04 Mai 2016
O que é que os filósofos chineses nos podem ensinar sobre a vida? Muita coisa. Tanto que o curso de Michael Puett na Universidade de Harvard é o terceiro mais popular daquela instituição de ensino norte-americana. A jornalista Christine Gross-Loh, que o frequentou, juntou-se ao catedrático e os dois escreveram O Caminho da Vida, uma viagem pelos mais antigos pensadores da China. O título – a que os autores recusam a etiqueta de auto-ajuda, sublinhando que é um livro de filosofia – chega agora a Portugal, pela Lua de Papel.
E o que podemos aprender com homens que viveram há milhares de anos? Que mais importante do que olhar para o nosso eu interior é observarmos a forma como nos relacionamos com os outros, sempre diferente consoante a pessoa que temos à frente. Que somos complexos e que podemos ser melhores. Que não devemos fazer planos, porque se baseiam na pessoa que somos hoje. Que devemos mostrar fraqueza, mesmo quando somos fortes.
A entrevista é de Bárbara Wong, publicada por Público, 02-05-2016.
Eis a entrevista.
Confúcio, Mêncio e Lao-Tsé são filósofos como Aristóteles e Kant? Ou são homens sábios?
Eu diria que são filósofos. Existe um grande debate em torno dessa questão. Muitos diriam que não o são porque não fazem argumentação lógica, ou não refletem sobre a noção da verdade… Mas eles debruçam-se sobre as verdadeiras questões: Como é a tua vida? Como vives o teu dia-a-dia? A verdadeira filosofia reflete sobre a natureza da psicologia humana.
Na verdade, quando Puett propôs o seu curso em Harvard a ideia começou por ser rejeitada, porque acharam que não se adequava. Parece que algo que vem do mundo oriental não cabe no cânone universitário e não é realmente importante.
Mas quais são as grandes diferenças entre os filósofos chineses e os europeus? São mais pragmáticos?
Sim, em muitos sentidos, porque o seu ponto de partida é: vamos observar como se comporta o ser humano e como isso pode ser modificado. Como agimos, como podemos ser melhores, as grandes questões filosóficas são estas.
Isso significa que os filósofos europeus não conseguem ajudar-nos a encontrar um caminho, ao contrário dos chineses?
O que é intrigante quando se tenta comparar as duas filosofias é que não existem diferenças radicais. O que acontece é que ideias semelhantes aparecem em diferentes sítios do mundo e em diferentes épocas. E algumas ganham corpo e tornam-se populares e outras não. Encontramos muitos filósofos do Ocidente que pensam de maneira muito semelhante aos orientais, mas não pertencem ao mainstream. Muitas vezes desafio os meus alunos a olharem para os textos ocidentais com aquilo que aprenderam da filosofia chinesa.
Nietzsche é um desses filósofos?
Sim. E Aristóteles. E nos séculos XIX e XX muitos autores interessaram-se por textos milenares chineses. É fascinante!
Ao ler o livro percebemos que os filósofos chineses propõem que sigamos um “caminho”. Mas este varia consoante o autor, deixando o leitor confuso: “Para onde vou? Qual o caminho a seguir?”.
E é isso que é excitante! Nenhum revela um caminho claro, no sentido de dizer: “Faz isto, não faças aquilo e então viverás uma vida digna”. Na verdade, eles não concordam entre si. Por isso, o que nos dizem é: “Toma atenção à psicologia humana e tenta quebrar os padrões em que temos tendência a cair”. Têm em comum essa visão, mas depois vão em direcções diferentes!
Uma coisa que Lao-Tsé nos diz sobre o caminho é que quando tentamos defini-lo, perdemo-lo! É preciso romper com essa ideia de que há um caminho claro, porque essa é a armadilha em que muitas pessoas caem quando planeiam as suas vidas.
Falou de Lao-Tsé, qual é o seu filósofo preferido?
Quando estava na universidade e os li pela primeira vez, lembro-me [de achar] que Confúcio era como nenhum outro pensador que já lera. Era excitante porque confirmava tantas coisas que eu já pensava sobre como viver neste mundo. Também Mêncio nos fala da importância das relações e como devemos cultivá-las. Sobretudo por viver nos Estados Unidos – onde a ideia é: “pensa em grande, pensa como podes mudar o mundo, como podes salvar os outros” –, aquela era uma filosofia que podia abraçar.
Esperava que no final do livro existisse um capítulo com, por exemplo, as dez maneiras de encontrar o caminho. Não pensaram que seria útil para o leitor?
Não queremos que as pessoas se agarrem a essas ideias. O que queremos transmitir é: “rompa com tudo o que pensa que é”. Tendemos a definir-nos, “eu sou assim, aquele é assim…”, e o importante é perceber que somos pessoas diferentes em contextos diferentes. Quando o percebermos, já não poderemos viver vidas muito limitadas. Por isso, a proposta é romper com a ideia que temos de nós e dos outros, só assim conseguiremos seguir em frente.
Mas o que temos “aprendido” é a conhecer-nos melhor a nós próprios…
Sim, pelo menos nos Estados Unidos há a ideia que temos de nos definir a nós próprios, de fazer planos, de os seguir à risca. A nossa proposta é que a pessoa não se veja ou aos outros como seres humanos únicos. Lembre-se como é contraditório, como está sempre a mudar. Os alunos de Harvard, por exemplo, não têm um “caminho” a seguir, mas um “plano” que lhes foi traçado desde os dois anos. Penso que uma das razões por que o curso de Filosofia Chinesa tem tanto sucesso é porque é completamente contra essa ideia.
Isso significa que, depois deste curso, os alunos mudam de planos?
Sim. A maioria entra no curso com o percurso que a Christine descreveu. Foram criados a pensar sobre quem são, o que vão fazer, [definiram] o seu plano de vida de acordo com aquilo em que são bons. E depois, quando se confrontam com estes textos, há uma verdadeira mudança. Começam a procurar outras atividades. E aí é que começa a mudança! Anos mais tarde – é maravilhoso para os professores quando recebem e-mails dos seus antigos alunos – dizem que as suas vidas são diferentes não porque adotaram coisas radicalmente opostas ao que fizeram em Harvard, mas porque aplicam o que aprenderam no seu dia-a-dia e são melhores seres humanos por isso.
Se no Ocidente tivéssemos conhecimento destas ideias, teríamos uma sociedade diferente?
Penso que sim!
Contudo, a China, que terá bebido todo esse conhecimento, não é muito diferente do resto do mundo.
De momento não. O que aconteceu na China foi que no século XX se rejeitou por completo a tradição. Houve a revolução comunista, os livros foram queimados. Mais tarde houve um virar de costas ao comunismo e foi feito um percurso até se chegar ao extremo do neoliberalismo, onde tudo está à venda e tem um preço. Nas últimas duas décadas, a China tornou-se mais neoliberal do que os EUA, onde tudo é sobre dinheiro e poder. Mas muito recentemente, eu diria nos últimos oito anos, tem havido um debate sobre o que se perdeu. Os textos dos filósofos voltaram a ser debatidos. Na China existe uma enorme blogosfera onde nos deparamos com debates sobre estes temas.
O que se concluirá desses debates?
Quem sabe? Mas é importante que na China se olhe para estes textos como uma alternativa.
É importante percebermos que, por diferentes razões, a China e o Ocidente perderam-se no caminho. É preciso lembrar que estes textos foram escritos há 2500 anos e que desde então muita coisa mudou. Por exemplo, alguns excertos de textos de Confúcio foram mal interpretados.
O Caminho da Vida é um livro de filosofia ou de auto-ajuda?
É um livro de filosofia. O interessante na filosofia chinesa é que é sobre o aperfeiçoarmo-nos. Não se prende a questões sobre se as pessoas existem ou porque existem, questiona como podem ser melhores.
Ou seja, a filosofia pode ser terapia?
Bem, o intrigante na filosofia chinesa é que vai daquilo que consideramos argumentos filosóficos muito fortes até questões sobre a interacção entre as pessoas. Portanto, se levarmos a sério o que nos diz, seremos melhores seres humanos.
O nosso mundo está muito focado na ideia de auto-ajuda e na terapia. Tal como fazem os livros de auto-ajuda, este livro propõe que se seja melhor na relação com os outros e com o mundo; a diferença é que pede que se olhe para fora. Não me oponho à terapia, nem à meditação moderna, desde que seja mais do que se olhar para dentro de si próprio, porque a pessoa só existe num mundo com outras pessoas. É preciso olhar para essas interações.
Sim, muito do que existe no mercado livreiro é sobre “como encontrar o seu verdadeiro eu”, “abrace o seu verdadeiro eu”, “conheça-se a si mesmo”. Este livro é precisamente o oposto! É para pensar que talvez tenha de romper consigo e com o que está a fazer.
Sim, a auto-ajuda tornou-se perigosa porque nos levou para direcções erradas.
Qual é a direção certa?
Não olharmos para dentro de nós. Isso criou uma sociedade narcísica – e esse é o verdadeiro problema porque leva as pessoas para um vazio. Por exemplo, os alunos de Harvard são muito ambiciosos e querem criar mudança no mundo, mas isso é impossível quando se é criado a olhar para o umbigo.
Então é uma questão de educação?
As últimas gerações foram criadas a pensar nelas próprias.
Mas enquanto pais queremos que eles sejam os melhores, que tenham sucesso…
Sim, mas há formas diferentes de chegar ao sucesso. E até se pode ter o sucesso que se planeou mas, 20 anos depois, a pessoa acorda e põe em causa se aquela é mesmo a vida que queria.
A atual crise econômica tem obrigado muitas pessoas a mudar de vida, a arriscar; muitas encontram a felicidade a fazer coisas que não planearam.
Está tudo relacionado! Nas últimas décadas estivemos demasiado concentrados em nós próprios e isso ocorreu em simultâneo com a ascensão do neoliberalismo, com a visão de que tem tudo a ver com o indivíduo, com o seu sucesso. A crise fez-nos despertar para o perigo deste sistema econômico e também para o perigo da sociedade que estamos a criar.
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Tudo o que sempre quisemos saber sobre a vida pode estar na filosofia chinesa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU