03 Mai 2019
“A Cúria, que é uma burocracia, não é um instrumento de evangelização. Ela deve apoiar os outros em seu trabalho de evangelização.”
O comentário é do jesuíta estadunidense Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos Estados Unidos, de 1998 a 2005, e autor de “O Vaticano por dentro” (Ed. Edusc, 1998), em artigo publicado por Religion News Service, 01-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se há alguma verdade nos vazamentos a respeito da futura proposta do Vaticano para reformar a Cúria, ela será uma decepção e um desastre.
Um esboço da proposta, que deve ser publicada no fim de junho, foi obtido pela revista espanhola Vida Nueva, e, como o Vaticano não rebateu a sua análise, o Catholic News Service e outros repórteres vaticanos estão levando-a a sério.
Há coisas para se gostar na reportagem da Vida Nueva sobre a proposta, intitulada Praedicate evangelium (“Preguem o Evangelho”). O documento enfatiza que a Cúria está a serviço do papa e do Colégio dos Bispos, e não apenas do papa. Essa é uma tentativa de impedir que a Cúria veja a si mesma como um poder entre o papa e os bispos.
O trabalho da Cúria como um serviço é um ponto que o Papa Francisco levantou fortemente em seus discursos aos seus membros que trabalham no Vaticano. Francisco percebe que isso exigirá uma mudança de pensamento, uma mudança na cultura da Cúria. É bom que o serviço seja enfatizado na Praedicate evangelium, mas pôr isso por escrito não fará com que isso aconteça.
A visão de Francisco sobre a Cúria também está representada quando o suposto esboço sustenta a Cúria como um instrumento de evangelização. A evangelização está no coração do modo como a Igreja é entendida em tempos de Francisco.
Por mais bonito que isso pareça, isso não funcionará. Tentar isso é tolice. Os escritórios centrais não vendem produtos; eles gerenciam pessoas que estão no campo, que vendem os produtos. Da mesma forma, a Cúria, que é uma burocracia, não é um instrumento de evangelização. Ela deve apoiar os outros em seu trabalho de evangelização.
Esse envolvimento de tudo sob o mantra da evangelização me lembra os anos 1980, quando a maioria das dioceses dos Estados Unidos renomeou seus escritórios como “centros de pastoral”. A mudança de nome não os tornou pastorais. Eles continuaram fazendo exatamente as mesmas coisas que antes.
O suposto rascunho cria um novo dicastério ou escritório para a evangelização, combinando a Congregação para a Evangelização dos Povos e o Conselho para a Nova Evangelização. Subordinada a ela, estará a Congregação para a Doutrina da Fé.
Na Igreja Católica, quando você ouve que duas entidades vão ser fundidas, na maioria das vezes o que realmente está acontecendo é que uma delas está sendo fechada. Isso acontece com as paróquias o tempo todo. O meu palpite é que é isso que está acontecendo com o Conselho para a Nova Evangelização. Talvez seja isso também que está acontecendo com a Congregação para a Doutrina da Fé, que era um “cão de guarda” doutrinal nos papados anteriores. O “cão de guarda” está sendo aposentado?
Mais importante, quem quer que esteja combinando esses escritórios parece não saber o que a Congregação para a Evangelização dos Povos realmente faz. Seu principal trabalho é selecionar bispos para a África e a Ásia e para outros chamados territórios de missão. Ela tem mais em comum com a Congregação para os Bispos do que com o Conselho para a Nova Evangelização e a Congregação para a Doutrina da Fé.
O plano descrito na Vida Nueva também não compreende as práticas de gestão contemporâneas. Muitos se arrepiam diante da ideia de que a Igreja poderia aprender qualquer coisa com as corporações multinacionais contemporâneas, mas qualquer um que tenha estudado a história da Cúria Romana sabe que ela tomou emprestadas ideias do mundo secular, incluindo do Império Romano, da chancelaria francesa do século XIV, das cortes reais e dos monarcas absolutos. Então, por que não aprender com entidades internacionais contemporâneas?
Deixe-me esboçar um plano de reforma alternativo que tenta aprender com as corporações modernas.
Primeiro, mantenha e fortaleça a Secretaria para a Economia (finanças). Dê-lhe autoridade real para impor práticas contábeis e de negócios contemporâneas para as entidades vaticanas. A desobediência deveria levar as pessoas a serem demitidas. Dê-lhe o controle sobre todo o dinheiro e os investimentos, incluindo os da Congregação para a Evangelização dos Povos.
Segundo, crie um escritório de recursos humanos. Debaixo dele estaria tudo o que está envolvido na seleção, treinamento, formação continuada e avanço de qualquer um no ministério da Igreja. Isso incluiria as normas para a avaliação dos candidatos, para a administração dos seminários e para a seleção dos bispos. Tanto os ministros clericais quanto os leigos, incluindo os religiosos, estariam incluídos aqui.
Uma vez que o pessoal e as finanças estejam sob cuidado, o Vaticano precisaria decidir se quer organizar a Cúria em torno de regiões geográficas ou de linhas de produtos. A Cúria atualmente está organizada nos dois sentidos e provavelmente continuará estando, mas aquilo que é enfatizado pode fazer a diferença.
Em uma organização baseada na geografia, cada continente poderia ter seu próprio escritório para lidar com as Conferências Episcopais nacionais de seus países. Os escritórios continentais teriam autoridade para conceder exceções às leis gerais e permitir a experimentação nas Igrejas locais. Isso encorajaria a “subsidiariedade e a inculturação” – palavras que a Igreja usa para descrever a descentralização e a adaptação às condições locais.
Atualmente, a Igreja está dividida geograficamente entre a Congregação para as Igrejas Orientais, responsável pelas Igrejas orientais (principalmente o Oriente Médio e partes da Índia e Europa Oriental), a Congregação para a Evangelização dos Povos, que lida com os territórios da missão (principalmente África e Ásia), e o restante (Europa e Américas), que é supervisionado pela Congregação para os Bispos.
Embora esses escritórios tenham um grande controle sobre a nomeação dos bispos, eles recebem pouca margem para modificar as três linhas de produtos da Igreja para as condições locais.
Quais são as linhas de produtos da Igreja? Palavra, sacramentos e caridade.
No passado, os dois primeiros eram controlados pela Congregação para a Doutrina da Fé e pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.
A Congregação para a Doutrina da Fé tinha a palavra final sobre qualquer coisa relacionada com a doutrina, o ensino e os teólogos. Ela também supervisionava cuidadosamente os diálogos ecumênicos e inter-religiosos. Quando se tratava da Palavra, ela era suprema.
O Culto Divino controlava a celebração da Eucaristia e dos outros sacramentos, incluindo os textos, os rituais e as traduções.
Esses escritórios permitiam pouca adaptação do culto ou do ensino para responder a diferentes condições culturais e religiosas. A uniformidade dos produtos era valorizada em relação à adaptação às preferências do cliente.
A caridade, a terceira linha de produtos, está espalhada por vários escritórios no Vaticano, incluindo a Congregação para a Evangelização dos Povos (Propaganda Fide) e o Conselho Cor Unum. Mas o Vaticano tem pouco controle sobre o que acontece nas instituições de caridade locais, que provavelmente é o motivo pelo qual muito bem está sendo feito em nível local.
Finalmente, o que falta em tudo isso é um escritório de pesquisa e desenvolvimento. A inovação não seria necessária se todos ouvissem a hierarquia da Igreja com respiração acelerada, se todas as nossas celebrações eucarísticas estivessem lotadas apenas e se os pobres tivessem suas necessidades satisfeitas. Se você vive no mundo real, você sabe que os nossos produtos do século XIII não estão vendendo. É hora de ser criativo.
Também poderia haver um escritório para o contato e o diálogo com autoridades governamentais e líderes de outras Igrejas e religiões. E, com todos os problemas da Igreja, existe a necessidade de um departamento de justiça para investigar e processar os abusos financeiros e sexuais cometidos por bispos, padres e outros.
Muitos dos meus amigos liberais acham que a maneira de reformar a Cúria é aumentando o papel dos leigos, especialmente das mulheres. Mas quais leigos, quais mulheres? Há muitos leigos, incluindo mulheres, que trabalham em cúrias e seminários conservadores em todo o país. Às vezes, eles são piores do que os clérigos.
Não estou impressionado com as reformas descritas nos vazamentos. A única esperança é de que elas joguem a Cúria em um tamanho caos de modo que, em algum momento futuro, possa haver uma reforma real.
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Se essa for a reforma da Cúria, o Vaticano está indo rumo ao desastre. Artigo de Thomas Reese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU