fez foi o maior avanço na ciência desde a descoberta da dupla hélice”, diz. “Mas é importante usar a descoberta para que seja equitativa. Se só for usada para resolver problemas e desejos dos 10% mais ricos, vai ser terrível. Nas últimas décadas, evoluímos cada vez mais para uma sociedade desigual, e isso a pioraria muito.”
Um passo que pode ajudar um pouco, ele sugere, é não permitir ou reforçar patentes para técnicas de engenharia genética. Ainda haveria muito financiamento para encontrar maneiras seguras de corrigir doenças claramente devastadoras, como a anemia de Huntington e as células falciformes. Mas, se não houvesse patentes, provavelmente haveria menos recompensa para as corridas para ser o primeiro a criar métodos de aprimoramentos. E os aprimoramentos que eventualmente forem inventados poderão ser mais baratos, e mais amplamente disponíveis, se alguém puder copiá-los. “Eu aceitaria uma certa desaceleração na ciência, se, em contrapartida, isso a tornasse mais acessível”, ele diz. “Mesmo que não patenteemos esses produtos, alguns pesquisadores ainda ficariam ansiosos para não abandonar a ciência e fazer descobertas. É isso que motiva a vida dos pesquisadores.”
Voltando para casa, em Nova Orleans, fui ao funeral da amada grande dama da cidade, Leah Chase, que morreu aos 96 anos após tocar por quase sete décadas um restaurante no bairro do Tremé. Com sua colher de pau, mexia o roux [molho espesso, de origem francesa, feito com farinha de trigo e manteiga] para sua sopa Gumbo de camarão e linguiça (uma xícara de óleo de óleo de amendoim e oito colheres de sopa de farinha) até que ficasse da cor de café com leite, e conseguia unir os mais diversos ingredientes. Chase era uma negra Creole, e seu restaurante, assim como sua vida, uniam os muitos sabores da vida de Nova Orleans, preta, branca e crioula. A pequena nobreza da cidade alta encontrava com líderes políticos e ativistas pelos direitos civis em sua sala de jantar no final dos anos 1960, para tentar manter a cidade unida.
Pessoas como Leah Chase me lembram as ligases, enzimas que podem ligar e costurar fios de DNA. Hoje, as células de nossa sociedade possuem muito poucas ligases, e há gente demais que age como nucleases, as enzimas que cortam, clivam e dividem nosso DNA.
O Bairro Francês, onde vivemos, está saltitante nesse final de semana. Há uma bicicletada pelada que se destina (curiosamente) a reivindicar a segurança do trânsito. Também acontece um dos muitos desfiles e second lines [um tipo de desfile tradicional de Nova Orleans] para celebrar a vida de Mac Rebennack Jr., o músico de funk norte-americano conhecido por Dr. John. Também há uma parada do orgulho gay e blocos de festas relacionadas a essa cultura. Coexistindo alegremente, acontece o Festival do Mercado Francês de Tomate Creole, com seus caminhões trazidos por fazendeiros e cozinheiros que mostram as muitas variedades de suculentos tomates locais não geneticamente modificados.
De minha varanda, fico maravilhado com a diversidade da humanidade que passa. Há pessoas baixas e altas; homo, hétero e transexuais; gordas e magras, brancas e negras; e até algumas vestindo camisetas da Universidade de Gallaudet animadamente usando a linguagem de sinais. A suposta promessa do CRISPR é de que nós, um dia, conseguiremos escolher quais dessas características queremos em todos os nossos descendentes. Poderíamos escolher que sejam altos e musculosos, loiros e de olhos azuis, não surdas e não… bem, selecione suas preferências.
Enquanto examino o delicioso espetáculo público com toda sua variedade natural, pondero como a promessa do CRISPR pode também ser seu perigo, em sua superioridade, com a codificação de oportunidades desiguais. Levou mais de 3,2 bilhões de anos para que as leis e o deus da natureza tecessem três bilhões de bases de DNA, de uma maneira complexa e ocasionalmente imperfeita, para permitir toda a maravilhosa diversidade de nossa espécie. Estamos certos de pensar que podemos agora chegar e, em algumas décadas, editar todo o genoma para eliminar o que vemos como imperfeições? Será que perderemos nossa diversidade? Será que nos tornaremos menos saborosos, como nossos tomates? Será bom para nossa espécie?
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Aos super ricos, os super genes? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU