Por: Patricia Fachin | 09 Agosto 2017
A possibilidade de editar ou modificar uma sequência do código genético de um organismo, especialmente um embrião humano, é ao mesmo tempo “revolucionária” e “perturbadora”. Se por um lado já é tecnicamente possível editar a linha genética do embrião para evitar que determinadas doenças sejam repassadas às gerações futuras, por outro lado, mutações off-target [fora do alvo], durante a edição, poderiam introduzir novas doenças, talvez passíveis de serem descobertas apenas após o início da vida reprodutiva da pessoa. Isso poderia comprometer a saúde de todos os seus descendentes. "As consequências seriam catastróficas, portanto, não apenas para o indivíduo cujo genoma foi editado, mas para todos os seus descendentes”, pondera o filósofo Marcelo de Araujo à IHU On-Line. Segundo ele, “é por essa razão que, até agora, em todas as pesquisas com o uso de CRISPR-Cas9 em células embrionárias, foi de antemão veementemente descartada a intenção de se implantar o embrião em um útero”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Araujo, que acompanha as discussões éticas envolvendo a edição genômica, comenta a primeira tentativa de criar embriões humanos geneticamente modificados nos EUA com o uso da ferramenta CRISPR-Cas9, já utilizada com esse mesmo propósito em pesquisas feitas na China anteriormente. Na avaliação dele, a utilização dessa tecnologia “envolve uma consideração ética importante” em relação à “segurança desse procedimento para as gerações futuras”. Além disso, questiona, “podemos nos perguntar, por exemplo, quem terá acesso à edição genômica. Se apenas as pessoas muito ricas tiverem acesso ao procedimento, isso não poderia contribuir para agravar ainda mais desigualdades sociais já existentes?”
Araujo ressalta ainda que por enquanto o uso de edição do código genético para aprimoramento humano, ou seja, “para a seleção de características específicas como inteligência mais elevada”, ainda não é permitido, mas frisa que “à medida que o conhecimento nessa área for aumentando, a possibilidade de se recorrer à edição genômica para fins de aprimoramento (e não apenas para fins de tratamento de doenças congênitas) terá de ser levada a sério, e isso exigirá um amplo debate ético no âmbito da sociedade civil e da comunidade científica internacional”.
Marcelo de Araujo | Foto: Arquivo pessoal
Marcelo de Araujo possui graduação e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, doutorado em Filosofia pela Universität Konstanz, da Alemanha, 2002. Atualmente, é professor de Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e professor de Filosofia do Direito na UFRJ.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você recebeu a notícia de que foi realizada a primeira tentativa de criar embriões humanos geneticamente modificados por pesquisadores do Oregon Health and Science University, nos EUA?
Marcelo de Araujo - Com surpresa. Eu venho acompanhando a discussão sobre a ética da edição genômica desde abril de 2015, quando um grupo de pesquisadores chineses publicou um artigo sobre a realização de um experimento que envolvia a “edição” ou modificação do genoma de embriões humanos. Foi a primeira vez que um experimento desse tipo foi realizado. Como o experimento da equipe chinesa, na época, provocou muita discussão na comunidade científica internacional, autorizações para a realização de novos experimentos desse tipo, pelo menos fora da China, foram amplamente divulgadas em boletins científicos antes mesmo da realização dos próprios experimentos.
No início de 2016, por exemplo, uma equipe de cientistas do Instituto Francis Crick recebeu do governo britânico permissão para usar CRISPR-Cas9 em embriões humanos [1]. Poucos meses depois, em junho de 2016, pesquisadores do Instituto Karolinska, na Suécia, também obtiveram permissão do governo sueco para a realização de pesquisas com a edição do genoma de embriões humanos [2]. Que esse tipo de pesquisa, mais cedo ou mais tarde, seria realizado nos Estados Unidos também, isso parecia relativamente claro. Mas eu imaginei que os planos para a realização de um experimento envolvendo a edição do genoma de embriões humanos, nos Estados Unidos, seriam divulgados com alguma antecedência. Daí a minha surpresa.
Isso não significa, evidentemente, que a pesquisa americana não tenha sido submetida a um conselho de ética. Pelo contrário, a pesquisa parece ter sido acompanhada de perto por um comitê. Isso não significa também que a pesquisa científica nos Estados Unidos seja, de modo geral, menos transparente do que na Inglaterra ou na Suécia. O que deve ter ocorrido, a meu ver, foi o seguinte: pesquisas com embriões humanos não são proibidas nos Estados Unidos, mas elas não podem ser financiadas com verbas do governo federal. O experimento que ocorreu no Oregon Health and Science University foi financiado por meio de doações privadas. Isso, eu acredito, pode ter contribuído para que os planos para a realização do experimento não tenham sido muito divulgados com antecedência.
A primeira notícia sobre essa nova pesquisa nos Estados Unidos veio através da MIT Technology Review, em 26 de julho [3]. Mas o artigo da equipe de cientistas, com detalhes sobre o experimento, só foi publicado online, na revista Nature, em 2 de agosto [4]. Entre os oito dias que separaram uma publicação da outra, apareceram na imprensa muitas especulações e exageros sobre a utilização de CRISPR-Cas9 em embriões humanos. Esse tipo de reação, como notou Henry Greely, da Universidade de Stanford, pode acabar contribuindo para propagar mais pânico e desinformação do que esclarecimentos sobre o que está realmente em questão nesse tipo de pesquisa [5].
IHU On-Line - O que é a "técnica" ou "ferramenta" CRISPR-Cas9 e como ela tem sido usada no meio científico?
Marcelo de Araujo - O genoma de um organismo é constituído por uma longa sequência de instruções que regulam a construção e manutenção desse organismo. Essas instruções, que se encontram no núcleo de cada célula, são representadas por uma longa sequência de quatro letras: A, T, G e C. O genoma humano, por exemplo, é representado por uma sequência de aproximadamente 3 bilhões de letras. O genoma humano já foi (praticamente) todo mapeado, graças ao famoso Projeto Genoma Humano, levado a cabo entre 1990 e 2003. Os cientistas já são capazes de “ler” e compreender várias sequências de instruções do genoma humano. Mas uma coisa é poder “ler”, outra coisa é poder “editar” essas instruções de modo a corrigir, deletar, ou introduzir novas instruções. O CRISPR-Cas9 não é a primeira ferramenta usada para “editar” o genoma, mas ele é, até agora, a ferramenta mais fácil de usar, a mais precisa, e a mais barata que já foi criada para esse propósito.
CRISPR-Cas9 já foi usado para se editar, por exemplo, o genoma do mosquito que transmite a malária de modo a torná-lo incapaz de transmitir a doença. Ele já foi usado também na produção de cogumelos que não ficam escuros após serem colhidos; na criação de salmões que crescem mais rapidamente; e na produção de sementes de batata, arroz, e soja mais resistentes a pragas. Já existem também planos para a utilização de CRISPR-Cas9 em porcos que teriam corações passíveis de serem transplantados em seres humanos [6]. Isso reduziria drasticamente o número de mortes anuais decorrentes da falta de órgãos para transplantes. Todas essas aplicações suscitam uma série de questões éticas. Mas é, sobretudo, a utilização de CRISPR-Cas9 em embriões humanos que vem gerando mais controvérsia na comunidade científica internacional e na sociedade civil em âmbito global.
IHU On-Line - Qual é a diferença entre essa pesquisa envolvendo o uso de CRISPR-Cas9 em embriões humanos, recentemente realizada nos Estados Unidos, e as outras pesquisas desse tipo realizadas na China nos últimos anos?
Marcelo de Araujo - A primeira pesquisa desse tipo foi realizada na China, em abril de 2015. Outras duas pesquisas se seguiram, uma em 2016 e outra em 2017, também na China [7]. Duas diferenças importantes devem ser destacadas na pesquisa realizada nos Estados Unidos: a ausência de mutações off-target e o índice muito baixo de mosaicismo.
A edição genômica tem como objetivo modificar uma sequência específica no genoma (no código genético) de um organismo. Mas às vezes os pesquisadores podem, por assim dizer, “errar o alvo” e realizar alterações em sequências do genoma que deveriam permanecer intactas. Esse tipo de erro é conhecido como mutação off-target. A possibilidade de ocorrência de mutações off-target compromete a segurança do uso clínico de CRISPR-Cas9, isto é, o uso de edição genômica em embriões com vistas à produção de uma gestação completa. Se ocorrerem mutações off-target em células do embrião, o indivíduo, mais tarde, pode acabar tendo uma série de problemas de saúde que não teria se a edição genômica não tivesse sido realizada.
Mesmo que mutações off-target não ocorram, outro problema que deve ser evitado é que surja no organismo uma espécie de “mosaico” de células que foram modificadas com sucesso e células em que a modificação não ocorreu. Esse fenômeno é denominado “mosaicismo”. A pesquisa realizada nos Estados Unidos relata um número bastante baixo de mosaicismo, o que representa outro grande avanço em face das pesquisas realizadas anteriormente na China.
Outro ponto que deve ser mencionado diz respeito aos embriões utilizados. O experimento realizado nos Estados Unidos utilizou embriões viáveis, produzidos especialmente para essa pesquisa. (No primeiro experimento realizado na China, os embriões eram “não-viáveis”, ou seja, eles não poderiam se desenvolver a ponto de se tornar um feto, mesmo que os pesquisadores desejassem implantar o embrião em um útero). Os embriões utilizados nos Estados Unidos foram especialmente gerados para essa pesquisa. Os espermatozoides de um doador, que tinha uma doença cardíaca congênita chamada cardiomiopatia hipertrófica, foi utilizado para fecundar vários óvulos. A cardiomiopatia hipertrófica afeta uma em cada 500 pessoas em todo o mundo [8]. A doença não tem cura. Um dos objetivos dos pesquisadores era compreender melhor a possibilidade de, no futuro, impedir a ocorrência dessa doença através da edição do genoma do embrião.
IHU On-Line - Que tipos de defeitos congênitos espera-se corrigir com a "técnica" CRISPR-Cas9?
Marcelo de Araujo - São conhecidas mais de 10.000 doenças que decorrem de mutação genética. Algumas doenças envolvem a mutação de um único gene. Além da cardiomiopatia hipertrófica, outras doenças que têm sido objeto de investigação com o uso de CRISPR-Cas9 são, por exemplo, a anemia falciforme, a doença de Tay-Sachs, a fibrose cística e a distrofia muscular de Duchenne.
Curiosamente, porém, algumas pesquisas com CRISPR-Cas9 não têm como objetivo corrigir mutações, mas provocar mutações que apenas raramente ocorrem de modo espontâneo. Algumas poucas pessoas, por exemplo, são naturalmente imunes ao vírus HIV. Ainda que sejam expostas ao vírus, elas não contraem a Aids. Isso acontece por conta de uma mutação genética rara que as torna imunes ao vírus. A pesquisa realizada em 2016 na China, por exemplo, tinha como objetivo compreender melhor esse fenômeno [9]. Isso poderia contribuir para, no futuro, encontrarmos novas formas de se combater o vírus HIV.
O que torna a edição genômica uma forma especialmente revolucionária de tratamento é que, ao editarmos a “linha genética” (germline), o embrião passa a ter características que serão repassadas para os seus descendentes. (Ou visto de outro modo: o embrião deixa de ter características que seriam repassadas para a geração seguinte).
Consideremos novamente a cardiomiopatia hipertrófica: essa doença, ao longo da história evolucional dos seres humanos, não foi eliminada por seleção natural porque ela não impede que o indivíduo atinja a idade adulta e tenha filhos, que provavelmente também terão a doença e continuarão legando o mesmo problema às gerações subsequentes. A edição genômica permitiria, em princípio, a erradicação de algumas doenças congênitas porque, como a doença é eliminada na linha genética do embrião, o indivíduo, mais tarde, não legará a doença às gerações futuras.
Por outro lado, o que a edição genômica tem de revolucionário, ela tem também de perturbador: se ocorrer alguma mutação off-target durante a edição, é possível que o indivíduo desenvolva doenças que somente poderão ser detectadas mais tarde, possivelmente após o início da vida reprodutiva da pessoa. As consequências seriam catastróficas, portanto, não apenas para o indivíduo cujo genoma foi editado, mas para todos os seus descendentes.
É por essa razão que, até agora, em todas as pesquisas com o uso de CRISPR-Cas9 em células embrionárias, foi de antemão veementemente descartada a intenção de se implantar o embrião em um útero. O mais provável é que muitos anos de pesquisa, talvez mesmo décadas, transcorram até que a gestação de um embrião humano “editado” seja levada a termo.
IHU On-Line - Diante do estudo norte-americano, diria que o nascimento dos primeiros humanos geneticamente modificados está mais próximo?
Marcelo de Araujo - Acredito que não. Como disse anteriormente, é pouco provável que isso venha a ocorrer nos próximos anos. E mesmo que o procedimento venha a ser considerado eficaz e seguro nas próximas décadas, continuaria havendo uma série de barreiras legais na maior parte dos países, inclusive no Brasil. Muitos países permitem a pesquisa com embriões humanos, mas eles proíbem que embriões geneticamente modificados possam ser utilizados para se levar a termo uma gravidez. Uma nova legislação teria de ser amplamente debatida pela sociedade civil para se regular o uso de edição genômica em clínicas de fertilização.
Em outubro de 2015 a revista Nature publicou um ótimo artigo intitulado “Em que lugar do mundo o primeiro CRISPR-baby poderia nascer?” [10]. O artigo mostra o quanto as legislações em torno desse tema variam de país para país.
Como disse, eu não acredito que o primeiro bebê geneticamente modificado venha a nascer em breve. Por outro lado, essa suposição deve ser também considerada com cuidado, pois países com legislação mais branda, ou pelo menos “ambígua”, poderiam atrair pesquisadores e, com eles, pessoas de outros países dispostas a pagar pelos serviços de edição genômica, mesmo que a comunidade científica internacional considere esse procedimento, por ora, arriscado demais para ser considerado eticamente aceitável. Esse é um problema que tem de ser levado a sério e examinado em cada país, pois o “turismo genético” já existe. Casais que moram num país que proíbe certos procedimentos em clínicas de fertilização podem viajar para outro país, com legislação diferente, para buscar o serviço que desejam [11].
E às vezes nem é necessário viajar. A legislação brasileira, por exemplo, não permite a compra ou venda de sêmen humano em território nacional, mas, por outro lado, também não proíbe a importação de sêmen humano. Uma reportagem de 2015 relata que a importação de sêmen humano para fins de fertilização in vitro teria aumentado em mais de 500% no Brasil – em um período de apenas um ano [12]. Muitas mulheres brasileiras procuram os serviços de empresas americanas, que vendem sêmen humano, com o objetivo de terem informações mais precisas sobre os doadores. Isso permite às mulheres escolher antecipadamente o perfil do homem cujo sêmen pretendem utilizar para iniciar uma gestação. A empresa Fairfax Cryobank, por exemplo, tem um site em português, que permite às clientes brasileiras selecionar características do doador como, por exemplo, “raça”, “cor dos olhos”, “cor do cabelo”, “nível educacional” etc. [13] Nenhuma empresa brasileira, até onde sei, poderia oferecer esse tipo de serviço em território nacional.
Essa espécie de mercantilismo genético pode até nos causar algum desconforto. Mas eu gostaria de enfatizar que – em minha opinião – não me parece que devamos considerar moralmente problemático proporcionar às mulheres esse tipo de escolha. As mulheres, em sua vida pessoal, não são proibidas de buscar um parceiro que tenha tais e tais características fenotípicas. Se a legislação não impede que uma mulher prefira se casar com um homem negro a se casar com um homem branco (e vice-versa), ou se casar com um engenheiro ao invés de se casar com um filósofo, a legislação, a meu ver, também não deveria impedir que ela possa exercer a mesma “liberdade reprodutiva” no momento de escolher, não o parceiro com o qual pretende constituir uma família, mas o tubo de sêmen que será utilizado para fins de fertilização in vitro.
Há poucas décadas, quando começou a ser comercializada, a pílula anticoncepcional era uma nova tecnologia que proporcionava às mulheres um tipo de liberdade reprodutiva de que elas não dispunham até então. O mesmo pode ser dito da emergência da tecnologia para a reprodução in vitro. Mas a introdução dessas tecnologias, em nosso passado recente, teve de contar com a resistência de pessoas que consideravam imoral o uso de anticoncepcionais ou o recurso à fertilização in vitro. Mas agora, poucas décadas após seu surgimento, estima-se que mais de 5 milhões de bebês tenham nascido graças à fertilização in vitro, e que milhões de casos de gravidez indesejada tenham sido evitados graças ao uso de pílulas anticoncepcionais [14]. Belize, por exemplo, por influência da igreja católica, foi o último país a manter, até 2012, a proibição de procedimentos para fins de fertilização in vitro [15]. Antes de condenarmos moralmente o tipo de liberdade reprodutiva que novas tecnologias proporcionam às mulheres (como no caso do serviço prestado pela Fairfax Cryobank atualmente, ou CRISPR-Cas9 no futuro), devemos nos perguntar se, ao criticarmos essas tecnologias, não estaríamos reproduzindo o mesmo tipo de atitude que levou à reprovação moral do uso de anticoncepcionais e de técnicas para fertilização in vitro em nosso passado recente.
IHU On-Line - Por um lado, é possível vislumbrarmos uma série de benefícios resultantes da utilização de CRISPR-Cas9 em pesquisas que envolvem a edição de células embrionárias. Mas, por outro lado, é necessário também nos perguntarmos quais seriam as principais implicações éticas e sociais decorrentes do uso desse tipo de tecnologia. Afinal, se não envolvesse implicações éticas e sociais importantes, o uso de CRISPR-Cas9 em embriões humanos não estaria gerando tanto debate. O que você tem a dizer sobre esse ponto?
Marcelo de Araujo - A utilização de tecnologias para edição genômica envolve uma consideração ética importante, que eu já mencionei anteriormente: a segurança desse procedimento para as gerações futuras. Em dezembro de 2015, na esteira das discussões sobre a notícia acerca da primeira pesquisa com a edição do genoma humano, ocorreu em Washington o primeiro debate global sobre a ética da edição genômica em células humanas. Outros três encontros globais ocorreram [16]. Em fevereiro deste ano, os organizadores do evento publicaram um longo relatório sobre as discussões [17]. O documento propõe, entre outras diretrizes, que a edição genômica de células humanas, por ora, seja realizada apenas para fins de pesquisa, e não para a produção de uma gestação. A segurança do procedimento para as gerações futuras ainda está longe de ter sido comprovada.
Mas a segurança, como o relatório destaca, não é o único problema que deve ser levado em consideração. Assim como outras tecnologias, CRISPR-Cas9 tem o potencial para modificar vários aspectos da estrutura da vida em sociedade. Podemos nos perguntar, por exemplo, quem terá acesso à edição genômica. Se apenas as pessoas muito ricas tiverem acesso ao procedimento, isso não poderia contribuir para agravar ainda mais desigualdades sociais já existentes?
Além disso, o relatório é enfático em reprovar, pelo menos por enquanto, o uso de edição genômica para fins de “aprimoramento humano” (human enhancement), ou seja, para a seleção de características específicas como inteligência mais elevada. Os cientistas ainda não sabem quais genes estão envolvidos na inteligência das pessoas, ou como seria possível alterar esses genes sem alterar uma série de outras características também. Por outro lado, à medida que o conhecimento nessa área for aumentando, a possibilidade de se recorrer à edição genômica para fins de aprimoramento (e não apenas para fins de tratamento de doenças congênitas) terá de ser levada a sério, e isso exigirá um amplo debate ético no âmbito da sociedade civil e da comunidade científica internacional.
IHU On-Line - Especificamente sobre a "técnica" CRISPR-Cas9, a comunidade de inteligência dos EUA considerou a técnica uma potencial arma de destruição em massa. Essa avaliação é excessiva ou não?
Marcelo de Araujo - A meu ver, essa avaliação não é excessiva. CRISPR-Cas9 suscita, sim, esse tipo de preocupação. Em 2016 a “US Intelligence Community”, que presta assessoria ao governo norte-americano na área de segurança, divulgou um documento no qual menciona novas tecnologias para edição genômica como uma possível ameaça à segurança global. CRISPR-Cas9, segundo o documento, poderia, em princípio, ser utilizado para a produção de armas biológicas [18].
A varíola, por exemplo, foi erradicada na década de 1970. Apenas dois laboratórios de alta segurança – um nos Estados Unidos e outro na Rússia – ainda têm amostras do vírus da varíola. A ideia era que essas amostras fossem destruídas com a virada do milênio, mas notícias sobre um suposto programa russo para o desenvolvimento de armas biológicas levaram os dois países à preservação de suas respectivas amostras [19]. O problema é que mesmo que grupos terroristas – ou algum fanático isolado – não tenham acesso às amostras ainda existentes, o genoma da varíola é conhecido e, aparentemente, está disponível na internet. Isso significa que, pelo menos em princípio, uma outra variação do vírus, como por exemplo a varíola bovina, facilmente acessível, poderia ser editada com vistas à recriação do vírus que provoca a varíola – uma doença altamente contagiosa, e que matou milhões de pessoas ao longo da história da humanidade [20].
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Marcelo de Araujo - Sim, um ponto cientificamente irrelevante, mas que talvez seja significativo para o debate mais amplo sobre a ética da edição genômica. Este ano completam-se 20 anos que o filme Gattaca foi lançado nos cinemas. O filme fez bastante sucesso em 1997, mas desde que surgiram as primeiras notícias sobre a edição do genoma humano, muitas pessoas voltaram a falar do filme.
Gattaca descreve um cenário de distopia no futuro, em que pais e mães recorrem à engenharia genética, não apenas para corrigir eventuais doenças congênitas, mas também para aprimorar as capacidades físicas e cognitivas de seus filhos. Isso gera na sociedade uma discriminação genética dos indivíduos superiores, geneticamente aprimorados, sobre os indivíduos naturais, conhecidos como in-valids. O surgimento desse tipo de discriminação no futuro deve ser levado a sério e o tema deve ser desde já debatido. Mas eu sugiro que as pessoas assistam a Gattaca novamente e se perguntem se o filme pode ser considerado como uma boa crítica à possibilidade de recorrermos à edição genética para fins de aprimoramento humano no futuro. Parece-me que não: o filme não é uma boa crítica.
Vincent Freeman, o herói do filme, protagoniza a história como um indivíduo que, mesmo sem ser geneticamente superior, consegue realizar o sonho de se tornar um astronauta. Mas Vincent só consegue fazer isso porque engana todo mundo. Vincent, no final do filme, consegue finalmente participar de uma missão espacial. Mas o filme não mostra o desenrolar da missão. Vincent tem problemas cardíacos, além de ser míope. Contudo, até o fim, ele consegue manter em segredo esses problemas. A sua obstinação pessoal, ainda que nobre, poderia muito bem representar, num cenário real, o fracasso coletivo da missão, e com consequências catastróficas para todos, já que, tecnicamente, ele não estava qualificado para participar de uma missão espacial.
É preciso levar também em consideração que Vincent não foi modificado geneticamente por decisão dos seus pais, que desejavam ter um segundo filho, mas dessa vez sem nenhum tipo de manipulação genética. Ou seja, no filme, não foram desigualdades econômicas que levaram às desvantagens genéticas de Vincent. Foi a convicção religiosa dos pais que tornaram o rapaz tecnicamente inválido para se tornar um astronauta. Evidentemente, é a frustração de Vincent que o leva a enganar outras pessoas na expectativa de poder realizar o seu sonho. Vincent recorre então a um mercado negro de aprimoramento humano para se tornar mais alto. Ele se vê também obrigado a adotar uma nova identidade.
O cenário estarrecedor que o filme sugere, para mim, não é o da possibilidade de aprimoramento genético no futuro. O que há de estarrecedor no filme, a meu ver – e diferentemente da leitura que a maioria das pessoas fazem – é que pais e mães, movidos por convicções religiosas, possam vir a realizar escolhas que, mais tarde, frustrem as expectativas ou sonhos de seus filhos. No filme, é a decisão dos pais de Vincent que, a meu ver, parece moralmente problemática. O filme teria sido filosoficamente mais interessante se os pais de Vincent quisessem muito a manipulação genética do filho, mas fossem impedidos de realizar isso por conta de circunstâncias econômicas ou por força de perseguições religiosas.
Notas do entrevistado:
[1] Francis Crick Institute. 2016. “HFEA approval for new ‘gene editing’ techniques”. Francis Crick Institute News, 1 de fevereiro.
[2] Callaway, Ewen. 2016. “Embryo-editing research gathers momentum”. Nature 532, 2 de abril, p. 289-90.
[3] Connor, Steve. 2017. “First human embryos edited in U.S. Researchers have demonstrated they can efficiently improve the DNA of human embryos”. MIT Technology Review, 26 de julho.
[4] Ma, Hong et al. 2017. “Correction of a pathogenic gene mutation in human embryos”. Nature, 2 de agosto. DOI: 10.1038/nature23305.
[5] Greely, Henry. 2017. “About that ‘first gene-edited human embryos’ story... There’s less going on here than meets the eye”. Scientific American (Blog), 28 de julho.
[6] Reardon, Sara. 2015. “New life for pig-to-human transplants”. Nature 527, 12 de novembro, p. 152-54.
[7] Liang, P. et al. 2015. Protein Cell 6, 363-372 (DOI:10.1007/s13238-015-0153-5); Kang, X. et al. 2016. J. Assist. Reprod. Genet. 33, 581-588 (DOI: 10.1007/s10815-016-0710-8); Tang, L. et al. 2017. Mol. Genet. Genomics 292, 525-533 (DOI:10.1007/s00438-017-1299-z).
[8] Centers for Disease Control and Prevention.
[9] Kang, X. et al. 2016. J. Assist. Reprod. Genet. 33, 581–588 (DOI: 10.1007/s10815-016-0710-8).
[10] Ledford, Heidi. 2015. “Where in the world could the first CRISPR baby be born?”. Nature, 13 de outubro.
[11] Castro, Rosa. 2016. “The next frontier in reproductive tourism? Genetic modification”. The Conversation, 17 de novembro.
[12] Neumam, Camila. 2015. “Importação de sêmen estrangeiro aumenta 500% no Brasil em um ano”. UOL Notícias, 17 de junho.
[13] Fairfax Cryobank.
[14] Rochman, Bonnie. 2013. “5 million babies born through IVF in past 35 years, researchers say”. ABC News, 14 de outubro.
[15] Bhattacharya, Ananyo. 2012. “Human-rights court orders world’s last IVF ban to be lifted”. Nature, 28 de dezembro.
[16] International Summit on Human Gene Editing. Sumário dos quatro encontros:
[17] Human genome editing: Science, ethics, and governance, 2017. Washington: National Academies Press.
[18] Clapper, James. 2016. “Statement for the record worldwide threat assessment of the US Intelligence Community”. Senate Armed Services Committee. 9 de fevereiro.
[19] Weinerfeb, Tim. 1998. “Soviet defector warns of biological weapons”. New York Times, 25 de fevereiro.
[20] Dando, Malcolm. 2016. “Find the time to discuss new bioweapons”. Nature 535, 7 de julho, p. 9.
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A edição genética de embriões humanos é revolucionária e perturbadora. Entrevista especial com Marcelo de Araujo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU