10 Abril 2019
“No tempo pascal, cristãos e judeus fazem ‘memorial’, ou seja, memória revivida e revivente, de eventos históricos fundamentais. Mas não são histórias separáveis: uma antecipou e prefigurou a outra, a segunda deu cumprimento e plenitude à primeira.”
A reflexão é do biblista e monsenhor italiano Giovanni Giavini, ex-Capelão de Sua Santidade durante o pontificado de João Paulo II, em artigo publicado por Settimana News, 06-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No tempo pascal, cristãos e judeus fazem “memorial”, ou seja, memória revivida e revivente, de eventos históricos fundamentais: os judeus, daqueles da passagem do risco de morte sob o poder de um faraó egípcio divino para uma vida nova (por volta de 1250 a.C.); nós, cristãos, por outro lado, acima de tudo, da passagem do Crucificado para uma vida nova, à direita do Pai (por volta de 30 d.C.). Mas as duas histórias não são separáveis: uma antecipou e prefigurou a outra, a segunda deu cumprimento e plenitude à primeira.
Com esse espírito, podemos também reler juntos alguns Salmos, em particular o 77 (ou 76), que lemos – se não podemos da Bíblia Hebraica – da recente versão da CEI [aqui, em português, da Bíblia Pastoral].
Também desta vez nos perguntamos: quem fala nesse Salmo? É um judeu desconhecido (talvez um certo Asaf), que está vivendo um momento ruim da história dele e do seu povo, talvez uma hora de opressão sob inimigos ou mesmo um exílio sob o império de assírios ou babilônios. Um momento ruim, porém, especialmente porque todos se perguntam em que reação o seu Deus-YHWH está pensando: ele não parece mais o Deus de antes, talvez mudou totalmente, perdeu a memória das alianças e das promessas a Israel... Daí o drama da fé e da esperança pessoal e comunitária. O salmista, então, interpreta ambas em simbiose e em busca de resposta.
Escutemos algumas das suas sinceras e ousadas expressões:
A Deus levanto a minha voz, e grito! (...)
No dia da angústia eu procuro pelo Senhor. À noite estendo a mão, sem descanso (...)
Lembro-me de Deus e fico gemendo (...)
Tu me seguras as pálpebras dos olhos, fico agitado e nem posso falar.
Penso nos dias de outrora, recordo os anos longínquos.
De noite reflito em meu coração, fico meditando (...)
Qual é o seu tormento que nem mesmo o deixa dormir e angustia a sua contínua busca? Certamente é bom buscar a Deus, mas e se Ele não se vê ou, melhor, se mudou tanto que nem conseguimos pensar nele ainda? De fato:
“Este é o meu mal: a direita do Altíssimo mudou!”.
Por enquanto, a fé tem um sobressalto de recuperação:
Será que Deus se esqueceu da sua bondade, ou fechou as entranhas com ira? (...)
Lembro-me das proezas do Senhor, recordo tuas maravilhas de outrora,
medito tuas obras todas, e considero tuas façanhas.
Ó Deus, o teu caminho é santo! Que deus é grande como o nosso Deus?
Embora essa frase não esteja correta, porque alude à existência de outros deuses (antes de chegar ao perfeito monoteísmo, os judeus mais antigos imaginavam justamente a existência de outros deuses), a frase era, mesmo assim, um bom ato de fé: pelo menos o nosso Deus é maior do que os outros. Razão pela qual o salmista afirma:
Tu és o Deus que opera maravilhas, mostrando às nações a tua força.
Mas agora tudo parece ter mudado e desaparecido. Como a fé poderá permanecer firme?
A resposta desponta a partir da memória de pelo menos um passado glorioso: o do êxodo do Egito faraônico:
Com teu braço resgataste o teu povo, os filhos de Jacó e de José.
Clara alusão à libertação do risco de extermínio, especialmente das tribos do velho reino do norte de Israel (sinal de que o Salmo provavelmente provinha de lá, daquele reino que acabou sob os assírios em 722 a.C., com a eliminação das tribos de Efraim e Manassés, filhos de José e netos de Jacó).
Mas como ocorreu essa libertação do Egito? Normalmente, no rastro de páginas como Êxodo 15, pensamos em uma mirabolante e repentina divisão da água do Mar Vermelho, que quase se tornou uma represa à direita e à esquerda dos pobres israelitas liderados por Moisés, ou, melhor, alguns filmes imaginaram um túnel debaixo d’água; muitas representações artísticas são mais ou menos o fruto dessa imaginação. Mas Ex 15 era marcado pela arte épica e bastante fantasiosa; já, porém, o livro do Êxodo, lido com atenção, sugeria eventos diferentes.
O Salmo é ainda mais explícito e iluminador:
O mar te viu, ó Deus, o mar te viu e tremeu, e as ondas estremeceram (alusão a terremoto e maremoto sucessivos?)
As nuvens derramaram suas águas (chuva que transformou o solo em pântano, e os carros de guerra egípcios foram detidos por causa disso), as nuvens pesadas trovejaram, e tuas flechas ziguezagueavam.
O estrondo do teu trovão rondava (isto é, no vento do deserto), teus relâmpagos iluminavam o mundo (favorecendo assim, um pouco, o caminho a pé no meio da água e, provavelmente, em um vau já conhecido por Moisés pela sua cultura adquirida na corte?).
E, novamente uma alusão a um terremoto:
E a terra se agitou, estremecida.
Com esses meios providenciais, “abriste um caminho entre as águas, uma senda nas águas torrenciais, sem deixar rastro dos teus passos”: ou seja, embora presentes, permaneceram invisíveis, escondidos nas aparências dessa história. Com tudo isso, “guiaste o teu povo como a um rebanho, pela mão de Moisés e de Aarão”.
Esse Salmo, portanto, é belo, até porque nos ajuda a ler com inteligência e sã visão de conjunto diversas páginas bíblicas (cf. também o Salmo 68(67), 8-10). Sua mensagem surge mais concreta e mais clara. E, na Páscoa, os judeus o cantavam, “em memória de YHWH” e dos seus gestos admiráveis. Mesmo quando estes pareciam ter desaparecido no vazio, obscurecidos por histórias dolorosas e conflitantes. E quantos houve na história do povo judeu... mas não só nela.
Em essência, esse Salmo – assim como tantos outros – era um convite à história, em particular à da passagem do perigo de morte no Egito, para retomar e sustentar a fé e a esperança de Israel também nos momentos de água na garganta e de silêncios de Deus.
Também para nós, cristãos, muito próximos e semelhantes aos nossos “irmãos mais velhos”, é sempre salutar fazer memória de alguma história anterior, como a do êxodo dos judeus do Egito e, mais ainda, a do judeu Jesus, sobretudo da sua Páscoa.
Ele também, como bom judeu, nos remete aos “memoriais” pascais do seu povo em memória de YHWH; mas ele inseriu neles novidades surpreendentes e significativas: “Fazei isto em memória de mim”! Isto é, em memória de alguém que se fez humilde servo, assumiu corpo e sangue pela vida do mundo e lavou os pés até mesmo de Judas!
Portanto, releremos o Salmo 77 porque ele também é capaz de alimentar a nossa fé no Deus pascal, mas com as novidades tipicamente evangélicas.
Se, acima de tudo, não me volto a essas histórias, corro o risco de acabar na contemplação apenas do meu eu... com o triste fim de Narciso.
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Salmo 77: nas pegadas de Deus. Artigo de Giovanni Giavini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU