19 Março 2019
"O levantamento do véu para revelar o baixo nível do nosso sistema educacional atual, precipitado pelo escândalo das admissões universitárias, pode ser um momento de graça para as pessoas de boa vontade, em que começamos a fazer um balanço dos problemas e, recorrendo à oração, decidimos trabalhar duro em soluções para que todos “possam ter vida e a tenham em abundância”", escreve Cecilia González-Andrieu, teóloga, professora de Estudos Teológicos na Loyola Marymount University, Los Angeles, Califórnia, em artigo publicado por America, 15-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando surgiu a notícia da fraude organizada e generalizada promovida por pais ricos para garantir a admissão de seus filhos em universidades de prestígio, eu fiquei ofendida, mas não surpresa.
Podemos condenar a arrogância e o relativismo moral dos pais. Podemos ficar desapontados com treinadores e equipes de testes dispostos a serem subornados, a mentir e a trapacear em busca de ganhos financeiros. Podemos até imaginar quantos outros casos existem e quais pessoas poderosas também compraram os seus diplomas. Essas são considerações importantes. Mas, para as pessoas de fé, as perguntas são muito mais profundas.
Como professora, sou diariamente confrontada pela problemática questão de quem tem um assento garantido na sala de aula e quem não tem, enquanto também fico sobrecarregada de gratidão ao testemunhar a profunda transformação que a educação pode provocar na vida de uma pessoa. Mais importante, como teóloga, tenho a tarefa de chamar a atenção para as prioridades cristãs que deveriam ser – devem ser – diferentes das do “mercado”.
Em suas sábias palavras ao Encontro Mundial de Universidades confiadas à Companhia de Jesus em 2018, o superior geral, Pe. Arturo Sosa, SJ, sublinhou o elo entre a “vida abundante” que Jesus veio trazer (Jo 10, 10) e o imperativo moral de tornar essa vida acessível e possível para todos, “humanizando a história a partir do nosso lugar na universidade”. O trabalho da educação é “um apostolado”.
Eu concordo, porque uma compreensão cristã honesta da complexidade e das desigualdades do mundo revela que a “imagem de Deus” estampada em cada um de nós não nos é dada para a nossa realização individual, mas é o dom de uma “forma” em relação à qual temos a capacidade de crescer pelo bem de todos.
O Novo Testamento oferece vários vislumbres da importância da educação na própria vida de Jesus. Ele estudou e debateu no templo e, embora sendo filho de um carpinteiro, estava longe de ser um analfabeto. Como me disse o renomado arqueólogo William Fulco, SJ, como Jesus falava aramaico e precisava do hebraico para ler as Escrituras, ele devia saber grego o suficiente para atuar em seu ofício e deve ter falado um latim “caseiro”, que era a língua dos militares.
Jesus era um jovem que estudou com cuidado e que compartilhou generosamente o seu aprendizado. Nós vemos referências a ele principalmente como “mestre”, e suas maneiras efetivas de despertar e comunicar ideias vitais atraíram a muitos.
Se, como afirmamos, Jesus é o ser humano paradigmático, a “forma” que nos é mostrada através da sua encarnação sobre quem temos o potencial de ser, então a educação não é periférica ao nosso ser, mas está integrada em seu próprio cerne.
Ao contrário de outros grupos religiosos da época, a Igreja primitiva não levava em consideração o fato de aprender algo apenas para poucos, e eles romperam intencionalmente com grupos que reivindicavam um conhecimento secreto para seus iniciados de elite.
Como Jesus mostrou, a educação nos dá vida e tem o potencial de despertar a vida nos outros. O ensinamento de Jesus e seus seguidores foi oferecido a todos igualmente como um convite a um engajamento mais profundo com a sua realidade. E, embora hoje esse ensinamento nos pareça envolto na linguagem da fé, na época, eles estavam ensinando suas comunidades a lerem criticamente as Escrituras no contexto da vida diária. As intuições resultantes tiveram implicações para a economia, para as estruturas de poder, para os papéis de gênero e até mesmo para a observância das leis que tiranizavam o povo.
Assim, poderíamos dizer que a pregação de Jesus e de seus amigos foi multidisciplinar. Centrada em um reinado de Deus oferecido igualmente a todos, ela se perguntava como tal visão de vida comunitária afetava a viúva no portão do tesouro, os vendedores no Templo, os doentes que eram expulsos da cidade, os famintos no sábado, e as mulheres marcadas para a execução.
Um dos meus princípios orientadores é que, como consequência do exemplo de Jesus, a abordagem cristã do mundo exige que sejamos defensores da educação como um direito humano inalienável e dado por Deus e como um bem teológico. Como o Pe. Sosa nos diz, “o apostolado intelectual” é “uma forma de anunciar mais efetivamente a Boa Nova do Evangelho, de aprender a compreender a presença de Deus no mundo e a ação do Espírito [de Deus] na história para se unir a isso e contribuir com a libertação humana”.
A revelação da corrupção em torno de quem tem acesso ao Ensino Superior deve levar a todos nós a um espaço crítico e frutífero. No entanto, fazer a pergunta sobre o acesso às universidades desconsidera a dolorosa verdade de que toda a jornada da educação é profundamente desafiadora para os pobres e para as pessoas negras.
E isso exige que façamos novas perguntas: quem tem acesso a escolas preparatórias de qualidade?
Quantas das nossas escolas básicas, fundamentais e de Ensino Médio católicas se tornaram “escolas privadas” contentes em atender aos já privilegiados?
Como estamos interagindo com as escolas públicas locais, que muitas vezes são subfinanciadas e superlotadas, para apoiar a educação pública?
O que estamos fazendo para promover a possibilidade de acesso ao Ensino Superior a adultos que atuam em pastorais paroquiais que nunca tiveram uma oportunidade?
Somos politicamente ativos no apoio a candidatos e programas que priorizam o financiamento para a educação?
O que podemos fazer nas nossas paróquias para estabelecer parcerias com faculdades locais para oferecer informações e orientação sobre o Ensino Superior para os nossos jovens?
Estamos investindo em bolsas de estudo e em tutoria para jovens com grande potencial, mas com recursos escassos?
Pedimos que as empresas e os anunciantes utilizem parte de seus lucros e os invistam na educação?
Apoiamos salários justos e tamanhos de sala de aula justos para os professores?
Cada uma dessas questões abre uma nova área para nossa atenção.
O levantamento do véu para revelar o baixo nível do nosso sistema educacional atual, precipitado pelo escândalo das admissões universitárias, pode ser um momento de graça para as pessoas de boa vontade, em que começamos a fazer um balanço dos problemas e, recorrendo à oração, decidimos trabalhar duro em soluções para que todos “possam ter vida e a tenham em abundância”.