02 Abril 2019
Lytta Basset, 68 anos, se expressa em uma voz calma que aos poucos vai se animando. Apesar do cansaço após um fim de semana de palestras dadas à comunidade de Arche de Jean Vanier, no âmbito de sua associação para o acompanhamento espiritual (Aaspir), a filósofa e teóloga franco-suíça nunca se cansa de falar sobre Deus. Filha de um pastor missionário e mãe poetisa, Lytta Basset cresceu em Raiatea, na Polinésia Francesa, até os 10 anos de idade. Sua família então se estabeleceu no Gard. Depois de estudar filosofia e teologia, ela viajou pelo mundo com seu marido, um pastor reformado, antes de se estabelecer na Suíça e se tornar também pastora e professora de teologia.
Todo a sua obra mostra sua busca íntima por Deus, depois de uma infância atormentada, marcada por um drama que permanece indizível. Seus numerosos escritos sobre o perdão, a infelicidade ou o amor, resultado de uma longa reflexão realizada paralelamente à psicanálise, alcançaram o grande público. Seu próximo livro, Face à la perversión, des ressources spiritualles inattendues (Albin Michel) será publicado no segundo semestre.
A entrevista é de Arnaud Bevilacqua e Violaine Epitalonin, publicada por La Croix, 30-03-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando foi a última vez que você sentiu raiva?
Agora fico muito menos brava do que antes. Eu acabei canalizando minha raiva. Aprofundei de tal forma o processo, escrevendo Sainte colère (1), resultado de uma evolução pessoal, que posso descobrir rapidamente o que a provoca, quando eu não me sinto respeitada ou quando tem a ver com feridas do passado. Em primeiro lugar, aprendi a não reagir imediatamente, porque reagir movida pela raiva é praticamente estéril. Eu analiso a origem da minha raiva. Eu não tenho mais reações vulcânicas como acontecia durante o meu trabalho terapêutico, que começou aos 33 anos. Porque aquele sentimento havia sido reprimido por muito tempo durante a primeira infância.
Quando você era pequena, não havia espaço para raiva?
A raiva não era possível porque, desde a infância, percebi a fragilidade dos adultos, que não suportavam a crítica. E as crianças têm canais de percepção muito sensíveis. Além disso, minha educação foi marcada pelos castigos corporais. Nem mesmo uma queixa legítima devido ao sofrimento não era possível. A criança logo entende que não se deve perturbar.
Qualquer tipo de raiva era colocado debaixo do alqueire?
Eu reprimi imensamente minha raiva, escondida sob uma enorme capa. Por um longo tempo, até pensei que eu não era capaz de ficar com raiva. Na infância, vivenciei experiências traumáticas que me destruíram e das quais não tinha nenhuma lembrança. Mais tarde trabalhei muito nos meus sonhos para sair desse impasse. Quando comecei a ter sonhos em que eu ficava com raiva, fiquei feliz, aliviada. Então, sou capaz disso! Achei difícil acreditar, tanto havia interiorizado a imagem da garota submissa que diz "amém" a todos.
O que então alimentava sob a sua raiva oculta?
O que me incomodava era o fato de não ser ouvida, não ser escutada. As palavras nem mesmo são encontradas, porque já se sabe que não seremos ouvidos e que, em vez disso, receberemos uma punição. Eu já estava derrotada antes de começar. Levei muito tempo para me dizer: "A tua palavra é legítima, tu tens o direito de sentir o que sentes dentro de ti, tu tens o direito de ser ouvida". E quando não se tem mais medo de não ser ouvido, fica-se menos propenso à veemência.
É muito difícil aceitar e superar a própria raiva. Como você conseguiu?
O desconforto, o desespero, a impossibilidade de viver me levaram a iniciar uma terapia. Comecei a partir do encontro com a minha história, tão insuportável a ponto de ser totalmente removida. Eu precisei de um longo percurso para encontrar aquela parte de mim ferida e deixar aflorar a raiva, que é uma formidável energia da vida. Colocada sob uma capa de chumbo, pode se virar contra nós mesmos, alimentar uma depressão ou um dia explodir com muita força. Mas é o que nos faz dizer: eu existo, parem de me impedir de ser eu mesma.
No entanto, para os católicos, a raiva faz parte dos pecados mortais. O que você pensa disso?
É uma catástrofe na história da Igreja. Muitos cresceram com essa proibição. É terrível, porque proibir-se de sentir a própria raiva beira a autonegação. Para nós, protestantes, a referência é a Bíblia. Eu não vejo nenhuma proibição nela. Dois terços das citações de raiva nos textos bíblicos são atribuídos a Deus. Mas, então, seria possível que Ele poderia ficar com raiva e nós, que somos chamados a nos assemelhar a ele, não poderíamos fazê-lo? A primeira ira na Bíblia é a de Caim, e Deus não diz que ele não tem o direito, mas pergunta o porquê. A raiva foi colocada na lista dos pecados porque assusta. É uma paixão a ser canalizada que pode degenerar em algo incontrolável.
De fato, a raiva pode cegar, ser destrutiva ...
Certamente. Se não for ouvida e a pessoa se vê sozinha com sua raiva, pode cegar. Também pode ser tão forte que se transforma em ódio, por exemplo, contra alguém que nos fez sofrer. Quando menciono o ódio nas minhas conferências, as pessoas se sentem desconfortáveis. No entanto, essa passagem pelo ódio está presente nos textos bíblicos. É temporário e não somos chamados a permanecer bloqueados, não é vivível. Mas é um alívio entender que é possível experimentar esse sentimento e expressá-lo. Eu acredito que a raiva seja também o que me leva a rejeitar o que me é imposto (um ofício, um parente). E a santa ira é a que me abre para o meu caminho, inspirado por Deus. Até mesmo Jesus ficou irado. Ele não expulsou os vendilhões do templo com um sorriso nos lábios. Vamos pensar em quantas vezes, no livro de salmos, a pessoa que reza extravasa a sua raiva, às vezes com palavras extremamente fortes. O salmista dá palavras à sua ira. Ele sabe que diante de Deus pode dizer tudo, e se acalma. O salmo termina basicamente com um louvor.
Superar a raiva não é nada fácil. Você experimentou um drama com o suicídio de seu filho: sentiu raiva diante de tal terrível provação?
Não, não mesmo. Vimos nosso filho Samuel tomado por um sofrimento tão grande que não poderíamos ficar zangados com ele. Ele estava em tal impossibilidade de viver, ele não via mais futuro, que o que dominava era a compaixão e a dor, não a raiva.
Nem mesmo contra Deus?
Nem mesmo. Desde a minha infância, Deus tentou desesperadamente me tirar do caos e continuou a fazê-lo. Por muito tempo foi a minha única saída. Certo dia, Samuel, quando era criança, perguntou-me qual seria a pior coisa para mim e eu lhe respondi: "Que Deus não existisse". Quando Samuel morreu, não pude aceitar o pensamento de que Deus havia me abandonado e que eu pudesse me revoltar contra ele, porque ele é o único que me salvou. Eu o chamo de Vivente, porque as forças de vida que me habitaram só podiam vir dele.
Em seu trabalho de acompanhamento, você teve contato com pessoas iradas contra Deus?
Muitas. Mas é uma coisa muito positiva expressá-la contra Deus. Toda a Bíblia diz isso: enfureçam-se com Deus, porque ele é grande o suficiente para se defender. Nos textos, vemos que Deus acolhe essa revolta porque já é uma forma de relação. No final do livro de Jó, que estava com raiva de Deus, este reconhece as suas razões. As pessoas que sufocam a própria raiva cortam as pontes com Deus, achando que não vale mais a pena conversar com ele. Esse fechamento sobre si mesmo, essa ruptura de relação, é a definição do pecado. Sufocar a raiva contra Deus significa cortar as pontes com ele.
Mas como administrar essa raiva às vezes muito profunda?
Algumas pessoas nem sequer estão conscientes disso, porque não aprenderam a reconhecê-la. Elas não podem, portanto, gerenciá-la. Podemos nos inspirar em Deus, lento na ira contra a humanidade. Envia o dilúvio, mas quando percebe a vastidão dos danos, Deus se arrepende. Quantas vezes na Bíblia, Deus nega sua raiva e diz que a destruição não é uma solução ...
Em sua opinião, a raiva seria, portanto, positiva ...
Raiva não significa apenas quebrar pratos ou bater portas. Para que se torne energia vital, precisamos terrivelmente uns dos outros, poder dispor de uma escuta empática que acolha, sem julgar, a nossa revolta. Em um sentido mais amplo, a raiva inclui todas as formas de resistência. Alguns podem expressá-lo contra uma injustiça social e se embrenharão em uma luta política ou criarão um movimento, como Martin Luther King ou Nelson Mandela. Eles souberam usar a própria raiva, compartilhá-la com os outros para transformá-la em ação. Para mim, o que tem a ver com a contestação e o protesto é parte dessa raiva positiva que é o motor de muitas formas de compromisso.
(1) Sainte colère: Jacob, Jó, Jésus, Bayard, Labor et Fides
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"Sufocar a própria raiva contra Deus significa cortar as pontes com ele" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU