02 Julho 2019
"A truculência dos machos que se acham donos da história ainda prevalece sobre a racionalidade e o bom senso, que deveriam ser próprios do humano. Com uma jornada dupla de trabalho, no lar e no emprego, são mão de obra barata, sem o retorno do reconhecimento. Elas permanecem invisíveis, insignificantes, desprezadas, humilhadas, quando não são xingadas, espezinhadas, marginalizadas, insultadas, estupradas e mortas por eles", escreve Solange do Carmo, professora de teologia na PUC de Minas.
“Os Doze iam com Jesus e também algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e doenças” (Lc 8,1-2).
“Mulher é morta pelo namorado”, anuncia a manchete do jornal popular. “Estupro coletivo”, noticiam outros tabloides. Na TV, as imagens chocam: socos, puxões de cabelo, hematomas, rostos desfigurados, sangue... Por todo canto, suspiros de desalento e desesperança. Bem debaixo de nosso nariz, estão elas: as violentadas. São nossas mães, irmãs, amigas, colegas de trabalho, servidoras da comunidade eclesial etc. A Lei Maria da Penha, apesar de simbolizar um avanço significativo, não consegue coibir a violência e garantir a vida delas e o tornado de agressões prossegue deixando seu rastro de morte. A truculência dos machos que se acham donos da história ainda prevalece sobre a racionalidade e o bom senso, que deveriam ser próprios do humano.
Com uma jornada dupla de trabalho, no lar e no emprego, são mão de obra barata, sem o retorno do reconhecimento. Elas permanecem invisíveis, insignificantes, desprezadas, humilhadas, quando não são xingadas, espezinhadas, marginalizadas, insultadas, estupradas e mortas por eles. Eles são de perto e de longe: o companheiro, que dorme ao seu lado; o irmão, que se acha seu dono; o pai, que deveria protegê-la; o padre, a quem confiou suas angústias; o estranho, que a viu passar sozinha na calçada; o patrão, que a assedia e a ameaça, etc.
Torturadas pela dor, elas carregam no corpo e na alma as marcas do desprezo social. São invisibilizadas e apagadas da história. Num mundo androcêntrico, patriarcal e machista, só eles contam a história; são o centro da narrativa e a manutenção dessa memória lhes interessa. Como afirmou Judy Chicago, artista feminista norte-americana, “todas as instituições de nossa cultura dizem-nos – por palavras, fatos e, pior ainda, pelo silêncio – que somos insignificantes”.
Tantas vezes repetidas, mentiras inventadas pelos machos geraram crenças limitantes que adquiriram estatuto de verdades imutáveis. “Mulher é sexo frágil”. “O marido é a cabeça da mulher”. “Foi Deus quem fez assim”. “A mulher foi feita da costela de Adão”. “A mulher pecou primeiro”. Afirmam comodamente os homens na intenção de manter seus privilégios. Revisitam o Gênesis, desenterram o mito das origens, culpam Eva pelo pecado e justificam os desmandos masculinos. Para completar, pinçam frases esparsas de Cartas do Novo Testamento, como Efésios e a Segunda de Pedro, e declaram a submissão feminina em nome de Deus. Um horror! A fé cristã é instrumentalizada para oprimir e maltratar aquelas que foram acolhidas e amadas pelo Nazareno.
Apesar da cultura androcêntrica e da sociedade patriarcal deixarem marcas indeléveis nos textos bíblicos, basta um pequeno olhar apurado para ver a força das mulheres em toda parte. Sabendo-se que o judaísmo (berço do cristianismo) é a religião do varão, qualquer sinal feminino nas Escrituras é um avanço sem par, que põe em xeque o machismo de nossas comunidades eclesiais. Afinal, a memória histórica androcêntrica sustenta as estruturas do patriarcalismo. Assim os discursos religiosos perseveram enfatizando o silenciamento feminino, apesar dos avanços nos estudos bíblicos.
No Antigo Testamento, elas estão em cada página. As matriarcas Sara (Gn 21,1-3), Rebeca (Gn 25,2-34) e Raquel e Lia (Gn 29–30) confabulam, tramam, seduzem, fazem a história acontecer. Raab, a prostituta, tem seu nome nos registros escriturísticos graças à sua hospitalidade (Js 2,1-20). Rute, a moabita, mostra que uma mulher estrangeira pode ser mais fiel que um varão israelita (livro de Rt). Dalila seduz Sansão, o homem forte, e mostra a força feminina (Jz 16,1-22). Débora destrói o poderoso Sisara com um prego na cabeça (Jz 4,1-24) e Judite corta a cabeça de Holofernes (Jt 13,1-20). Ester seduz o rei e salva toda sua gente (Est 5,1-14). A jovem Dina é violentada por Siquém e vingada por seus irmãos (Gn 34,1-31). Ana, a estéril, reza confiante a Deus e gera o fiel Samuel (1Sm 1,1-28). E assim vai. O rosário feminino é extenso, desde o Gênesis ao profeta Malaquias.
Uma breve visita ao Novo Testamento faz ver também a presença discreta, mas eficaz delas. Em Lucas, elas têm estatuto de discípulas (Lc 8,1-2); Maria Madalena é a discípula perfeita, de quem saíram sete demônios (Lc 8,2); Maria, irmã de Marta, está aos pés do Mestre na posição de discípula (Lc 10,39), assim como também a mulher pecadora na casa de Simão (Lc 7,38). Em João, são elas que ficam ao pé da cruz quando os homens fogem cheios de medo (Jo 19,25-27) e é Maria Madalena a primeira a fazer a experiência com o Ressuscitado (Jo 20,11-18).
Em Marcos, são elas que sustentam a fé mais genuína (Mc 5,25-34; 7,24-30) e que, em primeiro lugar, vão ao sepulcro à procura do Mestre recebendo a tarefa de comunicá-lo aos demais (16,1-8). Em Mateus, são as matriarcas do Messias, merecedores de seus nomes na genealogia, apesar de sua vida duvidosa (Mt 1,1-16). Em Atos dos Apóstolos e Cartas, são profetizas (At 21,9), líderes comunitárias (At 16,14-15; 18,18-28), diaconisas (Rm 16,1) etc. No Apocalipse, a mulher é símbolo da vitória sobre todo mal, ensinando-nos que o fraco vence o forte pelo poder da fé resistente (Ap 12,1-17). Pululam por toda parte, no Novo Testamento, sinais da presença marcante das mulheres nas comunidades primitivas.
Apesar de tudo isso, na história cristã, não poucas vezes elas foram desprezadas. Marcas de suplício feminino deixaram vestígios por toda parte na Igreja. Quando ousaram se rebelar e romper os grilhões, foram maltratadas, excluídas, consideradas loucas, bruxas, e internadas em hospícios ou queimadas vivas em praças públicas. O chão da comunidade eclesial é carmim; está manchado da seiva feminina derrubada pela violência dos homens do sagrado. São eles os acusadores, os juízes, os algozes, os carcereiros e os sedutores.
Seguem, porém, sem desanimar a marcha das combatentes, inclusive nas igrejas cristãs. Algumas resistem, insistem, protestam, seguram nas mãos das outras e dão uma palavra de ânimo para aquelas que duvidam de suas próprias potências. O movimento #MeToo veio encorajar religiosas a quebrarem o silêncio e a mostrarem quem seus algozes – quase sempre – usam hábito e batina. O papa Francisco tem sido companheiro combatendo esse tipo de crime, apoiando as investigações. Pouco a pouco, uma rede de apoio vai sendo tecida, com o fio da sororidade.
Fora das comunidades eclesiais, há verdadeiras guerrilheiras femininas. Algumas descobrem sua força e rejeitam a tirania masculina, inclusive a tirania da moda, do corpo perfeito, da fantasia de mulher maravilha. Não querem ser “a bela, recatada e do lar”, que faz figura bonita ao lado dele. Querem seu próprio lugar ao sol, como conta a ex-presidenta do Brasil, Dilma Roussef, acerca de sua experiência numa currutela do interior do Brasil. Certo dia, chegando para um evento público, uma multidão a esperava. Passando pela turba, uma mãe aponta para a presidenta e diz: “Filha, é a presidente do Brasil”. A menina, intrigada, perguntou à mãe: “Mas pode, mãe?”. E a presidenta respondeu convicta: “Pode. Pode isso e muito mais!”. Não há limites para a ousadia daquelas que acreditam em seus direitos e na igualdade de gênero.
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Elas, as apagadas da história - Instituto Humanitas Unisinos - IHU