07 Junho 2019
Durante Congresso Brasileiro de Direito Socioambiental lideranças quilombolas listam retrocessos do atual governo e reafirmam resistência.
Debate deu destaque para as questões referentes aos obstáculos para titulação de territórios quilombolas (Foto: Lizely Borges)
A reportagem é de Lizely Borges, publicada por Terra de Direitos, 05-06-2019.
A conjuntura hostil para as comunidades quilombolas, com a configuração de estruturas de governo opositoras ao desenvolvimento de políticas públicas, aumento da violência contra os povos tradicionais e de avanço da legislação para exploração dos territórios pelo mercado, foi fortemente destacada no debate realizado na noite desta terça-feira (04), como parte do Congresso Brasileiro de Direito Socioambiental, realizado pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em Curitiba (PR).
“O que nos aguarda diante dessa atual conjuntura em que o controle da nossas terras está, praticamente, nas mãos daqueles que afirmam que a gente é um retrocesso?”, questiona assessora jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e da Terra de Direitos, Vercilene Francisco Dias.
A declaração aponta diretamente para os atos do novo governo de Jair Bolsonaro (PSL). Pela Medida Provisória n° 870/2019, editada nos primeiros dias de governo, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela titulação dos territórios, foi transferido da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento (Mapa). Tanto o mais alto cargo da pasta quanto a secretaria responsável pela titulação estão sob comandos de expoentes vinculados ao agronegócio e opositores à política de titulação quilombola: a ministra de Tereza Cristina (PSL) e o ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) Nabhan Garcia, respectivamente.
As mudanças administrativas tem forte aceno com as declarações de Bolsonaro pré-período eleitoral. Quando era deputado federal ele afirmou, caso eleito, que “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola” e que “quilombola não servia nem para procriar”. Pelas declarações o deputado foi condenado a pagar indenização a quilombolas.
O orçamento para a titulação de territórios quilombolas também foi destacado pela mesa expositora. Para 2019, o orçamento totaliza a cifra de R$ 3.423.082,00. O valor representa aproximadamente 13% da demanda atual de recursos para viabilizar as desapropriações em 17 comunidades quilombolas que aguardam o recurso para terem acesso ao território. No atual ritmo, Brasil levará mil anos para titular todas as comunidades quilombolas.
A morosidade nos processos de titulação e a ausência de um planejamento do governo federal para atender a demanda reprimida foi objeto de recente denúncia feita por organizações à organismos internacionais. Evasivos, os representantes do governo presentes na audiência não responderam aos questionamentos das organizações sociais, entre elas a Conaq e Terra de Direitos.
Somados à fragilização da legislação ambiental para facilitar a exploração dos territórios quilombolas pelo mercado e os impedimentos do acesso à informação - “dados dos sites da Seppir [Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial] e Fundação Palmares desapareceram”, Vercilene destaca que a crescente violação dos direitos das comunidades quilombolas dá maior visibilidade à violência cristalizada pelo Estado brasileiro e dirigida à população negra.
“A estrutura do estado racista e opressor sempre existiu, mas este governo deixa evidente e transparecer estes elementos. Pra nós, quilombolas, nunca foi novo. Este estado sempre se preocupou em nos oprimir e nos criminalizar, e não a desenvolver alternativas que não a subalternização do povo negro quilombola. Só a gente sabe o que é sobreviver a tudo isso”, destaca ela.
Para o advogado da Conaq, Oriel Rodrigues de Moraes, os obstáculos que impedem o acesso e permanência nos territórios quilombolas são os mais sensíveis nesta luta. Isto porque os quilombolas estabelecem relações muito específicas com seus territórios.
“A gente luta porque o nosso jeito de viver é um jeito de vida. Pra nós o território é vida. Nosso quilombo é nosso espaço de reprodução sócio físico-cultural, o nosso espaço de vida”, pontua.
Ele ainda sublinha que ocupar os diversos lugares do sistema de justiça, do parlamento e do executivo são caminhos a serem percorridos pelas comunidades. “A gente observa que as leis não foram nós que fizemos. Não tivemos nenhum deputado quilombola ainda. E a lei foi feita para favorecer algum grupo. E esses grupos é da cultura hegemônica”, destaca. O advogado pontua que há avanços em normatizar direitos das comunidades quilombolas com a Constituição Federal e em governos recentes. No entanto, os números de comunidades tituladas demonstram que a maioria das comunidades não tem seus territórios assegurados. A Conaq estima cerca de 5 mil comunidades no país. Destas apenas 45 comunidades tem seus territórios, total ou parcialmente, titulados.
O advogado ainda reforça que percorrer os caminhos da formação universitária é um frente necessária de ser assumida pelas comunidades. “Quando falamos que queremos que algum de nós seja “doutor” é pra ser um doutor negro. Tem a Rafaela, tem a Isabela, tem o Jefferson, etc. Estamos nos cursos. Estamos incomodando porque pensamos e falamos. E o nosso olhar sobre o território não é percebido na academia. O nosso sentir e pensar a academia muitas vezes não percebe isso”, relata ao mencionar nomes de quilombolas que ocupam assentos nos cursos de direito.
Vercilene, primeira mestra em direito no país, formada pela Universidade Federal de Goiás (UFG), e Oriel, mestrando em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), foram saudados pelo público participante da agenda. “São inspirações”, destacaram.
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“Controle das nossas terras está nas mãos daqueles que afirmam que somos o retrocesso”,diz advogada quilombola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU