30 Junho 2019
O Vaticano emitiu um documento de extrema importância sobre a obrigatoriedade de “registro civil” para todo o clero católico na China e que fornece “indicações pastorais” ou formas concretas para que eles se aproximem desse dever civil sem violar suas consciências.
A reportagem é de Gerard O’Connell, publicada por America, 28-06-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Significativamente, ao mesmo tempo, a Santa Sé pede às autoridades chinesas que se abstenham de usar “pressões intimidatórias” sobre os membros das comunidades clandestinas da Igreja “como infelizmente já ocorreu”. Isso deixa claro que tal modo de agir é contrário ao espírito do acordo provisório assinado com a Santa Sé em setembro passado. É o posicionamento mais forte até hoje da Santa Sé sobre essa questão crucial que está causando grande angústia em muitas comunidades católicas clandestinas e também está criando divisão dentro da Igreja, assim como tensões com o Estado.
O texto, que é assinado pela “Santa Sé”, indicando que vem dos mais altos níveis do Vaticano, procura abordar o sofrimento e as crises de consciência de muitos bispos e padres das “comunidades eclesiais não oficiais” (comumente conhecidas como comunidades eclesiais clandestinas), que, em muitas partes da China, têm sofrido ameaças e pressões para fazê-las se registrar civilmente ao se unirem à Associação Patriótica.
As diretrizes da Santa Sé, talvez por razões diplomáticas, nunca usam as palavras “Associação Patriótica”, mas é claro que é a isso que se refuta quando diz que “a modalidade de tal registro – obrigatório, de acordo com as novas regulamentações sobre as atividades religiosas, sob pena de impossibilidade de atuar pastoralmente – envolve, quase sempre, a assinatura de um documento em que, apesar do compromisso assumido pelas autoridades chinesas de respeitar também a doutrina católica, se deve declarar a aceitação, entre outras coisas, do princípio de independência, autonomia e autoadministração da Igreja na China”.
O artigo 3 dos Estatutos da Associação Patriótica Católica Chinesa (normalmente referida como Associação Patriótica) exige a implementação dos “princípios de independência e autonomia, autogestão e administração democrática da Igreja”. Bento XVI, em sua Carta aos católicos na China de 2007 (n. 7) declarou que esse propósito é “incompatível com a doutrina católica”.
O Vaticano reconhece que “muitos pastores” na China continental estão “profundamente perturbados” por serem obrigados, de fato forçados, a se registrarem dessa maneira e reconhece que isso lhes causa “crises de consciência”. Ele recebeu muitos relatos angustiantes do que está acontecendo. Ao mesmo tempo, reconhece “a complexa realidade” na China e que “parece não existir uma única práxis aplicativa dos regulamentos para os assuntos religiosos”, porque algumas autoridades agem com maior severidade do que outras.
O documento afirma claramente que “a Santa Sé não pretende forçar a consciência de ninguém”. Em consonância com o que Bento XVI escreveu em 2007, ele diz que “a experiência da clandestinidade não se enquadra na normalidade da vida da Igreja e que a história mostrou que pastores e fiéis só recorrem a ela no sofrido desejo de manter íntegra a própria fé”.
Depois, em uma mensagem dirigida não apenas ao clero, mas também às autoridades chinesas, diz o texto, “a Santa Sé continua pedindo que o registro civil do clero ocorra com a garantia do respeito à consciência e às profundas convicções católicas das pessoas envolvidas”. Esclarece-se que, “só assim podem ser favorecidas tanto a unidade da Igreja quanto a contribuição dos católicos para o bem da sociedade chinesa”.
Consciente de que em muitos lugares da China as autoridades pressionaram o clero com base no acordo provisório com a Santa Sé, até mesmo sugerindo que os dois lados estão na mesma página sobre essa questão, a Santa Sé hoje busca esclarecer as questões, fornecendo a sua compreensão desse acordo e o modo como ela entende o registro civil, algo que é comum em muitos países.
Ela começa insistindo que “a eventual declaração que deve ser assinada no ato do registro” deve levar em mente o artigo 36 da Constituição da República Popular da China que “declara formalmente a tutela da liberdade religiosa”.
Em segundo lugar, observa que o Acordo Provisório de 2018 reconhece “o papel particular do Sucessor de Pedro” e afirma que isso “leva logicamente a Santa Sé a entender e interpretar a ‘independência’ da Igreja Católica na China não em sentido absoluto, ou seja, como separação do papa e da Igreja Universal, mas sim relativamente à esfera política, como ocorre em todas as partes do mundo nas relações entre o papa e uma Igreja particular ou entre as Igrejas particulares”.
Explica-se, presumivelmente em benefício das autoridades chinesas, que “afirmar que na identidade católica não pode haver separação do Sucessor de Pedro não significa querer fazer de uma Igreja particular um corpo estranho para a sociedade e a cultura do país em que ela vive e atua”.
Em terceiro lugar, o Vaticano recorda a todos os envolvidos que “o contexto atual das relações entre a China e a Santa Sé, caracterizado por um consolidado diálogo entre as duas partes, é diferente daquele que viu nascer os órgãos patrióticos nos anos 1950”. Em outras palavras, a situação mudou radicalmente, e isso deve ser reconhecido pelas autoridades, já que a relação entre a Santa Sé e a China não é mais de hostilidade, mas sim de diálogo baseado em um acordo.
O Vaticano continua enfatizando que hoje, ao contrário do período entre o fim dos anos 1950 até setembro de 2018, “todos os bispos chineses estão hoje em comunhão com a Sé Apostólica e desejam uma integração cada vez maior com os bispos católicos do mundo inteiro”.
A Santa Sé diz às autoridades chinesas, assim como ao clero católico, que, “diante desses fatos, é legítimo esperar uma atitude nova por parte de todos, também ao se enfrentar as questões práticas referentes à vida da Igreja”.
Depois, referindo-se às reuniões que teve com as autoridades chinesas desde a assinatura do acordo de setembro, a Santa Sé afirma que “continua dialogando com as autoridades chinesas sobre o registro civil dos bispos e dos sacerdotes para encontrar uma fórmula que, no ato do registro, respeite não só as leis chinesas, mas também a doutrina católica”.
Deve-se notar que as autoridades chinesas se recusaram a discutir a situação do clero e dos fiéis das comunidades eclesiais clandestinas até que a Santa Sé e a China assinassem o acordo provisório. A Santa Sé aceitou isso, mas agora está tentando abordar essa questão fundamental nas negociações, embora a comunicação de hoje indique que a tarefa não é fácil e sugira que uma solução rápida não está à vista.
Profundamente consciente de que ainda não se chegou a um acordo sobre essa questão crucial tão importante para a reconciliação entre os membros das comunidades eclesiais oficiais e clandestinas da China, a Santa Sé ofereceu abordagens pastorais “concretas” para ajudar os clérigos a resolverem a crise de consciência quando confrontados com a obrigação de registro civil.
Ela diz que, “se um bispo ou um sacerdote decidir se registrar civilmente, mas o texto da declaração para o registro não parecer respeitoso da fé católica, ele especificará por escrito, no ato da assinatura, que faz isso sem abrir mão da devida fidelidade aos princípios da doutrina católica”.
Mas, acrescenta, “se não for possível fazer tal esclarecimento por escrito, o requerente o fará também verbalmente e, se possível, na presença de uma testemunha”. Declara que “em todo o caso, é oportuno que o requerente certifique, depois, ao próprio Ordinário a intenção com a qual fez o registro”.
Além disso, afirma-se, o registro “sempre deve ser entendido para o único fim de favorecer o bem da comunidade diocesana e o seu crescimento no espírito de unidade, assim como uma evangelização adequada às novas exigências da sociedade chinesa e a gestão responsável dos bens da Igreja”.
O Vaticano está bem ciente de que nem todos os bispos e padres das comunidades eclesiais clandestinas estão preparados para seguir esse caminho por causa dos problemas de consciência. Eles vão optar pelo caminho da resistência, até mesmo de um grande sofrimento. Abordando essa realidade, a Santa Sé, que já deixou claro que não pedirá a ninguém que aja contra a sua consciência, declara agora significativamente que “compreende e respeita a escolha daqueles que, em consciência, decidem que não podem se registrar nas atuais condições”. Além disso, diz: “A Santa Sé permanece próxima a eles e pede ao Senhor que os ajude a conservar a comunhão com os próprios irmãos na fé, mesmo diante das provações que cada um terá que enfrentar”.
Depois, dirigindo-se ao bispo local, a Santa Sé diz que “deve nutrir e manifestar publicamente a própria estima pelos presbíteros, demonstrando confiança e elogiando-os, se merecerem” e “deve fazer respeitar os seus direitos e os defender de críticas infundadas”. Além disso, “deve dirimir prontamente as controvérsias” que, se forem prolongadas, “podem ofuscar a fraterna caridade e prejudicar o ministério pastoral”.
A Santa Sé apela aos fiéis leigos na China a não só compreenderem a complexidade da situação, mas também que “acolham com o coração aberto a sofrida decisão tomada pelos seus pastores, seja ela qual for”. Ela lhes pede que acompanhem seus pastores “com espírito de fé, com a oração e com o afeto, abstendo-se de julgar as escolhas dos outros, conservando o vínculo da unidade e usando de misericórdia para com todos”.
O texto vaticano conclui pedindo às autoridades chinesas “que não se pratiquem pressões intimidatórias em relação às comunidades católicas ‘não oficiais’, como infelizmente já ocorreu”.
Ele pede um “franco e construtivo diálogo” entre a China e a Santa Sé, “na espera de poder alcançar uma modalidade de registro civil do clero mais respeitosa da doutrina católica e, portanto, da consciência das pessoas envolvidas”.
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Vaticano pede que clérigos chineses sigam sua consciência em registro civil do governo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU