10 Julho 2019
No início do século XXI, estamos testemunhando a ameaça de uma nova “peste”, a do encurvamento sobre nós mesmo e da rejeição do outro.
O comentário é de François Vayne, jornalista, publicado por L’Osservatore Romano, 09-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Albert Camus, o célebre escritor francês nascido na Argélia, prêmio Nobel de Literatura, publicou em 1947 um romance que continua sendo de grande atualidade. Em “A peste”, ele conta a história dos habitantes de Oran durante uma epidemia que atingiu a cidade argelina, situada às margens do Mediterrâneo.
A história, ambientada nos anos 1940, se centra no personagem de Bernard Rieux, um médico sensível e humanista que luta contra a peste, uma epidemia que poderia ser considerada como uma metáfora da “peste marrom”, o nazismo.
No início do século XXI, enquanto testemunhamos a ameaça de uma nova “peste”, a do encurvamento sobre nós mesmos e da rejeição do outro, a beatificação dos 19 mártires da Argélia, incluindo os sete monges de Tibhirine, celebrada em Oran no dia 8 de dezembro de 2018, traçou “um grande sinal de fraternidade para o mundo inteiro”, segundo a expressão do Papa Francisco.
O testemunho do Ir. Luc, por exemplo, médico do mosteiro de Atlas, encarna, sozinho, todos os Bernard Rieux – crentes ou não – que resistem à intolerância e manifestam a sua compaixão para com aqueles que sofrem.
De que modo a experiência dos bem-aventurados mártires da Argélia pode inspirar em nós gestos de solidariedade portadores de esperança para fazer do Mediterrâneo “o grande lago de Tiberíades” sonhado por Giorgio La Pira? A paz na Europa, como todos sabemos, depende da paz no Mediterrâneo.
Os mártires da Argélia, os de Tibhirine em particular, já haviam jurado que não abandonariam uma população nas garras da violência de uma terrível guerra civil; eles morreram em condições misteriosas, provavelmente ligadas ao fato de que queriam permanecer fiéis aos seus amigos, sem tomar partido por uma das partes.
As zonas de sombra que cercam os seus assassinatos sugerem que esses crimes não têm nada a ver com o Islã. Em todo caso, não se tratava de uma perseguição contra os cristãos: também morreram 114 imãs e cerca de 150.000 muçulmanos durante a “década negra” dos anos 1990. Um símbolo forte: no ícone da beatificação das 19 testemunhas, também está retratado Mohamed Bouchiki, o jovem argelino morto junto com o então bispo de Oran, Dom Pierre Claverie. Desse modo, o sangue dos cristãos e o sangue dos muçulmanos se misturaram historicamente; existe, portanto, uma fraternidade inter-religiosa, islâmico-cristã, do sangue.
Sob o impulso de um ímpeto de reconciliação, a Argélia teve um papel decisivo na decisão da assembleia geral da ONU – a resolução 72/130 votada em 8 de dezembro de 2017 – de proclamar um Dia da Convivência em Paz, que deve ser celebrada todos os anos no dia 16 de maio em todo o mundo.
O Santo Padre havia expressado profeticamente o desejo de que essa primeira beatificação em um país muçulmano “criasse uma nova dinâmica do encontro”. O sinal de Oran certamente deve ser considerado como um apelo para não largar a mão da pessoa em dificuldade que caminha conosco, seja qual for a sua religião ou a cor da sua pele.
Enquanto a Europa está se fechando “democraticamente” na sua zona de conforto, assemelhando-se cada vez mais a um hotel de luxo, esses mártires nos oferecem a chave para ser uma Igreja em diálogo, capaz de construir pontes a serviço da fraternidade universal. É importante que sigamos os passos daquelas testemunhas habitadas por uma palavra não violenta e por um amor desarmado.
Ao canonizar os mártires de Otranto, na Praça de São Pedro, em 12 de maio de 2013, logo no início do seu pontificado, o Papa Francisco talvez já não nos indicou o caminho para um testemunho cristão radical nas margens do Mediterrâneo? Aqueles 813 católicos trucidados na Itália oriental no fim do século XV recusaram-se a abjurar a sua fé cristã. Cabe a nós, hoje, não renegar essa fé, honrando “a carne de Cristo”, como diz o pontífice, acolhendo e integrando também os “mártires do Mediterrâneo” em fuga da miséria e da guerra.
Enfrentando todos os dias o drama dos migrantes que transitam pelo horror dos campos de refugiados na Líbia, imergindo no inferno das ondas com mulheres e crianças, que escolhas fazemos nós para combater a intolerância e a indiferença? Mártires das armas que os países ocidentais vendem aos seus países, mártires das ditaduras criadas por esses mesmos países para explorar as suas terras e saquear os seus recursos, eles nos lançam um grito: “Não reneguem a Cristo!”
É melhor permanecer incompreendidos – até mesmo pelos próprios concidadãos – do que perder a própria alma, e é melhor perder as eleições do que a própria consciência.
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Não renegar a Cristo. O grito dos mártires do Mediterrâneo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU