04 Setembro 2019
Europa, EUA e China reverteram desmatamento e têm políticas fortes de proteção às florestas. Insistir na destruição é desperdiçar a chance de nova agricultura e exploração científica sustentável da maior biodiversidade do planeta.
Leia a primeira, segunda, terceira e quarta partes.
A íntegra do estudo (34p, em pdf) pode ser baixada aqui, e estará disponível, em livro (Abong | Editora Terceira Via), em poucos dias.
O estudo especial é de Ricardo Abramovay, professor Sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de "Muito Além da Economia Verde" (Planeta Sustentável), publicado por Outras Palavras, 02-09-2019.
74. Contrariamente a uma crença amplamente difundida, a base do crescimento econômico dos países mais ricos do mundo não é o desmatamento. É verdade que, até o Século XIX, o desmatamento foi muito mais importante nas regiões de clima temperado do que nos trópicos, como mostra o State of the World Forest da FAO/UN. Mas isso não torna admissível que, em pleno Século XXI, as florestas tropicais sejam destruídas, sob o pretexto de que “os países ricos também praticaram esta destruição”. A destruição da base florestal dos países hoje desenvolvidos refletiu justamente a precariedade, à época, das condições de seu crescimento econômico. Tão logo estes países dispuseram das mínimas condições técnicas que permitiram aumentar a produtividade da agricultura, o desmatamento foi significativamente revertido, como resultado tanto do aumento da produtividade, como do êxodo rural.
75. O melhoramento tecnológico na silvicultura voltada à oferta de madeira e em sua base industrial permitiram que, com apenas 7% da área florestal global, estas florestas ofereçam mais da metade da madeira consumida no mundo, proporção que deve aumentar para 80% nos próximos doze anos. A contribuição brasileira nesta direção é fundamental: o País está na vanguarda da inovação tecnológica na produção de papel e celulose.
76. A partir do Século XIX, já há exemplos expressivos de países que inscreveram a recuperação florestal não apenas em seus objetivos nacionais, mas em suas legislações. Esta mudança de atitude, de cultura, de política e de prática na relação entre as sociedades e as florestas resulta de inúmeros fatores, mas tem por base a possibilidade de intensificar a produção agrícola e pecuária, utilizando para isso cada vez menos terra. Além disso tanto o conhecimento científico como a experiência prática dos agricultores abriram caminho à “transição florestal”, em que terras menos aptas à agricultura deixam de consagrar-se à produção e voltam à condição de floresta, seja por regeneração natural, seja por reflorestamento, como mostra o State of the World Forests, da FAO/UN.
77. Foi o que ocorreu, em diferentes períodos históricos, na Europa do Norte, nos Estados Unidos, mas também, mais recentemente, na China, na Índia e no Vietnã. É o que os especialistas chamam de hipótese Borlaug, pela qual o aumento da produtividade na agricultura reduz a pressão para converter áreas de florestas em superfícies agrícolas. Mas foi importante no processo de recuperação florestal que marca vários países do mundo a visão de que muito mais que conflito entre os dois tipos de área, florestas bem geridas têm imenso potencial para melhorar o desempenho da própria agricultura. Ao mesmo tempo, uma agricultura dinâmica, produtiva e capaz de incorporar tecnologias poupadoras de terra abre caminho à desejada redução do desmatamento.
78. Nesse sentido, é importante salientar dois modelos diferentes na relação estabelecida entre a porção da paisagem dedicada à produção agropecuária e àquela destinada à conservação dos recursos naturais, aos serviços ecossistêmicos e à biodiversidade. Tratam-se das chamadas estratégias de “land sharing” e “land sparing”. Na primeira, áreas produtivas interagem intimamente com regiões de proteção favorecendo a troca de fluxos de energia e biomassa, com uso extensivo do solo, enquanto na segunda, formam-se zonas de produção intensiva e poupadoras de terras para proteção ambiental integral. Citam-se, respectivamente, a criação extensiva e tradicional de gado de corte no Pantanal, e os talhões de reflorestamento de pinus e eucalipto entremeados por florestas nativas dispostas em reservas legais. Por outro lado, nem a pecuária extensiva nem a soja intensiva na Amazônia, atualmente, podem ser citadas como os referidos exemplos dessas estratégias. A pecuária extensiva baseada na queimada não respeita sequer a capacidade de suporte das pastagens exóticas, e os gigantescos bolsões de soja isolam completamente os fragmentos florestais, tornando a matriz da paisagem praticamente intransponível à maioria da fauna.
79. Thiago Fonseca Morello (2011) reuniu ampla bibliografia mostrando que, desde o Século XIX, França, Dinamarca, Suécia e Escócia passaram a promover o crescimento de suas áreas florestais. E é importante lembrar que tanto a Dinamarca, como sobretudo a França, são países onde a agricultura tem peso fundamental no crescimento econômico. A área florestal da França dobrou entre o final do Século XIX e o final do Século XX. Um terço do país é ocupado por florestas, boa parte das quais encontram-se em mãos privadas. E dos 16,5 milhões de hectares em florestas, apenas 2 milhões correspondem a plantios de interesse industrial, sobretudo para resina. A grande maioria destina-se a preservar serviços ecossistêmicos essenciais para a economia e a sociedade. Na primeira metade do Século XX, Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e Irlanda também levaram adiante políticas de ampliação de suas áreas florestais.
80. As evidências mostradas na Nota Técnica elaborada por Adalberto Veríssimo (do IMAZON) e Ruth Nussbaum (do PROFOREST, da Universidade de Oxford) vão na mesma direção. Além disso, o trabalho mostra que não é verdadeira a afirmação segundo a qual a legislação brasileira impõe aos agricultores exigências descabidas e não praticadas em outros países, como se vê na tabela abaixo.
81. É importante assinalar, no que se refere às comparações internacionais, o caso da China. A tabela acima (com a cobertura florestal de vários países desde 1900) mostra que, ao início da Revolução de 1949, a superfície florestal chinesa havia sido reduzida a algo entre 5% e 9% da área do país. No início da segunda década do Século XXI, nada menos que 22% do território chinês estava coberto por florestas. Entre 1999 e 2013, a China reflorestou, na sua região Sudoeste, a mais devastada, 280 milhões de hectares, mostra a coluna de Fernando Reinach, baseada em artigo da Nature Sustainability. Isso corresponde a toda a superfície do Estado de São Paulo. A comparação de Fernando Reinach é fundamental: “basta lembrar que toda a soja no Brasil ocupa 33 milhões de hectares, a cana-de-açúcar, 9 milhões e as florestas de eucalipto, 4,8 milhões de hectares. Em termos de desmatamento, o Brasil perde aproximadamente 500 mil hectares de Floresta Amazônica por ano. Ou seja, em quatro anos a China plantou o equivalente a 56 anos de desmatamento amazônico”!
82. As mudanças climáticas são reconhecidas pela quase totalidade dos cientistas que publicam nas mais prestigiosas revistas do mundo como o mais importante desafio que a humanidade já teve pela frente. Combatê-la ou ao menos atenuá-la supõe transformações profundas nos modelos contemporâneos de produção e de consumo. Estas transformações, por sua vez apoiam-se não apenas em muita ciência e tecnologia, mas na urgência de que sejam modificadas dimensões fundamentais dos próprios comportamentos sociais, como bem mostram os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável aprovados pelas Nações Unidas e endossados pelo Brasil.
83. O Brasil tem uma dupla e fundamental contribuição global na luta contra as mudanças climáticas. A primeira consiste em conseguir interromper imediatamente o desmatamento. Este estudo reuniu evidências que mostram que esta interrupção não supõe conquistas tecnológicas complexas ou sacrifícios no bem-estar do País ou da própria Amazônia. Países como a China ou os Estados Unidos enfrentam desafios científicos e tecnológicos complexos para descarbonizar suas matrizes energéticas, de transportes ou de aquecimento domiciliar. No nosso caso, a principal fonte de emissões de gases de efeito estufa continua sendo o desmatamento, que para ser interrompido não supõe mudanças disruptivas em padrões de produção e consumo da economia como um todo. Seguir como o único país do mundo (junto com a Indonésia) que se encontra na lista dos grandes emissores por causa do desmatamento não faz jus à posição do Brasil como potência ambiental global. É um sinal de atraso com o qual uma sociedade moderna não pode conviver.
84. A segunda contribuição global do País (e particularmente da Amazônia) para a luta contra as mudanças climáticas está na emergência de uma economia do conhecimento da natureza. Detentor da maior biodiversidade do Planeta o País precisa se preparar para transformar esta gigantesca riqueza em fonte de desenvolvimento. Isso supõe três condições básicas.
85. A primeira consiste evidentemente em evitar a destruição da área que concentra a maior biodiversidade do Planeta. Este relatório mostrou que o desmatamento já realizado até aqui abriu áreas suficientemente grandes para permitir a expansão da agropecuária na Amazônia. A grande maioria desta área está subutilizada e persistir na destruição responde não a necessidades econômicas racionalmente justificáveis e sim a estratégias patrimoniais de atores cujas ambições se apoiam na ilegalidade e na violação de direitos constitutivos da vida republicana. Investir nas Unidades de Conservação é uma estratégia para que o Brasil ofereça aos brasileiros e ao mundo serviços ecossistêmicos fundamentais para a própria vida no Planeta. Tolerar a invasão e a redução de suas áreas é renunciar a um papel global que será cada vez mais importante para o Brasil.
86.A segunda condição para fazer da manutenção da floresta em pé base para a luta contra as mudanças climáticas e para o desenvolvimento sustentável consiste em reconhecer o papel estratégico das populações tradicionais e de suas atividades na ocupação destas áreas. Tanto a floresta como as populações tradicionais que nela habitam representam não apenas utilidade econômica ou ecossistêmica, mas uma riqueza cultural que se exprime na diversidade das línguas dos costumes e da própria cultura material dos povos da floresta. É imensa a responsabilidade da nação brasileira com a preservação desta fonte única de diversidade, de ensinamentos e de sabedoria. A proteção da floresta e dos povos que a habitam é fundamental pela riqueza e pelos serviços ecossistêmicos que dela derivam. Mas, antes de tudo, é um valor civilizacional e ético ao qual a nação brasileira que precisa ser encarado como trunfo e não como obstáculo ao crescimento do Brasil.
87. A terceira condição para transformar a floresta em base para o desenvolvimento sustentável está na transição do que tem sido até aqui uma economia da destruição da natureza para uma economia do conhecimento da natureza. Carlos Nobre e colaboradores mostram a urgência de que os dispositivos da chamada quarta revolução industrial sejam aplicados ao conhecimento e à própria exploração da Amazônia. Detentor do território contendo a maior biodiversidade do Planeta, é fundamental que o País se dote dos meios para conhecer cientificamente esta imensa riqueza e, assim, para poder explorá-la de forma sustentável. Isso supõe a presença de centros de pesquisa e o fortalecimento das estruturas universitárias na Amazônia como um todo, como o preconizava já há dez anos documento fundamental da Academia Brasileira de Ciências.
88. Tolerar o desmatamento, cuja esmagadora maioria é ilegal e com o qual a própria indústria a jusante do agronegócio não aceita mais conviver (como bem o mostra a moratória da soja) é compactuar com o atraso, a violência e o enfraquecimento das instituições democráticas, cujo funcionamento deveria conduzir a investimentos públicos e privados no fortalecimento das áreas protegidas e das inúmeras atividades que permitem o bem-estar das populações que aí vivem.
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Amazônia e o futuro que o Brasil joga fora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU