21 Agosto 2019
Uma coleção de ensaios sobre a Igreja na China foi apresentada em Roma no início deste ano na sede da revista La Civiltà Cattolica. O volume “La Chiesa in Cina. Un futuro da scrivere” (A Igreja na China. Um futuro a ser escrito) foi editado pelo nosso diretor, Pe. Antonio Spadaro, e dedicado às relações entre a Igreja Católica e a China após o acordo provisório alcançado entre a Santa Sé e Pequim sobre a nomeação dos bispos.
O volume contém um prefácio do secretário de Estado vaticano, cardeal Pietro Parolin. Também participaram da apresentação o arcebispo Claudio Maria Celli, o Pe. Arturo Sosa, superior geral dos jesuítas, e Giuseppe Conte, primeiro-ministro italiano [1].
A revista La Civiltà Cattolica publicou o discurso proferido pelo Pe. Sosa, 20-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em sua Mensagem aos Católicos Chineses e à Igreja Universal, de 26 de setembro de 2018, o Papa Francisco escreveu: “De minha parte, sempre olhei para a China como uma terra de grandes oportunidades e para o povo chinês como os criadores e guardiães de um patrimônio inestimável de cultura e sabedoria, refinado por resistir à adversidade e por abraçar a diversidade” [2].
Essa foi a minha chave interpretativa quando li o livro “La Chiesa in Cina. Un futuro da scrivere”, publicado pelo Pe. Antonio Spadaro. O único propósito da minha fala hoje é compartilhar minhas reflexões suscitadas pela leitura do livro. Os autores dos capítulos deste volume escreveram cada um a partir de suas próprias perspectivas e experiências, e o leitor é convocado para um diálogo, trazendo seu próprio conjunto de sensibilidades e de pontos de vista existenciais ou intelectuais. É um diálogo que toca em alguns aspectos da vasta e complexa realidade da Igreja na China.
As reflexões que compartilho não representam a posição oficial da Companhia de Jesus em relação às questões tratadas no livro, nem à situação política da Igreja na China. Pessoalmente, eu não tenho experiência direta da China; no entanto, pertenço à Igreja presente na China e a um corpo – a Companhia de Jesus – que teve e continua tendo muitas relações com a China.
A presença da Igreja na China responde ao convite do Senhor para ir a todos os povos e a todas as nações do mundo, a se fazer presente em todos os cantos da história humana, a convidar as pessoas a transformar suas vidas, torná-las mais humanas de acordo com o modelo que recebemos nele.
Um olhar para o mundo atual nos diz que, sem fazer as contas com tudo o que a China representa, não é possível avançar na reconciliação entre os povos do mundo. Nem será possível, sem a participação consciente e ativa do povo chinês, chegar a um equilíbrio ecológico sustentável para o planeta nem alcançar os objetivos das Nações Unidas para a superação da pobreza e o desenvolvimento humano.
A Igreja e a Companhia de Jesus buscaram, buscam e continuarão buscando inculturar-se na complexa e continuamente mutável realidade social daquela imensa nação que é a China. Trata-se de uma inculturação inspirada na encarnação de Jesus, que se fez presente na história humana em meio a uma realidade de pobreza e opressão tanto social quanto religiosa e política. A inculturação, segundo o estilo de Jesus, é um caminho quenótico, isto é, o seu ponto de partida é desvincular-se e recuar em relação a qualquer posição de privilégio e poder para se fazer “um entre muitos” (cf. Fp 2,6-8).
Como Igreja, inculturar-se na realidade chinesa pressupõe abandonar toda pretensão de sabedoria ou reconhecimento social para se transferir para a nova realidade em que deseja viver plenamente. A inculturação pressupõe sair da própria casa para ir morar na casa do outro e, assim, pressupõe aprender a viver em uma casa diferente daquela a que se está acostumado.
A inculturação é um encontro aberto e sincero, no qual cada um põe em jogo o que é. O cristianismo tem algo muito valioso para oferecer a toda cultura humana, em cada momento da história. O seu tesouro é a pessoa de Jesus Cristo, que nos revelou o rosto misericordioso de Deus e abriu o caminho da fraternidade, através da qual nos reconhecemos como seres humanos, irmãos e irmãs, responsáveis pela casa comum, onde podemos viver em paz, se, guiados pelo Espírito, buscamos a justiça social. O encontro que resulta do esforço da inculturação só se produz se for impulsionado pelo amor que Deus derramou no coração de cada ser humano e se reflete de várias maneiras nas diferentes expressões culturais de cada povo.
Como o cristianismo não é uma cultura, mas uma fé religiosa capaz de se encarnar em cada cultura humana, ele não compete com as culturas às quais se dirige e com as quais se encontra. Pelo contrário, oferece a cada uma delas uma nova oportunidade para ir mais a fundo no conhecimento das próprias raízes e de se abrir à realidade universal da humanidade plena.
Por isso, a inculturação torna possível a existência do “catolicismo chinês”, que é, ao mesmo tempo, catolicismo universal. O católico chinês conserva as suas raízes profundamente imersas em sua cultura e expressa sua fé em modalidades que a sua cultura oferece para simbolizar aquilo que é e aquilo que vive. Ao mesmo tempo, o católico chinês participa do corpo universal da Igreja, que procura contribuir, inspirada pelo Espírito de Jesus, para o processo de reconciliar todas as coisas em Cristo.
“Chinizar” o cristianismo na China não é fácil. Trata-se de um processo complexo e sempre incompleto. É tão complexo quanto a realidade cultural chinesa, com sua imensa variedade e amplitude de tradições. É incompleto, porque nenhuma cultura viva é estática: cada cultura, em vez disso, é mutável, de modo que o processo de inculturação envolve um esforço contínuo no tempo, impossível de se realizar de uma vez por todas.
Nenhuma expressão cultural, social, econômica ou política do passado ou do presente pode se considerar a plena inculturação do cristianismo na China. Um autêntico processo de “chinização” do catolicismo na variedade de culturas da China é um processo dinâmico, sempre aberto e incompleto.
Como a história da China mostrou, a inculturação segundo o estilo “quenótico” [3] de Jesus envolve uma forte dose de humilhação. Consequentemente, dispor-se a fazer parte do presente e futuro da Igreja na China pressupõe aceitar a possibilidade de ser humilhado, a fim de converter a humilhação em fonte de vida nova.
Vivemos em um mundo que, apesar das ambiguidades do que chamamos de “globalização”, está se tornando cada vez mais universal. A interdependência entre os povos, as culturas e as nações do mundo é uma realidade característica do tempo em que vivemos e se projeta como uma dimensão essencial do mundo futuro. Contribuir para a reconciliação e a justiça no presente e no futuro pressupõe, em primeiro lugar, reconhecer a riqueza representada pela diversidade cultural do nosso mundo e, em segundo lugar, garantir a justa participação de cada expressão cultural no rosto multicultural da humanidade universal.
A Companhia de Jesus pretende colaborar no trabalho de reconciliação e na promoção da justiça, em harmonia com a Igreja, com o Papa Francisco e os católicos chineses, de acordo com suas “Preferências Apostólicas Universais” [4]. Entre elas, destaca-se a seguinte: “Acompanhar os empobrecidos requer que aprimoremos nossos estudos, nossa análise e nossa reflexão, a fim de entender profundamente os processos econômicos, políticos e sociais que geram tão grande injustiça; também devemos contribuir para a elaboração de modelos alternativos. Comprometemo-nos a promover um processo de globalização que reconheça a multiplicidade de culturas como um tesouro humano, proteja a diversidade cultural e promova o intercâmbio intercultural”.
A crescente participação da China no processo global de desenvolvimento da sociedade humana abriu grandes frentes de renovação dentro da sociedade chinesa. Ao regime socialista que governa a complexa sociedade chinesa, apresenta-se o enorme desafio de se adaptar à nova era da humanidade na qual decidiu assumir uma participação ativa e de liderança. A dimensão política desse desafio é de suma importância.
A abertura para a nova era da humanidade está exigindo uma reavaliação radical do exercício do poder público. Os sinais presentes podem não parecer muito encorajadores. Mudanças na época parecem ter trazido consigo um enfraquecimento das formas democráticas de governo nas nações. Em todas as regiões do planeta surgem, de fato, governantes que perseguem ideologias fundamentalistas ou populistas, que se erguem como a expressão única da própria nação e a governam de acordo com os próprios interesses particulares, sem promover a participação dos povos na tomada de decisões que tenham como objetivo o bem comum, tanto no presente quanto no futuro.
A dimensão política é central quando se trata de favorecer a reconciliação entre as pessoas. A reconciliação não se obtém através da concentração de poder nas mãos de poucos, seja dentro de cada nação ou internacionalmente. A reconciliação exige um retorno à apresentação do bem comum como horizonte da ação política e a expansão da consciência cívica como garantia de manter sempre viva essa busca pelo bem comum. A descentralização do poder e o equilíbrio entre os atores sociais que o exercem sob o controle de uma cidadania consciente é uma condição para o progresso na justiça social e na reconciliação dos povos e entre nações.
Existem muitos indicadores que assinalam que a sociedade do futuro será secular. De um modo ou de outro, todas as sociedades atuais estão experimentando processos de secularização. Em muitos casos, a secularização dá origem a formas extremas de secularismo que chegam a combater contra qualquer forma de religião, começando com o ateísmo militante ou o fundamentalismo religioso, e chega à mitificação de uma única forma de religião. Conhecemos hoje muitas formas de perseguição religiosa associadas ao secularismo ou ao fundamentalismo religioso. Em outros casos, a secularização produz a indiferença religiosa e interrompe a transmissão social de práticas e ensinamentos religiosos.
Quando essas formas extremas de secularismo são superadas, abre-se a porta para a sociedade secular madura, na qual existem as condições para o exercício da liberdade como uma característica própria do ser humano. Essa liberdade deve ser expressa nas relações políticas, econômicas e sociais, bem como nas esferas cultural e religiosa. O contexto secular, portanto, oferece novas possibilidades para o exercício da liberdade religiosa, tanto pessoal como institucional.
Outros sinais indicam claramente que, na sociedade do futuro, o “urbano” terá um peso superior do que o que teve no passado marcado pelas relações próprias de um mundo rural. O catolicismo urbano representa na China – como em muitas outras regiões do mundo – uma novidade e um desafio.
A novidade deriva da diferença entre as relações humanas que são geradas no mundo urbano em relação àquelas que caracterizam a sociedade rural. O urbano também se encontra em um acelerado processo de mudança constante. Como novidade, ele não se limita à transição do rural ao urbano, mas tem a capacidade de acompanhar o ritmo das mudanças em cada um desses âmbitos e nas relações entre eles.
Diante dessas transformações humanas e sociais, surge o desafio de transmitir a mensagem do Evangelho. A presença e ação da Igreja é pastoral, isto é, origina-se e permanece viva no compromisso de proclamar a Boa Nova de Jesus Cristo em todos os cantos da terra e em todos os momentos da história humana. A atividade da Igreja na China, incluindo a participação do Vaticano em seus vários níveis, entende-se como pastoral e leva em conta os detalhes próprios das atuais relações sociais dentro da China e do contexto político do regime socialista que a governa.
Tanto as relações sociais quanto o regime socialista chinês estão em evolução. Entender e esperar por tal evolução é uma condição necessária para realizar a contribuição para a reconciliação e a justiça que a Igreja se propõe a fazer no cumprimento da sua missão.
Na China, a missão de reconciliação e justiça assume uma dimensão interna de especial importância e complexidade. Como em qualquer processo de reconciliação, é necessário reconstruir a confiança entre todos os atores da vida institucional da Igreja. Restaurar a confiança pressupõe conhecer cada um dos membros ativos e reconhecê-los como iguais, como irmãos e irmãs. Pressupõe conhecer a sua história e reconhecer a autenticidade com a qual eles a viveram.
Reconstruir a confiança abre a porta para a amizade. No caso dos católicos chineses, trata-se daquela amizade que nasce do reconhecimento na partilha do pão na mesa do Senhor. Não há dúvida de que a reconciliação dentro da Igreja chinesa será um processo longo, através do qual será possível superar os conflitos do passado recente, curar muitas feridas e chegar a olhar juntos para o futuro a ser escrito.
Ao mesmo tempo, a reconciliação dentro da Igreja nos permitirá caminhar rumo à reconciliação com muitas outras dimensões da vida política, social e cultural chinesa, em meio à rápida transformação de todas as suas formas. Sem dúvida, é uma perspectiva entusiasmante para aqueles que se identificam com a missão da Igreja.
O advento da Companhia de Jesus, o desejo de servir à Igreja Católica, a participação na fascinante tarefa de escrever o futuro da Igreja na China encontram, como primeiro requisito, refinar a capacidade de discernimento. O Papa Francisco repetiu isso de vários modos: a Igreja precisa crescer em sua capacidade de discernir. Escrever o futuro da Igreja na China parte da pergunta: como e onde se manifesta a ação do Espírito Santo na sociedade chinesa hoje? Responder a essa pergunta requer crescer na capacidade de discernimento.
Crescer na capacidade de discernimento anda de mãos dadas com o crescimento da vida espiritual. O futuro da Igreja na China, como em qualquer outro lugar do mundo, depende da profundidade da vida espiritual de seus membros e da vitalidade espiritual das comunidades cristãs, que chegue a uma válida conversão institucional. A Igreja chinesa deve mudar muito, viver uma autêntica metanoia, uma mudança de mentalidade, que só é possível através do encontro transformador com a pessoa de Jesus Cristo e a abertura de se deixar guiar pelo Espírito Santo.
Escrever o futuro da Igreja na China é um processo de discernimento em comum que parte da convicção, da experiência vivida, de que Deus está trabalhando na história e se comunica com os seres humanos. O discernimento e a boa escolha exigem que nos libertemos dos laços e das afeições desordenados, para podermos nos colocar completamente nas mãos do Senhor. O melhor serviço pastoral que pode ser feito à Igreja na China é promover as condições para o discernimento em comum e colocá-lo em prática em todos os âmbitos da vida e da sua ação.
Ao mesmo tempo, contribuir para escrever o futuro da Igreja na China exige um enorme esforço intelectual que permita, em primeiro lugar, aprofundar a compreensão do contexto sociopolítico e cultural da China e as suas tendências evolutivas. É uma tarefa apaixonante para aqueles que querem contribuir para tornar presente a mensagem cristã em tantas realidades diferentes e contribuir com a humanização da história. É uma tarefa cuja complexidade leva a realizá-lo necessariamente com outros. É uma tarefa que supera a capacidade não só de qualquer indivíduo, grupo de pesquisadores ou instituição, mas também da própria Igreja, e na qual se cria um lugar de encontro entre tantas pessoas e instituições que perseguem o mesmo objetivo de um futuro melhor para a Igreja e para o mundo.
Conhecer a variedade do catolicismo chinês é outra exigência no esforço de compreensão da realidade atual e dos caminhos para o seu futuro, um esforço que também pode ser muito alimentado se decidirmos aprender com a experiência de cristãos não católicos e das suas vidas na China. Este é um esforço que o Papa Francisco pediu em sua já mencionada Mensagem aos Católicos Chineses e à Igreja Universal: “Peço-lhes de todo o coração que implorem a graça de não hesitar quando o Espírito nos chama a dar um passo à frente: ‘Peçamos a coragem apostólica de comunicar o Evangelho aos outros e de renunciar a fazer da nossa vida um museu de recordações. Em qualquer situação, deixemos que o Espírito Santo nos faça contemplar a história na perspectiva de Jesus ressuscitado. Assim a Igreja, em vez de cair cansada, poderá continuar em frente acolhendo as surpresas do Senhor” (Gaudete et exsultate, 139) [5].
1. O discurso introdutório de Spadaro foi publicado em Vatican Insider no dia da apresentação, 25 de março de 2019, com o título: “Não existe uma Rota da Seda sem confiança mútua entre China e Vaticano”. O livro foi publicado pela editora Àncora, de Milão. O discurso do arcebispo Celli apareceu no L’Osservatore Romano em 25 de março, sob o título “Nas raízes do diálogo”, disponível aqui, em italiano. O discurso final do primeiro-ministro Giuseppe Conte foi publicado no site do governo italiano, disponível aqui, em italiano.
2. Francisco, Mensagem aos Católicos Chineses e à Igreja Universal, 26 de setembro de 2018, n. 2.
3. Kenōsis é uma palavra grega que literalmente significa “esvaziamento”. Ela é usada por São Paulo na Carta aos Filipenses, onde se lê: “Tenham em vocês os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo: Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens” (Fp 2,5-7; trad. Bíblia Pastoral).
4. Após dois anos de discernimento em comum, a Companhia de Jesus determinou algumas “preferências apostólicas universais”. São quatro ênfases apostólicas para a missão, que devem caracterizar o modo jesuíta de proceder e os compromissos pelos próximos dez anos. São elas: 1) Mostrar o caminho para Deus através dos Exercícios Espirituais e do discernimento; 2) Caminhar com os pobres, os descartados do mundo, os vulneráveis em sua dignidade em uma missão de reconciliação e justiça; 3) Acompanhar os jovens na criação de um futuro promissor; 4) Colaborar no cuidado da Casa Comum.
5. Francisco, Mensagem aos Católicos Chineses…, op. cit., n. 7.
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A Igreja na China: notas para “escrever o futuro”. Artigo de Arturo Sosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU