15 Julho 2019
"Neste sexto aniversário da minha visita a Lampedusa, os meus pensamentos vão para os 'últimos' que clamam ao Senhor todos os dias, pedindo para serem libertados dos males que os afligem. São os últimos enganados e abandonados para morrer no deserto; são os últimos torturados, abusados e violados em campos de detenção; são os últimos que desafiam as ondas de um mar impiedoso; são os últimos deixados nos campos de um acolhimento demasiado longo para ser chamado de temporário. Eles são apenas alguns dos últimos que Jesus nos pede para amar e levantar. Infelizmente, as periferias existenciais de nossas cidades são densamente povoadas de pessoas descartadas, marginalizadas, oprimidas, discriminadas, abusadas, exploradas, abandonadas, pobres e sofredoras. No espírito das Bem-aventuranças, somos chamados a consolar suas aflições e oferecer-lhes misericórdia; para saciar sua fome e sede de justiça; fazê-los sentir a paternidade atenciosa de Deus; para mostrar-lhes o caminho para o Reino dos Céus. São pessoas, não se trata apenas de questões sociais ou migratórias! "Não se trata apenas de migrantes!", no duplo sentido de que os migrantes são, antes de tudo, pessoas humanas, e que hoje são o símbolo de todos os descartados da sociedade globalizada" (Papa Francisco, da homilia de 8 de julho de 2019, durante a Santa Missa para os migrantes).
Na Itália, o nome do dinamarquês Kaj Munk é pouco conhecido.[1] Alguns se lembrarão do filme Ordet (A Palavra) de Carl Dreyer, vencedor do Leão de Ouro em Veneza, em 1955, e do Globo de Ouro em Los Angeles, em 1956, como melhor filme estrangeiro, que conta a vida religiosa em uma comunidade camponesa, início do século XX, mas principalmente o contraste entre a verdadeira fé de Johannes, uma espécie de "bobo da aldeia", que circula falando sobre a ressurreição dos mortos, e a fé mais convencional do pastor da aldeia e dos outros membros da família.
A reflexão é de Andrea Lebra, leigo católico italiano, cofundador da associação Liberazione e Speranza, que ajuda mulheres a sair da violência e da prostituição, publicada por Settimana News, 11-07-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
O autor desse drama, Kaj Munk, escritor e pastor da Igreja Luterana Dinamarquesa (1898-1944), pai de cinco filhos, um homem de ternos sentimentos, mas de forte fé na Palavra bíblica, capaz de "mover montanhas" (Mt 17, 21), foi assassinado, na noite entre 4 e 5 de janeiro de 1944, por membros do "grupo Skorzeny" - o comando autor, em 12 de setembro de 1943, da rocambolesca libertação de Mussolini no Gran Sasso da Itália -, enviados por Berlim por ordem de Himler para silenciar uma voz que queria uma Igreja não sujeita ao poder e um cristianismo que defendesse vigorosamente a liberdade e o respeito pela dignidade humana.
Na manhã de 5 de janeiro de 1944, na estrada para Horbylunde Bakke, perto de Silkeborg, foi encontrado seu corpo crivado de balas. Em 8 de janeiro de 1944, uma grande multidão compareceu ao funeral, apesar da proibição imposta pelas autoridades alemãs.
Atualmente, Kaj Munk é lembrado como mártir no calendário de santos da Igreja Luterana em 14 de agosto, juntamente com o católico Maximiliano Maria Kolbe.
Ele nasceu em 13 de janeiro de 1898 em Maribo (na ilha dinamarquesa de Lolland), como Kaj Pedersen. Após a morte de seu pai, Carl Emanuel Pedersen, quando Kaj tinha apenas um ano de idade, e a morte de sua mãe, Matilde Cristensen, quando Kaj tinha apenas cinco anos de idade, ele foi adotado por seus tios Maria Hansen e Peter Christian Sorensen Munk, com a adoção definitiva do sobrenome Munk.
Kaj Munk continua sendo uma figura de mártir que tem muito a ensinar inclusive aos cristãos de hoje, que muitas vezes são tentados a se contentar com uma fé de fachada, hipócrita e silenciosa: principalmente, de uma fé incapaz de discernir se seja uma operação compatível com o Evangelho substituir o nós primeiro de tudo pelos pobres primeiro de tudo, o orgulho nacional pela fraternidade e pela irmandade universal, a defesa do próprio bem-estar pela solidariedade e pela justiça, o fechamento das fronteiras pelo acolhimento daqueles que fogem de situações invivíveis, os que chegam como estrangeiros na nossa casa como 'eu era estrangeiro e me acolhestes' de Mateus 25:35.
Reproduzimos aqui alguns trechos de três de seus sermões, que têm o mérito de revelar-se de extraordinária atualidade nestes nossos "dias maus" (Ef 5,16) em que "boas palavras que podem servir para uma edificação oportuna, beneficiando quem as escuta”, são subjugados por “palavras torpes saindo das bocas” (Ef 4:29) de tantas pessoas. São preciosas reflexões, que nos lembram que:
- vale a pena comprometer-se com a solidariedade e o respeito escrupuloso da dignidade humana, mesmo quando se tem consciência de ser perdedores;
- manter, como comunidade de crentes, um "perfil baixo" do conteúdo "inevitavelmente social"[2] do kerygma cristão pode significar, em certos contextos, trair o Evangelho de Jesus de Nazaré;
- a autêntica fé cristã ajuda-nos a ser pessoas dotadas de uma obstinada e serena capacidade de resistência ao mal que tem a aparência do bem, da falsidade passada como verdade, da injustiça alardeada como justiça, da opressão passada como liberdade;
- o nosso é o tempo de um testemunho cristão humilde e corajoso, feito por mulheres e homens "de olhos abertos", que veem o mal presente no mundo em todas as suas formas pessoais e estruturais e tentam se opor a ele com determinação, que veem o sofrimento e a necessidade das pessoas que se encontram e - como o samaritano na parábola - sabem assumir responsabilidade por elas, que estão firmes na convicção de que não se pode crer em Deus e permanecer cegos à dor do mundo.
"Qual é a tarefa do pregador hoje? Eu deveria responder fé, esperança, caridade. Parece uma boa resposta, mas prefiro dizer: coragem. Mas não, mesmo isso não é provocatório o suficiente para constituir toda a verdade. A nossa tarefa hoje é a temeridade, porque o que nós, como Igreja, carecemos certamente não é de psicologia nem de literatura. O que nos falta é uma santa raiva, uma santa raiva! A temeridade que brota do conhecimento de Deus e da humanidade, a capacidade de indignar-se quando a justiça se encontra prostrada nas ruas e quando a mentira grassa na face da terra, uma santa raiva contra tudo o que é injusto no mundo.
A raiva contra o saque da Terra do Senhor e a destruição do mundo de Deus, a raiva porque as crianças devem morrer de fome enquanto as mesas dos ricos se dobram sob o peso da comida, a raiva pela condescendência de tantos em relação à Igreja , que não percebe que só pode viver graças à verdade e ignora que o nosso medo será a morte de todos nós. O que precisamos é perseguir implacavelmente aquela temeridade que saberá lançar seu desafio e tentar mudar a história humana até que ela se conforme às regras do Reino. E lembrem-se: os símbolos da Igreja Cristã sempre foram o leão, o cordeiro, a pomba e o peixe, mas nunca o camaleão! E lembrem-se também disto: a Igreja é o povo que Deus escolheu, mas aqueles que são escolhidos serão reconhecidos com base em suas escolhas".
“Fala-se que o cristianismo não deve lidar com questões políticas e que a Igreja deve tratar apenas da salvação das almas. É uma religião muito bonita, que agrada ao imperador e à qual sua majestade certamente concederá sua proteção. Tal religião nunca irá incomodá-los. Mas é uma religião que merece o nome de blasfêmia. A verdade não é tranquila e cheia de dignidade e obsequiosa; pelo contrário, a verdade morde e incomoda e golpeia. A verdade não é para os temerosos e para os prudentes; estes não precisam da verdade, mas de um sofá. Que pedido insípido é aquele que exige uma atitude prudente da Igreja? Os mártires foram prudentes? O povo dinamarquês deve deixar de ter medo se não quiser correr o risco de morrer por excessiva prudência. [...] Amar o teu inimigo não significa aceitar as suas opiniões e concordar com ele. Pelo contrário, significa estar disposto a cuspir na cara dele, em vez de deixá-lo acreditar, mentindo, que você aceita os métodos dele. A bondade de Deus é doce e paciente, mas nunca se dobra a compromissos com o mal".
“Ser cristão é exatamente o oposto de ser inerte. Existem duas maneiras de servir o inimigo de Deus e não se sabe qual das duas é a mais prejudicial. Uma consiste em ser ativo no mal, a outra consiste em ser inerte no bem".
[1] Para a presente reflexão, usei o estudo de Gianandrea De Antonellis, Kai Munk (1898-1944): un martire dei nostri tempi, publicado pela revista Qaerere Deum (Ano V-2013, nº 8) do Instituto Superior de ciências religiosas de Benevento, como a palestra – de título La temerarietà di un profeta – realizada por Paolo Ricca em 16 de novembro 2010, no âmbito de um ciclo de conferências chamado “Voci dal Silenzio”, organizadas por Paolo Scquizzato junto à Casa di Spiritualità Mater Unitatis di Druento (TO) e reunidas no nr. 5-ano II da revista Magis-Quaderno di spiritualità.
[2] Evangelii gaudium n. 177.
[3] De um sermão de Kaj Munk de abril de 1940.
[4] De um sermão de Kaj Munk de novembro de 1941.
[5] De um sermão que Kaj Munk, por disposição do Comissário alemão do Reich, não foi autorizado a proferir em novembro de 1943 na Igreja do Espírito Santo de Copenhagen, mas que foi da mesma forma reproduzido e distribuído clandestinamente.
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“O que nos falta é uma santa raiva” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU