03 Agosto 2019
"O eixo básico de nosso projeto de civilização é a subordinação da qualidade de vida dos seres humanos ao crescimento econômico (acumulação do capital)", constata Manfredo Araújo de Oliveira, doutor em Filosofia pela Universität München Ludwig Maximilian de Munique, Alemanha, e professor da Universidade Federal do Ceará – UFC.
O filósofo ainda alerta para o derrocada do nosso planeta: "A sociedade do crescimento é igualmente a sociedade do consumo ilimitado e a ideia hoje difundida fortemente de que nisto consiste propriamente a felicidade humana. Os resultados deste processo ameaçam a vida humana e toda vida no planeta. A exploração ilimitada da natureza, cujos efeitos se mostram nas catástrofes socioambientais que experimentamos e constitui elemento central neste modelo, alerta-nos para o fato de que o modelo econômico vigente pode encaminhar a humanidade a um colapso ecológico-social".
Para que análise de conjuntura? “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (AE 176). Para realizar esta tarefa, exige-se uma Igreja que seja capaz de buscar compreender o mundo em que está inserida, de escutar a sociedade e compreender suas características, seus problemas, suas necessidades específicas, de ter sensibilidade para as gigantescas desigualdades sociais, de considerar com toda seriedade e sem temor todas as questões que a sociedade levanta, conhecendo e respeitando o ser humano em todas as suas dimensões, mostrando profunda compaixão diante do sofrimento, das angústias, e confrontando-nos com as inúmeras formas de injustiça. Os gritos que pedem justiça continuam ainda hoje muito fortes. “O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas... (AE 52)”
Vivemos hoje numa nova era (LS 102), por isto se faz necessário antes de tudo para a evangelização nos darmos conta dos traços gerais da forma da sociedade moderna em que vivemos, que é extremamente complexa e diferenciada. Os Pastores, diz o papa, “acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser humano” (EG 182).
A pergunta que se impõe é: como se configura nossa situação histórica? O Papa Francisco articula na Laudato Si' um diagnóstico valoroso da atual crise social e ambiental, assumindo os dados fornecidos pela comunidade científica atual. Sua afirmação básica é que há uma profunda relação entre a crise social e a crise ambiental de tal modo que elas não são propriamente duas crises, mas dois momentos de uma única crise socioambiental que se radica num sistema econômico tecnocrático. “As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS n. 139, p. 88).
Os bispos brasileiros em sua mensagem ao povo brasileiro afirmam (2019): “A crise ética, política, econômica e cultural tem se aprofundado cada vez mais no Brasil. A opção por um liberalismo exacerbado e perverso que desidrata o Estado quase a ponto de eliminá-lo, ignorando as políticas sociais de vital importância para a maioria da população, favorece o aumento das desigualdades e a concentração de renda em níveis intoleráveis, tornando os ricos mais ricos à custa dos pobres cada vez mais pobres, como já lembrava o Papa João Paulo II na Conferência de Puebla (1979)”.
Segundo Marcelo Neri, diretor da FGV Social, um braço da Fundação Getulio Vargas, o Brasil em dez anos tirou 30 milhões de pessoas da pobreza e se tornou referência nas políticas de combate à fome. Do final de 2015 até 2017 os indicadores dispararam e 6,3 milhões de pessoas voltaram à miséria. Nos últimos três anos o aumento da pobreza foi de 33%. A concentração de renda vem aumentando desde o último trimestre de 2014. Segundo dados do IBGE, 15,2 milhões de pessoas vivem hoje abaixo da linha de pobreza, com menos de R$ 406 por mês. A lista de excluídos só aumenta: entre 2016 e 2017 subiu de 25,7% para 26,5%, o que significa a exclusão de quase 2 milhões de pessoas. Segundo estes dados, 55 milhões de brasileiros passam por privações, dos quais 40% no Nordeste. Na crise, a renda per capita dos ricos subiu 3% e a dos pobres desceu 20%. Doenças já erradicadas retornaram e a mortalidade infantil avançou sobre as famílias mais pobres.
Na última semana de maio, o IBGE divulgou que o PIB brasileiro caiu 0,2% de janeiro a março, a indústria extrativa caiu 0,6%, a indústria de transformação 0,5% e a de construção 2%, e a pecuária 0,5%, o agronegócio, porém, saiu ileso, de tal modo que o risco de recessão este ano é evidente. Já atualmente o Brasil, segundo o IBGE, tem 13,2 milhões de desempregados, 28,4 milhões subutilizados, 11,2 milhões sem carteira assinada e 23,9 milhões trabalham por conta própria. Segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, no ano a indústria perdeu 2,7%. O Ceará tem a 5ª pior renda do Nordeste, com 44,7% de sua população na pobreza.
Estes dados confirmam o que sociólogos já vêm dizendo há muito tempo: o Brasil não é um país pobre, é um país injusto. O Estado brasileiro recolhe uma grande quantidade de impostos, sobretudo dos pobres e da classe média, e repassa a maior parte para os mais ricos. Exemplo: 300 bilhões de reais como pagamento de juros da dívida pública [a taxa de juros do Brasil é a 7ª mais alta do mundo] passam por ano para o 1% mais rico. Neste contexto, a ideia mesma de justiça social parece ter desaparecido e “hoje, com a hegemonia da cultura neoliberal, a noção de justiça de mercado sobrepujou e deslegitimou a noção de justiça social” (SUNG J.M., Idolatria do dinheiro e direitos humanos, 2018, p. 14).
Que pretende dizer o Papa quando fala de que a crise se radica num sistema econômico tecnocrático? E os bispos brasileiros quando falam de liberalismo exacerbado e perverso? Que Projeto de Sociedade está sendo implementado?
O projeto fundamentalmente consiste na implementação radical do que se denomina “Liberalismo Econômico”. Esta corrente de teoria econômica é conhecida como a Escola de Chicago, que tem, contudo, seus fundamentos filosóficos nas teses da assim chamada Escola Austríaca, cujo principal expoente é Ludwig von Mises (entre nós há o Instituto “Mises Brasil”). Teses básicas: o direito de propriedade é o único direito universal, fundamental e absoluto que começa com o direito absoluto do próprio corpo e inclui todos os bens que se possa adquirir. Deste direito se derivam o direito absoluto de não agressão à propriedade e o direito de defender a propriedade.
O Estado é visto como o grande usurpador da propriedade e a única instituição eticamente aceitável na esfera da atividade econômica é o “Mercado Livre”. Todos no mercado livre têm os mesmos direitos. Cada indivíduo é o único responsável por seus objetivos e as estratégias escolhidas para alcançá-los. Suas regras constituem um mecanismo semelhante às leis da natureza: elas são algo objetivo que o ser humano não tem condições de modificar. Por esta razão, devemos estudar a ação humana e a cooperação social como um físico estuda as leis da natureza (naturalismo epistemológico).
Assim como não podemos julgar boa ou má a lei da gravidade, do mesmo modo não podemos julgar as leis do mercado: elas simplesmente se impõem a nós, portanto...”o mercado não pertence ao campo das ações e interações humanas e sociais” (SUNG J.M., op. cit. p. 130), é algo superior e incontrolável, e desta forma não tem sentido aqui levantar questões éticas que pertencem a outro nível. A única questão aqui é sua eficiência técnica. O mercado é compreendido como um mecanismo auto-organizador e, enquanto tal, sua avaliação tem como critério a eficiência e não a valoração ética.
Não há direitos fora das leis do mercado. Portanto, a desigualdade e a exclusão nada têm a ver com injustiça social. Assim, a pobreza não é um problema ético, mas uma incompetência técnica. O maior erro dos opositores do capitalismo é assim a acusação de injustiça social baseada na ideia de que “a 'natureza' concedeu a todas as pessoas certos direitos só pelo fato de terem nascido”. Por esta razão, no que toca à distribuição da riqueza...”não tem sentido referir-se a um suposto princípio natural ou divino de justiça” (Cf. MISES L. von, The Anti-Capitalist Mentality, Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2008, p. 80, 81).
O Estado, quando me obriga a pagar impostos para garantir os chamados direitos sociais (moradia, escola, saúde, etc.), me obriga à solidariedade social e cria parasitas que vivem da minha propriedade. Assim, o imposto é uma forma de confisco da propriedade. Portanto, nem saúde, nem educação, nem previdência, nem segurança pública, nem justiça se legitimam enquanto financiados pelo Estado. Os pobres não passam de indivíduos que escolheram objetivos errados ou estratégias não adequadas, ou seja, são indivíduos que por culpa própria perderam a competição com outros. Assim, o mérito (a meritocracia) emerge como único critério de ascensão social. Há muitos perdedores na sociedade que são fracassados e vivem a exigir privilégios.
Como isto se traduziu depois num projeto de sociedade? Este projeto foi pensado nos anos quarenta, sobretudo, por F. von Hayek e M. Friedman e o objetivo fundamental foi contrapor-se ao surgimento do que se chamou o Estado de Bem-Estar Social articulado basicamente a partir das ideias do economista britânico J. M. Keynes com o objetivo fundamental de salvar o capitalismo, marcado por uma profunda crise desde os anos 20 do século passado decorrente de problemas criados pela lógica de exclusão e concentração de riqueza do mercado e das reivindicações neste contexto da classe trabalhadora. Estas propostas do liberalismo econômico ficaram esquecidas até que o capitalismo entrasse de novo em crise nos anos 70.
A ideia básica que moveu Keynes era que a insuficiência da demanda que marcava o capitalismo em crise só poderia ser superada através de uma política de pleno emprego e de redistribuição de riqueza (promoção do consumo para manter a acumulação, a eficiência econômica). Para que a economia pudesse atingir isto, foi necessária a intervenção do Estado como regulador e parceiro, ou seja, intervenção nos mecanismos do mercado através de políticas econômicas e sociais de algum modo limitadoras de sua lógica. Sem dúvida, aqui também o mercado é visto como o sistema econômico que produz maior eficiência produtiva, mas não é sempre um sistema justo na distribuição. Assim, o Estado aparece como o grande parceiro do mercado que, através de suas intervenções, tem condições de minimizar crises econômicas e recessão e agir na direção de enfrentar os problemas sociais aqui gerados.
O grande mecanismo do Estado de Bem-Estar Social para realizar isto foi a criação do que se chamou de Fundo Público para operar de duas maneiras básicas: Financiamento da Reprodução e Acumulação do Capital, o que levaria a aumentar a taxa de lucro, e Financiamento da Reprodução da Força de Trabalho através do que se chamou o “salário indireto”, as chamadas políticas sociais: educação gratuita, medicina socializada, previdência social, etc.
Numa palavra, trata-se de uma forma de articular a economia através do financiamento simultâneo do capital e do trabalho. Durante a segunda guerra mundial foi publicado na Europa um relatório (de Beveridge) propondo um sistema universal de luta contra a pobreza, que assim articulou os objetivos desta forma de organizar a economia. Numa palavra, o Estado de Bem-Estar foi instalado através dos seguintes elementos: 1) Intervenção do Estado nos mecanismos de mercado; 2) Política de pleno emprego (melhoria dos rendimentos dos cidadãos); 3) Institucionalização do sistema de proteção; 4) Institucionalização de ajudas para os que não conseguem estar no mercado de trabalho.
A partir daqui se articulou na Europa a ideia do que se chamou Estado Social de Direito (no Brasil normalmente só se fala de Estado de Direito), que consiste basicamente em incluir no sistema de direitos fundamentais não só as liberdades individuais, direitos civis (direitos negativos que protegem as pessoas contra as usurpações ilegítimas do Estado) e os direitos positivos políticos (direitos que garantem a participação na formação da vontade pública), mas também os direitos econômicos, sociais e culturais (direitos positivos ou direitos à prestação, direitos sociais) [Cf. RICOEUR P., Percurso do reconhecimento, São Paulo: Loyola, 2006, p. 213): satisfação das necessidades básicas e acesso a bens fundamentais para todos como exigências éticas a que o Estado deve responder, o que só é possível através de intervenção (pode-se falar aqui de uma justificação ética das políticas sociais). Aqui a tese básica é de que é possível e irrenunciável proteger os direitos sociais que caracterizam a cidadania social: a satisfação de necessidades básicas e acesso a bens fundamentais a todos os membros da sociedade, o que implica que o Estado se torne um Estado interventor no campo econômico e social, o que pressupõe a consciência de sua corresponsabilidade na condição social da sociedade, sobretudo de seus membros mais vulneráveis.
O resultado deste processo foi o aumento da capacidade de consumo das classes menos favorecidas. E com isto nasce o que se chamou consumo de massa. Isto levou a um endividamento do Estado e, nos anos 70, a uma profunda crise causada por muitas razões, entre as quais uma muito fundamental foi gerada pelo fato de que os grandes oligopólios transnacionais não enviaram os lucros obtidos para seus estados de origem e assim não alimentaram os fundos públicos nacionais.
Esta crise violenta dos anos 70 foi chamada de “colapso da modernização” e provocou o reaparecimento das teorias econômicas elaboradas nos anos 40. Este foi o fenômeno que se denominou de Neoliberalismo. O básico nesta proposta é a eliminação do duplo financiamento que caracterizou a fase anterior. Agora o financiamento se dirige exclusivamente ao capital: o neoliberalismo corta o fundo público no polo do financiamento dos bens e serviços públicos, numa palavra, corte do salário indireto (os programas de bem-estar social) através de reformas.
Para os adversários do “Estado Social”, a insistência no financiamento dos bens e serviços públicos, políticas consideradas irracionais e populistas, de fato produz menos crescimento e mais desemprego a longo prazo, que são o resultado da não consideração da escassez de recursos e da lógica de funcionamento dos mercados. Assim, a recomendação agora para os mercados financeiros é a desregulamentação e a eliminação das barreiras à entrada e à saída do capital-dinheiro; para os mercados de trabalho, a flexibilização e a remoção das cláusulas sociais, “ineficientes e danosas para os trabalhadores” (Cf. BELLUZZO L. B., Carta Capital n. 1054 p. 45).
O objetivo fundamental agora é maximizar o uso da riqueza pública nos investimentos do capital, o que faz com que os direitos sociais tendam a desaparecer e a serem reduzidas as alíquotas de impostos sobre os maiores rendimentos, ou seja, impostos mais baixos para os ricos (o sistema tributário estimula a especulação e não o trabalho), desregulamentação dos mercados de trabalho, políticas que aumentam as riquezas para os mais ricos (servem ao 1% mais rico), ampliam a desigualdade econômica e não produzem o crescimento prometido. Uma das políticas fundamentais é a concentração excessiva no controle da inflação e do orçamento ignorando as reais ameaças à prosperidade econômica, que são a crescente desigualdade, o subinvestimento e fosso crescente entre produtividade (aumento de 161% em 40 anos) e salário (80% dos empregos conseguidos é atividade de baixa remuneração). O problema é mundial e nacional, plenamente demonstrado no caso dos Estados Unidos, vistos como modelo, pelo relatório planejado e coordenado pelo prêmio Nobel de economia J. Stiglitz no livro Rewiriting the Rules of American Economy, Roosevelt Institute, 2015, mostrando também que é possível reduzir a desigualdade e ao mesmo tempo melhorar o desempenho econômico.
L. B. Beluzzo traduziu isto assim: ...”é preciso libertar as forças criativas da iniciativa privada e permitir a fluência mercantil desimpedida das restrições impostas pela intervenção estatal” (Carta Capital 1054, p. 45). Daí a cruzada global contra a intervenção estatal e os direitos sociais e econômicos criados pelas políticas do Estado Social, que, segundo seus adversários, constituem um obstáculo à operação das leis de concorrência e por isto são políticas irracionais e populistas. Elas, a longo prazo, produziriam menos crescimento e mais desemprego e por isto devem ser substituídas por políticas que não se contraponham às hipóteses científicas do indivíduo utilitarista. Por isto, os defensores do “mercado totalmente livre” (considerado condição para a realização do ser humano enquanto ser livre) se contrapõem radicalmente a estas políticas consideradas ineficientes e perturbadoras do processo produtivo e, sobretudo, pelo que elas pressupõem: seu financiamento através de impostos.
O caminho agora, então, proposto era outro, por levar em consideração as restrições de recursos e o funcionamento dos mercados competitivos: desregulamentação dos mercados financeiros e eliminação das barreiras de entrada e saída do capital-dinheiro, flexibilização do mercado de trabalho e remoção de cláusulas sociais, política monetária controlada por um banco central independente, etc. Aqui está, diz J.M. Sung (op. Cit. p. 16), “a grande novidade 'espiritual' e cultural do nosso tempo”, é este o 'novo espírito' do capitalismo, seus novos valores fundamentais em contraposição ao desenvolvimentismo anterior: confiar plenamente no mercado enquanto sistema auto-organizador que uma vez libertado de regulações e intervenções indevidas soluciona por si mesmo todos os problemas econômicos e sociais, satisfazendo “a sempre crescente gama de desejos” (CF. HAYEK F.A. von, The Road to Serfdom, Chicago: Uni. of Chicago Press, 2007, p. 70). Deste modo, o mercado e não o ser humano é o construtor da história: no lugar de um sujeito consciente entra em cena um mecanismo inconsciente, impessoal, que é politicamente incompatível com a democracia. As atividades das organizações da sociedade civil, dos sindicatos, dos movimentos sociais são simplesmente inúteis, desprovidas de sentido, baseados em conceitos primitivos.
Assim, o Neoliberalismo significa um processo de contração do espaço público dos direitos e um processo de ampliação dos interesses privados de mercado, o que levou a um aumento significativo do papel das ciências e da tecnologia no processo de produção, o que fez com que muitos cientistas sociais contemporâneos afirmassem que a ciência e a tecnologia se transformaram nas forças produtivas mais importantes.
Neste contexto se mostra que agora o eixo básico de nosso projeto de civilização é a subordinação da qualidade de vida dos seres humanos ao crescimento econômico (acumulação do capital). Aqui o aumento do PIB é o sinal mais claro de progresso. A sociedade do crescimento é igualmente a sociedade do consumo ilimitado e a ideia, hoje difundida fortemente, de que nisto consiste propriamente a felicidade humana. Os resultados deste processo ameaçam a vida humana e toda vida no planeta. A exploração ilimitada da natureza, cujos efeitos se mostram nas catástrofes socioambientais que experimentamos e constitui elemento central neste modelo, alerta-nos para o fato de que o modelo econômico vigente pode encaminhar a humanidade a um colapso ecológico-social.
O ser humano radicalizou este processo no século XX, utilizando-se para isto das ciências da vida que tornaram possível a intervenção humana no mundo vegetal e animal. É neste novo contexto que podemos compreender os problemas que emergem em nossos tempos e que são ainda mais agravados pela incerteza a respeito dos efeitos das novas tecnologias altamente eficientes, que parecem ameaçar a identidade do mundo através das novas manipulações, agora, sobretudo, no campo dos organismos (vegetais e animais) através da descoberta do íntimo dos organismos, da identificação e manipulação dos genes, da técnica da transferência e recombinação do patrimônio genético e, portanto, a possibilidade de se produzir em laboratório combinações e variações dos mais diversos seres com grande repercussão, sobretudo na agricultura, na economia e na medicina como também na vida dos trabalhadores (LS 134). Tudo isto vinculado a negócios financeiros gigantescos como o patenteamento de genes, a produção de órgãos para transplantes e o desenvolvimento de oligopólios. Neste contexto social não se descarta a possibilidade de uma guerra bioquímica e bacteriológica.
As consequências são desastrosas: o mercado absolutizado vinculou produtividade progressiva e miséria progressiva, processos de desenvolvimento e processos de exclusão. Elemento ideológico fundamental neste contexto é a defesa do mercado como único elemento regulador da vida societária, o que implica a recusa radical da intervenção estatal a não ser quando ela se põe a serviço das políticas neoliberais: liberação do movimento dos capitais, privatizações, combate à inflação através de uma alta taxa de juros, afrouxamento fiscal, etc. A ideia aqui pressuposta é que o movimento do capital, deixado em si mesmo, tenderia ao equilíbrio, ou pelo menos à harmonia, tese cada vez mais ameaçada pelos resultados produzidos (Cf. FAUSTO R., Caminhos da esquerda. Elementos para uma reconstrução, São Paulo: Companhia das Letras, 2017 p. 97-98).
Neste contexto, o desemprego se tornou estrutural porque a forma atual do capitalismo não objetiva incluir toda a sociedade (pleno emprego) no mercado de trabalho e consumo, mas atua por exclusão: o custo da força de trabalho tem que diminuir. Daí também o aumento acelerado da terceirização. (No Brasil, para Giannotti: “...o medo de rebaixamento do padrão de consumo transforma as classes médias num barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento, mas logo se recolhe”. Cf. GIANNOTTI J. A., Savonarolas oficiais, in: Democracia em Risco?, op. cit., p.165-166).
S. Neckel, do Instituto de Sociologia da Universidade de Hamburgo, mostra-nos em seus trabalhos que em muitas sociedades modernas está em andamento uma transformação da própria desigualdade com surgimento de privilégios “neo-feudais” para os ricos, enquanto as classes populares enfrentam a exclusão (entre 30 e 35 milhões de trabalhadores vivem hoje em condições de privação de direitos próximas à escravidão, privados de qualquer forma de segurança social) e retorno do trabalho forçado (21 milhões no mundo, OIT).
Está assim acontecendo uma re-feudalização do capitalismo moderno (expressão usada por J. Habermas), uma vez que processos atuais de modernização estão conduzindo a padrões sociais pré-modernos que recriam o antigo como se fosse o novo. Isto se traduz em vantagens significativas para as elites (rendimentos gigantescos sobretudo dos mercados financeiros. Aqui a herança e o casamento voltam a ter um papel essencial. 10% do topo da pirâmide detêm 80% a 90% da riqueza global, aponta Th. Piketty. Cf. PIKETTY Th., O Capital no século XXI, Rio de Janeiro: Ed. Intrínseca Ltda., 2014, p. 231 e ss), que se beneficiam de uma oportunidade de enriquecimento única na história, enquanto as camadas inferiores não só empobreceram, mas se encontram cada vez mais expostas a condições de trabalho que não correspondem aos padrões modernos elementares em matéria de relações contratuais (salários não garantem a sobrevivência). Os trabalhadores estão, em diferentes situações, em dependência pessoal nas relações de trabalho e de exploração, sem contrato ou estabilidade, que favorecem a violência e a correção social.
Outro efeito deste processo e ao mesmo tempo seu impulso fundamental foi a Financeirização. No caso do Brasil, como nos mostra J. SOUZA, A Elite do atraso. Da escravidão à Lava Jato, 2017, a sociedade brasileira foi vítima desde 2013 de um violento ataque do capitalismo internacional com um duplo objetivo: a) quebrar a experiência nascente do BRICS (autonomia do país na inserção internacional); b) transformar o orçamento público por meio da dívida pública. Isto é efeito da nova configuração do capitalismo, agora transnacionalizado, ou seja, possuindo um espaço de ação além dos estados nacionais. Desta forma, hoje no centro deste sistema está um descompasso suicida entre o “capital produtivo” e o “capital improdutivo” (rentista) com enormes impactos na vida humana. O mercado, portanto, é hoje em primeiro lugar o mercado financeiro (nacional e internacional): em nossos dias o trabalhador é muito mais explorado pelo capital financeiro, pela taxa de juros: não podendo pagar à vista, com a taxa de juros ele paga proporcionalmente o dobro ou mais pelo que compra. Com isto, a fração financeira do capital passa a comandar o processo econômico, o processo político e a esfera do Judiciário. Isto conduz, do ponto de vista político, à criminalização dos movimentos sociais, ao ataque aos sindicatos e à difamação dos partidos de esquerda, tentando eliminar a mediação política dos interesses das classes populares.
Na realidade, hoje, quem ganha dinheiro são aqueles que podem fazer aplicações financeiras. No mesmo semestre em que a indústria desabou, o lucro dos maiores bancos cresceu 22,3%. Desta forma, as instituições de crédito sugam a capacidade de compra da população e esterilizam o processo produtivo, pois seu principal motor, o consumo das famílias, fica paralisado. Daí por que se pode hoje falar da hegemonia do “capital improdutivo”: ele não produz e não cria emprego. Isto gerou uma espécie de elite que vive de juros e não da produção. Este capital se apropria de volumes enormes de recursos que deveriam servir ao desenvolvimento da capacidade produtiva e ao desenvolvimento social, ou seja, é um processo de desmantelamento das políticas do Estado de Bem-Estar Social e uma financeirização radical do capitalismo. Passa para o centro o aumento vertiginoso das finanças especulativas, e o Brasil se destaca no mundo como a maior e mais influente presença do rentismo na sociedade e a classe rentista se vai apoderando das instituições estatais.
A acumulação financeira toma o lugar da acumulação produtiva. Trata-se de uma transferência do dinheiro do povo para beneficiar os bancos e uma minoria de aplicadores, portanto, de drenar o trabalho de todos para o bolso da elite do dinheiro. Desaparece do horizonte a meta de uma política consistente de distribuição de renda que possa efetivar transformações profundas dos padrões de vida das maiorias. Ao contrário, o receituário é definido com o objetivo de preservação dos interesses minoritários dos poderosos e isto é lamentavelmente a repetição do mesmo em diferentes formas na história do Brasil.
Foi no seio da nova revolução tecnológica no âmbito da informação, dos transportes e das comunicações, que se gestou um modo novo de acumulação e regulação do capital: a Globalização ou Mundialização do capital. Está em jogo aqui um tipo de “liberalismo transnacional” já que por decisões políticas desregulamentou o mercado mundial, sobretudo os mercados financeiros produtores da especulação em grande escala e estimuladores da criação dos paraísos fiscais, uma “financeirização que sufoca a economia real” (LS 109). Trata-se da formação de uma “sociedade mundial”, porque o mercado e o sistema de comunicação produziram uma conexão global estratificada. O objetivo fundamental aqui é a construção de um mercado consumidor mundial.
Revela-se aqui com clareza que o desenvolvimento tecnológico se faz exclusivamente em função da maximização dos ganhos sem preocupação “com o justo nível da produção, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado responsável do meio ambiente ou dos direitos das gerações futuras” (LS 109). Neste contexto, as pessoas são avaliadas de acordo com sua capacidade de participação no mercado e assim de poderem tonar-se consumidoras efetivas. O consumo se transforma em medida da felicidade e, portanto, da realização humana, e conduz a um profundo individualismo. Os seres humanos são nesta mentalidade reduzidos a instrumentos úteis ou não para a consecução deste objetivo fundamental.
A globalização aprofundou os processos de interconexão econômica, política e cultural, provocando uma permuta mais ampliada entre os países e os povos, aumentando a interdependência ainda que de forma assimétrica: o superdesenvolvimento dissipador e consumista convive em nosso mundo com a miséria desumanizadora (LS 109). Este sistema foi possibilitado por muitos fatores, entre os quais ocupam um lugar fundamental os progressos tecnológicos com a revolução dos meios de comunicação (LS 47). Fez-se, assim, possível ultrapassar as fronteiras do tempo e do espaço, tornando a comunicação mundial instantânea, estendendo para todo o planeta a difusão não só de imagens e sons no seio de um bombardeio publicitário permanente, mas também de capitais, de tecnologias, de ordens de bolsas e transações, informações, etc. Uma mudança do núcleo de acumulação se vai configurando, ou seja, a passagem do Ocidente para a Ásia, sobretudo para a China.
Na realidade, nesta dinâmica o capital angariou para si um espaço de ação para além do espaço dos estados nacionais, instituindo uma economia global através de uma onda de desregulamentações, fusões e privatizações, reestruturação empresarial e produtiva, expansão das empresas transnacionais, aumentando a produção e a riqueza mundiais com distribuição desigual de seus resultados já que privilegiando elites hegemônicas e degradando os ecossistemas. A globalização transformou profundamente a organização econômica, as relações sociais, os modelos de vida e cultura, os estados, a política e acelerou enormemente mudanças. Recorre-se hoje à lógica da globalização para legitimar o desmantelamento das instituições de proteção social e de controle de mercados, do exercício do papel equilibrador do Estado e da proteção dos direitos dos cidadãos. Há grandes massas de indivíduos que são os perdedores deste processo. Para o Papa, os problemas da fome e da miséria no mundo não serão, como se propala, resolvidos simplesmente pelo mercado, pois “o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral, nem a inclusão social” (LS 109). Numa palavra, como diz o Nobel da Economia J. Stiglitz, esse projeto tem sido um fracasso espetacular de tal forma que o neoliberalismo deve ser declarado morto e enterrado.
Confrontamo-nos hoje todos com a possibilidade de autodestruição da humanidade e de todas as formas de vida do planeta. Temos consciência de que a ação humana, tecnicamente qualificada, pode arruinar definitivamente a natureza e o próprio ser humano: o processo de intervenção na natureza produziu um aumento considerável do bem-estar e um aumento extraordinário do consumo, que, por sua vez, originou tanto um aumento enorme do metabolismo com o meio ambiente natural, que é essencialmente finito em seus recursos, quanto uma assimetria entre a capacidade de produzir e a capacidade de consumir. O que hoje se faz cada vez mais manifesto é que a civilização técnico-científica é marcada por uma problemática básica: a notória incompetência do ser humano em finalizar o processo previsivelmente destruidor de si mesmo e da natureza.
Vivemos hoje numa Sociedade essencialmente Pluralista: multiplicidade dos imaginários sociais, multiculturalismo, diferentes propostas éticas e religiosas, diferentes concepções da realidade, enfraquecimento das tradições e das instituições sociais, entre as quais sobretudo a família e o Estado. Experimentamos hoje a perda de evidência e validade incondicional de valores, convicções, formas de comportamento, sistemas normativos, instituições, o que gera uma crise radical dos sistemas normativos, levando frequentemente a um relativismo difuso e, mesmo, ceticismo.
Neste contexto exerce enorme influência a chamada “guerra de 4ª geração” (KORYBKO A., Guerras híbridas, São Paulo: Expressão Popular,2018), em que a arma fundamental de combate é a informação. “Trata-se de produzir informações parcialmente verdadeiras (pós-verdade) ou falsas (fake news), mas plausíveis para quem as recebe, e difundi-las pela combinação da mídia corporativa (TVs, rádios e jornais), mídias digitais (whatsapp, facebook e twitter) e instituições com credibilidade, como Igrejas cristãs, ONGs ou institutos de pesquisa” (OLIVEIRA P. A. R. de, Análise de conjuntura, 2019, mimeo, p. 4). Esta guerra constitui o resultado da combinação entre dinheiro, poder e conhecimento, que direta ou indiretamente estabelecem conexões mútuas entre si na construção de uma grande rede sem qualquer tipo de controle como existe na mídia tradicional. De algum modo, há uma espécie de democracia direta em jogo aqui e, como tal, foi vista como um processo de descentralização do poder da comunicação. Sem dúvida se tratava aqui de um instrumento importante para protestar contra a corrupção, o autoritarismo e defender uma democracia autêntica. No entanto, criou-se também com isto um espaço utilizado para a manipulação, a difusão de notícias falsas, para a recuperação de concepções que se imaginava terem sido superadas e de estímulo ao populismo e ao fundamentalismo religioso, defesa de racismo, homofobia e autoritarismo. A influência é simplesmente decisiva na formação da opinião pública.
Numa sociedade pluralista, a problemática do reconhecimento das diferenças se transformou numa das forças motrizes dos movimentos sociais. Isto nos faz perceber que as lutas na sociedade não se reduzem apenas a lutas de natureza econômica. Verdade é que surgiram nas últimas décadas novas lutas e novos movimentos relativos aos direitos fundamentais, por exemplo: sem-terra, sem-teto, quilombolas, indígenas em defesa de seus territórios e de sua cultura, pescadores, movimentos socioambientais, segurança lazer etc. Mas começaram a surgir também, neste contexto pluralista, lutas e movimentos novos em torno da defesa de direitos especiais ou, como normalmente se diz, lutas por reconhecimento da identidade, como questões de gênero, sexuais, culturais, de deficientes, de mulheres, de etnias, etc. (Cf. AQUINO JÚNIOR F. de, Teologia em saída para as periferias, São Paulo: Paulinas/Pernambuco: Unicap, 2019, p. 122 e ss). De maneira geral, pode-se dizer que as igrejas estão pouco preparadas para enfrentar sobretudo estas questões.
As novas tecnologias das redes digitais, que se tornaram amplamente disponíveis para os brasileiros entre 2013-2018, introduzindo a experiência da massa digital (Cf. DUNKER C. I. L, Psicologia das massas digitais: análise do sujeito democrático, in: Democracia em Risco?, op. cit., p. 120), constituíram um elemento fundamental para a vitória eleitoral deste projeto que foi alimentado por um enorme bombardeio ilegal de Fake News (torna-se cada vez mais difícil fazer-se escutar por argumentos) a respeito, sobretudo, de três questões básicas: corrupção, violência e costumes. Isto aconteceu no Brasil, mas também nas vitórias de Trump (Estados Unidos), Salvini (Itália), Orbán (Hungria) e Duterte (Filipinas). Estas vitórias se inscrevem num movimento mundial de forças antiemancipatórias que é pró-capitalista, antidemocrático, antifeminista, racista e antiecológico. A questão dos costumes e sua interpretação religiosa se tornaram aqui questões decisivas, e com o projeto neoliberal este é um dos pilares da visão de mundo do novo governo.
Como diz R. de Almeida: “Boa parte da argumentação dos atores pró-conservadorismo dos costumes apela para a constatação, repetida por eles, de que 'o Estado é laico, mas a sociedade é religiosa'... o Brasil é majoritariamente cristão. Logo o cristianismo (ou versões dele) deve prover o parâmetro moral e legal dos comportamentos”. Portanto, as minorias se devem submeter à maioria. Com isto se está negando a liberdade religiosa, um dos fundamentos das liberdades modernas, como diz J. Habermas (ALMEIDA R. de, Deus acima de todos, in: Democracia em Risco? 22, op. cit., p. 47). Esta problemática é apresentada numa linguagem salvacionista (retórica messiânica): este governo vai salvar o Brasil de seu câncer que são os políticos corruptos!
Um elemento importante que teve papel decisivo neste processo foi o papel assumido pelo Judiciário na crise político-econômica das sociedades atuais (cf. entre nós, a operação Lava Jato e o Manifesto assinado por cem procuradores e promotores a favor da Escola sem Partido [proibição de os professores assumirem diante dos alunos suas posições políticas e religiosas] que, aprovada, poderá levar muitos professores ao afastamento ou à prisão). (Cf. FAUSTO R., Depois do temporal, in: Democracia em Risco?, op. cit., p. 150 e ss).
Não se pode pensar a situação do Brasil simplesmente a partir somente do Brasil, mas precisamente no contexto da situação do sistema global antes apresentado. No caso brasileiro, o objetivo de implementação do projeto neoliberal de sociedade entre nós se faz agora mais visível através dos “Projetos de Reforma” (também denominados de “Processo de Ajuste”) que constituem o desmonte sistemático dos direitos sociais: (é impressionante a velocidade dos esforços para mudar a Constituição). Há um forte retrocesso social (eliminação de conquistas sociais de décadas com intensa participação democrática) com a perda de direitos, desmantelamento dos programas sociais, a informalidade em crescimento (as vagas no setor privado neste ano em sua grande maioria são informais, aponta o IBGE), a volta da fome e o aumento acentuado da desigualdade.
A tendência é o agravamento da situação com a plena implementação da Reforma Trabalhista, cujo objetivo básico é reduzir o valor da força de trabalho, barateando os custos do empresariado e precarizando o trabalho (informalidade, contratação por hora, redução drástica de salário), o que significa aumento do grau de exploração da força de trabalho. Cai com isto a CLT, que era o conjunto de normas que protegiam os empregados desde os anos 30 do século passado (hoje apenas um terço do total dos trabalhadores está na CLT). As condições do mercado de trabalho começaram a piorar desde 2015 e depois de sua implementação cresceu muito o contingente de trabalhadores sem acesso aos mecanismos de proteção social vinculados à formalização do trabalho, como salário mínimo e aposentadoria, e mesmo sem emprego (temos a maior taxa de desemprego das Américas, 12,7%, e há poucas perspectivas de melhora do mercado de trabalho para os próximos anos), numa situação em que as perspectivas apontam para uma substituição das tarefas do trabalhador por robôs. Que nos espera o uso cada vez mais intenso dos produtos da inteligência artificial? A Organização Internacional do Trabalho decidiu denunciar o Brasil por violação de convenções internacionais. O país será investigado por tirar a proteção dos trabalhadores, permitindo que o negociado entre empregados e patrões se sobreponha à lei.
Por sua vez, isto se aprofunda com a implementação da Reforma da Previdência, reduzida a uma simples questão fiscal prescindindo dos valores éticos aqui em questão, o que se mostra, por exemplo, na inviabilização da aposentadoria da maioria dos trabalhadores (um elemento muito visível aqui é o não enfrentamento das diferenças gritantes na aposentadoria entre o setor público e o setor privado). É importante compreender que uma Reforma da Previdência tem um impacto geral sobre a qualidade de vida das pessoas e expressa que tipo de sociedade se pretende construir.
Este tipo de reforma é apresentado pelo governo como solução fundamental de todos os problemas do país hoje. Acima de tudo, afirma-se com força que não há alternativas para a proposta. No entanto, a pressão popular e o medo dos deputados em função das consequências de seus votos, fizeram retirar da proposta a diminuição dos benefícios para idosos miseráveis (BPC) e a proposta de aposentadoria para os trabalhadores rurais. Estados e municípios foram retirados da reforma e a situação fiscal aqui é dramática, pois, tirados os pequenos estados criados a partir de 1980, todos os outros apresentam déficit. Há três dos maiores que gastam mais de 25% (RJ, RS e MG) das receitas para pagar aposentados e pensionistas. Mantida esta situação, o rombo nas previdências estaduais pode quadruplicar até 2060.
Este projeto atual é profundamente diferente de projetos anteriores que ocorreram nos governos de F. H. Cardoso e Lula. Aqui não há apenas mudanças nos parâmetros (por exemplo, mudança no tempo de contribuição, de idade, etc.) como dizem os especialistas, mas mudanças estruturais. As reformas anteriores procuravam viabilidade financeira, embora haja algumas questões problemáticas. Além disso, há impacto direto das aposentadorias e benefícios previdenciários na movimentação da economia: para 70% dos municípios esta é a fonte principal de recursos. Agora há uma mudança de estrutura. Passa-se de um Modelo de Repartição para um modelo de Capitalização (foi excluída do texto, mas o ministro da Economia diz que ela volta), que em última instância significa uma privatização da previdência. Por isso, os grandes beneficiados da reforma são justamente os maiores privilegiados do país: banqueiros, rentistas, especuladores, ou seja, o capital financeiro.
A Capitalização é um modelo oposto ao da seguridade social. Quebra sua espinha dorsal. O sistema atual é um sistema de solidariedade entre gerações (no ano passado, o INSS arrecadou 391 bilhões de reais) e por isto é essencial à distribuição de renda no nono país mais desigual do mundo, e a proposta é desmontá-lo. Na capitalização, cada trabalhador é responsável por poupar para a própria previdência, ele tem uma conta individual e vai capitalizá-la a vida inteira. Ele se aposenta com o que é recolhido numa espécie de poupança individual num fundo de pensão privado. Se um empregado não consegue capitalizar o mínimo (há muitos trabalhadores que passam longos períodos desempregados ou na informalidade, que é muito alta) para ter depois um benefício também mínimo, é um problema dele: ele se aposenta com o que conseguir guardar e sabemos que a regra para a grande maioria não é sobrar, mas faltar dinheiro, até porque, por exemplo, para os trabalhadores que passam longos períodos desempregados ou na informalidade, o montante poupado não é suficiente para manter a aposentadoria.
Além do mais, trata-se de uma Financeirização do sistema: são empresas que recebem o recurso da contribuição e vão aplicar cobrando os custos. Isto é entregar as pessoas ao mercado financeiro, porque entrega a gestão das aposentadorias aos bancos. Aqui se apresenta como óbvia e necessária a administração dos recursos por bancos privados. Nos países que aprovaram este sistema, isto gerou lucros bilionários para os administradores e uma massa de idosos em situação de pobreza (60% dos países que adotaram a capitalização já voltaram atrás). Como fica a situação dos que não conseguem arranjar emprego: agora com a indústria 4.0 (inteligência artificial) milhões de empregos vão acabar. O avanço da pobreza é previsível. O tempo de contribuição de 40 anos para a aposentadoria integral é inalcançável para a maioria. Trabalhadores pobres e da classe média vão trabalhar mais, contribuir por mais tempo e receber menos; o topo da pirâmide social, porém, vai continuar com seus privilégios, embora o ministro da Economia repita sempre que a reforma é para combater privilégios (Cf. caso dos parlamentares e oficiais militares [a economia com eles representa 1% do que se pretende tirar dos demais trabalhadores]).
A ideia de fundo é acabar com a Previdência Pública (mais profundamente ainda, destruir o modelo de sociedade pactuado em 1988), pois aqui não há redistribuição, já que o dinheiro que se quer economizar vai sair dos mais pobres. A reforma é profundamente injusta, pois retira direitos (Segundo E. Fagnani, Unicamp, 75% da economia virá da retirada de direitos de quem ganha até dois salários mínimos, 100 milhões de brasileiros; portanto, retiram renda dos que poderiam consumir estimulando investimentos e geração de empregos) e dinheiro dos mais pobres. Este é o receituário mundial do neoliberalismo tomado como programa de governo. Só de sonegação de pagamento da previdência por parte dos ricos são 500 bilhões de reais e o projeto não toca na questão. A Receita Federal sabe quem são os sonegadores, mas nada faz.
Além disso o país abre mão de 350 a 400 bilhões por ano com isenções fiscais. O governo atual não interrompeu estas políticas, mas as aprofundou com a política dos cortes não do lucro dos banqueiros, mas das políticas sociais. Com as políticas de ajuste já está havendo mais desemprego, o que significa redução do mercado interno, porque há muito menos dinheiro nas mãos de muitas pessoas. Além de tudo isto, já foi anunciada a privatização das empresas estatais que porá à disposição do governo 70 bilhões a mais para serem transferidos para os mais ricos. A reforma da previdência é apresentada pelo governo como condição necessária para que o Brasil retome o crescimento econômico e isto é repetido permanentemente na mídia.
O Brasil precisa de uma Reforma Tributária verdadeira que reverta radicalmente a situação atual: hoje 70% dos impostos são cobrados sobre o consumo e o salário e apenas 30% sobre o patrimônio. A urgência aqui é diminuir o peso sobre o consumo da população e aumentar sobre a riqueza e a renda, o que significa que esta reforma pode ser o grande mecanismo para combater privilégios. Também acabar com a Lei Kandir, que isenta de ICMS todas as exportações agrícolas e primárias, penalizando o povo e as contas públicas nos estados e municípios. O presidente e seu ministro da Economia estabelecem como objetivos fundamentais da reforma tributária a simplificação dos impostos e sua redução para os grandes empresários.
Vinculado a isto está o Congelamento por 20 anos das despesas primárias do governo federal (traduza-se isto para gastos sobretudo em educação e saúde) (PEC 55 promulgada no governo Temer e não revogada), que praticamente paralisa as funções públicas no país (isto é a política de Ajuste Fiscal que começou no segundo mandato da Dilma (já havia sido votada no governo Temer a lei da Terceirização. O aumento do setor de serviços se tornou estrutural, porque a produção agora opera por fragmentação em todas as suas esferas e compra serviços no mundo inteiro). No entanto, apesar dos cortes enormes, o déficit público continua crescendo, afetando fortemente a educação, a saúde, o programa de moradias, a reforma agrária, os programas de apoio à agricultura familiar, etc., em contraposição radical ao sentido social de nossa constituição.
Portanto, trata-se de um projeto de país em que não há lugar para a inclusão e a justiça social, mas é voltado a garantir os lucros dos endinheirados inclusive tratando todas as esferas sociais como empresas. Tudo tem indicado que até agora o governo golpista não dá sinais de conseguir cumprir as promessas voltadas a reequilibrar as contas públicas e retomar o crescimento econômico. Na realidade, persistem a agonia fiscal e a instabilidade do sistema produtivo com efeitos dramáticos a nível social: sem emprego, a desigualdade aumenta e são os pobres que pagam. Em março de 2019, a concentração de renda atingiu o maior patamar em uma pesquisa feita desde 2012 pela Fundação Getulio Vargas e a economia brasileira recuou, segundo o IBGE, 0,2% no primeiro trimestre deste ano. Ao menos 63 milhões de consumidores, ou seja, 40% da população adulta, estão com dívidas atrasadas, informa a Serasa Experian, os preços dos itens da cesta básica subiram até 30% nos últimos 12 meses, diz o Dieese, todos os meses o mercado reduz a projeção de crescimento para este ano, a arrecadação de tributos está em queda, o consumo em queda constante, o nível de investimento em 2018 ficou no mesmo patamar de uma década atrás.
Nossa indústria patina, ela que foi a base do avanço de todos os atuais países desenvolvidos, entre nós, depois de desacelerar em 2018, recuou 2,7% nos primeiros meses de 2019. O país está na contramão da situação da indústria mundial. O avanço da indústria mundial foi puxado pelos ramos de maior intensidade tecnológica que são precisamente os mais atingidos pela crise brasileira. Estes segmentos são decisivos para a economia “por empregarem mão de obra mais qualificada, pagarem salários maiores e formarem o polo mais dinâmico nas áreas de pesquisa, desenvolvimento e inovação... muitos deles líderes da atual revolução tecnológica que está na origem da atual chamada indústria 4.0. (Cf. DRUMMOND C., A indústria em farrapos, in: Carta Capital n. 1060, p. 42).
Em obediência ao projeto neoliberal, ataca-se a intervenção estatal para garantia de direitos. A trajetória de nossa economia confirma que, além disto, sua coordenação foi decisiva para a obtenção de taxas elevadas de crescimento. A tese agora é que o Estado é sinônimo de falta de eficiência e liberdade. Há grande pressão para a redução do Estado (daí a venda de estatais) em articulação com os interesses do grande capital. “Bolsonaro, Paulo Guedes e seus 'seguidores', dentro e fora do governo, empenham-se na desconstrução do arcabouço institucional que sustentou o desenvolvimento do País ao logo de cinco décadas” (Cf. BELLUZZO L.G., Na contramão, de patinete, in: Carta Capital n. 1060, p. 45).
As elites, na realidade, diante do Estado sempre perseguem o mesmo objetivo: aprisioná-lo em função de torná-lo instrumento da acumulação do capital, o que significa uma particularização do Estado que conduz tanto a uma precarização dos direitos quanto a uma ordem jurídica e policial contra os pobres, os índios, os afrodescendentes, as mulheres e outros grupos minoritários, à perpetuação da desigualdade e da pobreza. Perde-se o Estado como meio de universalização de direitos, de justiça e de igualdade. Os grupos da ultradireita em manifestações por todo o país defendem o fechamento do Congresso e do STF por serem obstáculos ao governo Bolsonaro. Trata-se de uma espécie de autoritarismo de fundamentação religiosa. Neste contexto, o que ainda cativa os eleitores do atual governo é o discurso moralista, o apelo à religião e à família e a promessa de restabelecimento da segurança pública.
Justamente aqui se situa a cruzada contra o que se chama de “marxismo cultural”, que se afirma ser a visão de mundo hegemônica da intelectualidade brasileira amplamente difundida na Universidade que é marcada por forte doutrinação de esquerda. Reaparece uma tese conhecida desde a ditadura militar de que na universidade se valoriza em demasia o ensino das humanidades, sobretudo sociologia e filosofia, que não dão retorno financeiro ao Brasil. Diante das primeiras medidas de corte do orçamento no Ministério da Educação e as reações fortes da sociedade, o ministro estendeu a poda de 30% a todas as universidades e institutos técnicos (mais de 2 bilhões de reais continuam bloqueados, o que significa 29,74% dos recursos previstos para este ano e também se confirmou o bloqueio de mais de 2.700 bolsas de mestrado e doutorado) e anunciou uma redução de 2,4 bilhões no Fundeb, o fundo federal destinado às escolas primárias que devem, segundo o plano do governo, mudar radicalmente seu método e seu conteúdo sem doutrinação e sexualização precoce. Houve reação forte também em universidades renomadas no exterior contra a redução dos investimentos no ensino no Brasil (o país hoje é o 13º maior produtor de ciência no mundo, 95% da pesquisa se faz nas universidades federais). O trágico, entre outras coisas, é uma classe dominante incapaz de compreender que, sobretudo hoje, a educação é simplesmente decisiva para o desenvolvimento econômico e social (basta lembrar que nas universidades federais 70% dos estudantes possuem renda per capita familiar de até 1,5 salario mínimo) e para preparar as pessoas para a cidadania.
Na realidade, isto se situa dentro de um anti-intelectualismo radical que marca a visão de mundo do grupo que está no poder. A. Alonso fala de uma “comunidade moral” que elegeu Bolsonaro, “um conjunto de valores de orientação de conduta e interpretação da realidade” ...que divide o mundo em códigos binários - cidadãos de bem e bandidos, éticos e corruptos, etc. - capazes de simplificar a realidade e ativar sentimentos de alta voltagem como medo, ódio, afeto, etc. (Cf. ALONSO A., A comunidade moral bolsonarista, in: Democracia em Risco?, op. cit., p. 52).Esta comunidade tem basicamente três pilares: o nacionalismo beligerante (que teme sobretudo a ameaça comunista, nega as classes sociais e defende o protagonismo de técnicos desligados de partidos), o moralismo hierarquizador [contra a corrupção e a degradação dos costumes] e o antielitismo [divide o país entre uma elite social esnobe e intelectualizada e a classe média sem sofisticação e verniz cultural].
Tudo isto é vinculado ao que Adorno chamou de “síndrome fascista”, cuja atitude determinante é o ódio segregativo. Dunker exemplifica isto no caso brasileiro: “Aqui, predomina a identificação de massa e uma espécie de reação hipnótica de ódio que age por contaminação. Por exemplo, se o PT tem casos de corrupção, as pessoas que simpatizam com ele são automaticamente defensoras da corrupção, ou, até, corruptas elas mesmas. A contiguidade do ódio passa do PT para o comunismo, daí para o esquerdismo, gênero, ideologia e disso para qualquer sintagma que contenha a expressão 'social'’... (Cf. DUNKER C. I. L., op. cit., p. 128).
Por outro lado, analistas políticos apontam para uma novidade no cenário político: teria sido instalado em Brasília o que se tem denominado de “Parlamentarismo Informal”, ou, semiparlamentarismo com o “Centrão”, grupo de partidos direitistas e fisiológicos, em sintonia com o Presidente da Câmera, assumindo o protagonismo e aumentando cada vez mais sua própria força à revelia do Presidente da República, enquanto no senado há quem trabalhe para a introdução de um regime parlamentarista formal. Numa palavra, não só se projeta uma reestruturação do Estado brasileiro, mas concretamente são dados passos que de alguma forma já efetivam propostas. É importante notar que Bolsonaro no Legislativo não recorre primeiramente aos Partidos, mas às Bancadas, eliminando o quanto possível o jogo partidário. De modo geral, há sinais claros de tentativas de atacar militantes políticos, intelectuais, artistas e a impressa crítica, seja através de processos judiciais, seja por degradação moral.
Importante neste contexto é também o protagonismo cada vez mais claro dos Militares. Com mais de 100 representantes nos ministérios e autarquias, os generais constituem a força mais visível de sustentação do presidente no poder. Eles, na realidade, estão determinando o destino da nação, embora se note um deslocamento de grandes consequências em sua postura. Tiveram durante muito tempo um projeto nacionalista, o que hoje se revela inteiramente superado. Isto se revela em sua leitura da situação atual do mundo, sobretudo de sua postura frente à China. A compra de produtos nacionais, sobretudo de commodities, pela China, para muitos economistas livra o Brasil de um colapso econômico garantindo um superávit no comércio entre os países de 30 bilhões de dólares. No entanto, as Forças Armadas parecem convencidas de que a China constitui hoje para o mundo a ameaça que no século passado representou a União Soviética, de modo que a única maneira de evitar o desastre seria a submissão aos Estados Unidos, única potência capaz de defender os valores ocidentais e cristãos. Assim, aderindo claramente ao neoliberalismo, não veem problema em ceder o patrimônio mineral, energético e tecnológico a potências estrangeiras (cf. casos urânio, pré-sal, Embraer, base de Alcântara).
Na relação com a natureza põe-se no Brasil em primeiro lugar o desmatamento da região amazônica, que emite 200 milhões de toneladas de carbono, o que coloca nosso país entre os cinco países mais poluidores do mundo. Num período de 150 dias neste ano, os órgãos de controle liberaram, para ir ao encontro dos interesses da indústria do ramo, 199 pesticidas para o uso na agricultura, dos quais 43% estão terminantemente proibidas em diversos países, sobretudo na União Europeia. O Brasil hoje é um dos maiores mercados de agrotóxicos do planeta (consome 20% da produção mundial). Por sua vez, o agronegócio desmata impiedosamente, desperdiça e consome boa parte da água utilizada no país, mas contribui juntamente com a exportação de minerais para que o país tenha recursos para pagar o déficit resultante das transações de mercadorias e serviços com o mundo, assim como com os custos da dívida interna e externa. Daí a submissão sem problemas ao capital vinculado ao agronegócio e à mineração. Neste contexto, a preocupação ecológica emerge como um obstáculo fundamental ao crescimento econômico.
O resultado desses processos é um cenário humano de sofrimento, de incerteza e de insegurança, de violência contra a pessoa humana e a vida, desemprego, tráfico de drogas e outros negócios ilícitos, corrupção, sonegação fiscal, poder discricionário dos meios de comunicação social, abuso de poder político e econômico, crimes ambientais. O que importa é a abertura a novas frentes de expansão do capital. Isto levou estruturalmente à concentração da renda e da riqueza e à exclusão social, ao aumento das carências na educação, na saúde, na cultura, na degradação ambiental, na falta de moradias (o déficit habitacional do país atinge 7 milhões de famílias concentradas nos grupos com rendimentos de até 1,8 mil reais por mês).
A exigência básica de nossa realidade social é uma política consistente de distribuição de renda. Para sua efetivação se faz necessário tomar medidas que afetem o patrimônio, a renda e os privilégios da minoria mais rica. É uma necessidade básica aumentar as oportunidades de emprego, educação e renda para a maioria da população. Usar os recursos da União e dos estados prioritariamente para ampliar os serviços públicos de forma eficiente e gratuita para toda a população. Que o corte de gastos públicos defendido com força por certos segmentos de nossa sociedade seja feito no superávit primário e no pagamento dos juros da dívida pública, que é certamente a maior despesa do Orçamento da União nos últimos dez anos.
Trata-se de uma transferência de dinheiro do povo para beneficiar os bancos e uma minoria de aplicadores. Em 2007, o governo federal pagou R$ 160,3 bilhões em juros, quatro vezes mais de tudo o que gastou no social e correspondente a 6,3% de nosso Produto Interno Bruto (PIB). Nunca se pode esquecer que pobreza é um grande obstáculo ao crescimento econômico, mas sobretudo um desastre humano. Não é de espantar que numa sociedade assim estruturada a violência chegue a explodir e estabelecer áreas nas cidades controladas por facções criminosas vinculadas ao comércio de drogas e se constituam como instituição paralela ao próprio Estado de Direito.
O Papa Francisco descreve com lucidez os efeitos das causas estruturais deste processo: nessa sociedade com tanta produtividade, há milhões de pessoas que morrem de fome no mundo. Quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos tratando-os simplesmente como mercadorias, milhões de pessoas morrem de fome. Reina a ambição desenfreada por dinheiro. O serviço do Bem Comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um ídolo e dirige todas as ações humanas, arruína a sociedade, condena o ser humano, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, põe em risco a casa comum.
Isto acontece quando no centro de um sistema econômico está o deus “dinheiro” e não a pessoa humana. Este sistema dá primazia ao mercado em detrimento da pessoa humana e por isto esta economia mata. Daí a raiz última da crise: é uma crise antropológica, porque se nega a primazia do ser humano sobre o capital. O critério que deve reger as políticas econômicas é a promoção do desenvolvimento social: elas devem atender à população, especialmente a que é mais vulnerável. Não tem futuro uma sociedade em que se dissolve a verdadeira fraternidade. Por isto “hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia em diálogo se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana (LS 189)”.
Para isto, diz o Papa, faz-se necessário superar uma concepção mágica do mercado que acha ser possível resolver todos os problemas “apenas com o crescimento do lucro das empresas e dos indivíduos”. Antes, isto torna as pessoas obcecadas com a maximização dos lucros (o Papa fala de “idolatria do dinheiro”), insensíveis e indiferentes ao sofrimento dos pobres, aos efeitos ambientais destes processos e às suas consequências para a vida humana. Dentro do esquema do lucro não há lugar para pensar nos outros e na natureza, não é possível considerar seriamente o valor real das coisas, “o seu significado para as pessoas e as culturas, os interesses e as necessidades dos pobres”. É urgente para nós redefinir aquele conceito que marcou tão fortemente a cultura moderna: o Progresso. “Um desenvolvimento tecnológico e econômico, que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso” (LS 190)”.
O papa Francisco conclamou os cristãos a escutar o clamor por justiça no mundo atual, o que é uma exigência que concerne a todos independentemente se têm alguma fé religiosa ou não. Isto implica entrar num autêntico diálogo que procure sanar efetivamente as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. Esta tarefa tem dois momentos complementares: 1) A cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e para promover o desenvolvimento integral dos pobres; 2) Os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos. Solidariedade aqui significa a gestação de um nova mentalidade: pôr em primeiro plano a comunidade, dar prioridade à vida de todos frente à apropriação de bens por parte de alguns, reconhecer a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A solidariedade significa, assim, a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde, o que exige igualmente mudanças estruturais e novas convicções e atitudes. Não se trata apenas de garantir comida ou um sustento decoroso, mas prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos, o que engloba educação, acesso ao cuidados de saúde e trabalho.
Por isto a urgência em atacar as causas estruturais da pobreza só pode acontecer renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e enfrentando as causas estruturais da desigualdade, já que ela constitui a raiz dos males sociais. Isto permite articular um horizonte que deve nortear toda a política econômica: a dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são os valores de base, e por isto não devem ser reduzidos a apêndices acrescentados de fora para ampliar discursos políticos que não possuem nem perspectivas, nem programas de um desenvolvimento integral.
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Traços básicos de nossa situação histórica: Conjuntura 2019. Artigo de Manfredo Araújo de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU