15 Mai 2018
Morosidade nos processos e falta de recursos revelam racismo institucional do Estado Brasileiro. Para 2018, estão previstos menos de R$1 milhão para a titulação dos mais de 1,7 mil processos abertos no Incra.
A reportagem é de Franciele Petry Schramm, publicada por Terra de Direitos, 14-05-2018.
Passados 30 anos da promulgação da Constituição Federal e 130 anos desde a assinatura da Lei Áurea – que no dia 13 de maio de 1888 determinou a abolição formal da escravidão –, políticas públicas voltadas para comunidades quilombolas revelam que o racismo institucional ainda é presente no país.
Exemplo disso é a destinação de recursos públicos para a titulação de territórios quilombolas, que sofreu uma queda de mais de 97% nos últimos cinco anos. Se em 2013 foram usados mais de R$ 42 milhões para a desapropriação das terras onde estão os territórios quilombolas, em 2018 menos de R$ 1 milhão estão previstos.
O valor é insuficiente para titular os mais de 1,7 mil processos sob responsabilidade do Incra. Desse total, 32 áreas de 12 comunidades quilombolas já foram reconhecidas, tiveram o decreto de desapropriação assinado, e aguardam apenas a titulação. De acordo com informações obtidas através da Lei de Acesso à Informação, 15 delas aguardam desde 2016 a aquisição dos imóveis para a receberem o título.
É o caso da Comunidade Invernada Paiol de Telha, no Paraná, que teve o Decreto de Desapropriação assinado pela Presidenta Dilma Rousseff em 2015. Comunidade com o processo de titulação mais avançado no estado, o Paiol de Telha teve 2,9 mil hectares reconhecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Desse total, quase 1,5 mil hectares foram previstos no Decreto de Desapropriação. No entanto, a titulação da área deve se dar em partes, e 228 estão em processo de desapropriação. Os quilombolas aguardam o título dessa área desde que foram certificados pela Fundação Cultural Palmares, em 2005.
Enquanto a terra não é titulada, as famílias vivem com a insegurança e são impedidas de acessar políticas públicas. Muitas casas ainda não contam com energia elétrica e saneamento básico, como conta a quilombola Ana Maria Santos da Cruz, que também é integrante da coordenação executiva da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “Nós não podemos ter um projeto de ter água, de ter energia, ter moradia, porque não temos o título. O pessoal está em situação de miséria”.
Apesar de a Constituição determinar que as comunidades quilombolas fazem parte do patrimônio cultural brasileiro e que devem ter suas terras reconhecidas, apenas 6% dos territórios quilombolas possuem o título da área – na maior parte dos casos, apenas parte dos territórios foram titulados. No Brasil, das 2.847 comunidades quilombolas certificadas – número que é ainda maior se forem consideradas as comunidades que ainda não foram reconhecidas –, apenas 174 foram tituladas.
A certificação é apenas o um dos passos iniciais na luta pela titulação do território. Até obterem o título da terra, as comunidades ainda precisam passar pela elaboração e publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), pela publicação da Portaria de Reconhecimento assinada pelo Incra e pelo Decreto de Desapropriação assinado pela presidência da república.
Para Givânia Maria da Silva, membro fundadora da Conaq e ex-coordenadora geral de regularização dos territórios quilombolas do INCRA, o baixo orçamento destinado à titulação e a morosidade em finalizar os processos revela uma atitude racista por parte do Estado. “É o racismo institucional operando pela burocracia”, destaca. “Isso acontece quando o Estado tenta impedir ou colocar obstáculos para aquele que tem direito a uma ação por recorte de raça”.
Desde 2016, apenas sete territórios foram titulados pelo Instituto em todo o país – três em 2017, e grande parte recebeu o título de apenas parte da área. Até o momento, nenhuma comunidade quilombola foi titulada pelo Incra em 2018.
Esse dado coloca em cheque o argumento utilizado pela Casa Civil em 2017 para a não-titulação de terras. No ano passado, um ofício enviado pela Casa Civil ao Ministério Público Federal indicou a paralisação dos processos de titulação até que fosse finalizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239 movida pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL) – atual Partido Democrata (DEM). A ação questionava o Decreto Federal 4.887/03 que regulamentava os procedimentos de titulação das áreas. Segundo o documento enviado pela Casa Civil, a orientação para a paralisação dos processos era uma forma de garantir a “segurança jurídica”.
A ação foi julgada no dia 8 de fevereiro deste ano, quando os ministros do Supremo Tribunal Federal consideraram que o decreto é Constitucional e que a tese do Marco Temporal não deveria ser aplicada. Essa tese estabelece que só teriam direito às terras as comunidades que tinham sua posse em 5 de outubro de 1988, algo que desconsidera os processos de expulsão dos quilombolas de seus territórios.
Mesmo com o reconhecimento da constitucionalidade do Decreto, nenhuma comunidade quilombola foi titulada pelo Incra em 2018. Advogado popular da Terra de Direitos que acompanhou a tramitação da ADI 3.329, Fernando Prioste questiona o papel cumprido pelo Poder Judiciário nesse caso. “O judiciário reconhece um direito, mas não tem força – e talvez nem interesse – de fazer com que esses direitos sejam efetivados”, pontua.
Membro fundadora da Conaq e ex-coordenadora geral de regularização dos territórios quilombolas do INCRA, Givânia Maria da Silva reforça que o baixo orçamento destinado à titulação de áreas e o sucateamento de instituições como o INCRA é uma das estratégias para garantir o enfraquecimento da política. “Se por um lado tivemos uma vitória no Supremo em relação ao que desejava o DEM, por outro lado a gente tá assistindo o desmonte absoluto em toda a estrutura do Estado que atua na questão quilombola”, avalia. “Não conseguiram destruir os conceitos e as conquistas que estavam no decreto 4887 e estão agindo de uma forma muito mais rasteira e violenta”.
O menor peso na balança
A diminuição orçamentária do Incra para a titulação de terras quilombolas acontece em um meio ao cenário de ajustes fiscais por parte do Governo Federal, que toma medidas que alega serem necessárias para evitar o suposto rombo e equilibrar as contas públicas. Se observado de perto a destinação dos recursos públicos, percebe-se que as contas, de equilibradas não têm nada.
Caso emblemático disso é o valor gasto com auxílio-moradia para magistrados brasileiros. De acordo com a Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado, apenas para o ano de 2017 foram gastos R$ 817 milhões com auxílio-moradia para 17 mil juízes. Esse valor é resultado de um benefício de R$ 4.377, 73 pago mensalmente a todos os magistrados no país, como forma de custear os gastos com habitação, mesmo que o beneficiário tenha casa própria no local onde atua.
O valor gasto com auxílio-moradia para juízes em 2017 é quatro vezes maior do que todo o valor gasto pelo Incra para a titulação de territórios quilombolas desde 2010 – ou seja, em um ano, foram usados quatro vezes mais recursos para a magistratura do que foram gastos para a aquisição de terras quilombolas em oito anos.
Em termos comparativos, os R$ 817 milhões de reais gastos com auxílio-moradia seriam suficientes para titular ao menos 18 vezes as terras de todos os territórios quilombolas que estão na fase final para titulação.
Para Givânia, isso reforça a falta de vontade política para a efetivação de políticas públicas de promoção da igualdade. “A elite brasileira – a mesma que compõe o Senado, o atual Executivo e a Câmara – não aceita que os quilombolas possam ter direito à terra. Tanto é verdade que a ADI 3239 ficou 14 anos tentando desconstruir o que era a definição da política quilombola”.
A garantia e efetivação de direitos previstos na Constituição Federal não parece ser mesmo a prioridade do Governo Federal. Uma portaria publicada em Diário Oficial no dia 10 de abril (Portaria nº 75) remanejou mais de R$ 208 milhões de reais de áreas da saúde, transportes, de políticas para mulheres e reforma agrária para a atividades da comunicação governamental. Deste montante, cerca de R$ 203 milhões serão destinados para a comunicação institucional e R$ 5,9 milhões para a publicidade.
Essa transferência de recursos acontece em um cenário de congelamento dos gastos públicos, através da implementação da Emenda Constitucional 95. Denunciada por entidades e movimentos sociais, a EC 95 congela por vinte anos as despesas primárias, onde estão inseridos os investimentos em políticas públicas sociais.
A falta de recursos destinados para a titulação de territórios quilombolas é um dos inúmeros desafios enfrentados pelo Incra. Servidores do Instituto tem denunciado a precarização dos trabalhos com o corte de funcionários e com a diminuição de recursos para políticas também de desenvolvimento e da reforma agrária.
Desde que o Decreto Federal que regulamentou a titulação de terras quilombolas foi aprovado, em 2003, o Incra sofreu, até 2016, um corte no quadro de funcionários de 15%: foram reduzidas 864 vagas, apesar do aumento de responsabilidades do Instituto. De acordo com dados da Associação dos Servidores do Incra (Assincra), desde 2003, quando o Incra passou a ser a autarquia responsável pelos processos de titulação na esfera federal, o número de funcionário efetivos passou de 5.164 para 4.300, em 2016.
O cenário pouco favorável não amedronta os quilombolas. O advogado popular de Terra de Direitos lembra que as poucas titulações dos territórios feitas pelo Incra são resultado dos esforços do movimento social. Segundo ele, Conaq e comunidades quilombolas têm avançado muito nas mobilizações sociais, com vitórias nas ruas e nos tribunais.
E reflete: "Não haverá efetiva democracia e justiça social no Brasil enquanto as comunidades negras quilombolas não tiveram suas terras plenamente tituladas".
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Orçamento para titulação de territórios quilombolas cai mais de 97% em cinco anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU