16 Março 2019
Velho revolucionário, poeta místico e sacerdote popular, Ernesto Cardenal acaba de ser reabilitado pelo Papa em suas funções clericais, que haviam sido retiradas por João Paulo II devido a sua adesão à Teologia da Libertação. Hoje, o poeta nicaraguense que foi ministro da Cultura da Revolução Sandinista, é um dos mais convictos críticos ao governo de Daniel Ortega. Esta é a história de Ernesto Cardenal contada por seu amigo e companheiro de lutas, o escritor Sergio Ramírez, ex-vice-presidente da Nicarágua, em artigo publicado por Nueva Sociedad e reproduzido por CPAL Social,14-03-2019. A tradução é do Cepat.
Ernesto Cardenal foi meu vizinho de rua mais ou menos quarenta anos em Manágua. Nós nos encontrávamos na hora do café da manhã para me deixar o que havia escrito, talvez naquela manhã, e quando eu terminava um romance, também deixava com ele, assim que saía da impressora. Foi um dos meus professores de prosa, porque em sua poesia eu aprendi muita arte narrativa e a cadência das palavras.
Eu o conheci em 1960, quando recém-regressava de Medellín, onde se tornou sacerdote, e acabava de presidir sua primeira missa em Manágua, embora desde de antes sua poesia havia marcado não apenas o meu rumo literário, mas a de toda a minha geração. Mestre, meu companheiro de lutas na Nicarágua sempre convulsiva, um irmão mais velho que eu sempre tive ao meu lado.
Sua marca é muito profunda e visível na grande poesia latino-americana. Essa natureza narrativa de sua poesia, que me marcou e me seduziu desde a adolescência, é o que foi batizado de exteriorismo, termo que pode levar a confusões pois parece negar sua dimensão íntima.
Ernesto aprendeu a prosa transposta para a poesia com Whitman e Sandburg, que lhe ensinaram uma letra mundana e cotidiana, e a minha geração ele também descobriu a T.S. Elliot e Ezra Pound, a quem traduziu. Assim, ele fez a poesia nicaraguense seguir sendo moderna, como começou a ser desde Rubén Darío.
Narrativa é a poesia da Hora 0 de 1957, um relato das ditaduras tropicais da América Central e as intervenções militares, que longe de ter algo panfletário, funciona como uma dolorosa evocação. E a partir desse registro, passará para Gethsemani Ky, de 1960, onde coloca em contraponto seus turbulentos anos de juventude em Manágua com sua vida de noviço trapista em Kentucky, onde se encontrou com Thomas Merton, seu mestre de noviços.
Em seguida, virão seus Epigramas, de 1961. Entre eles, figuram alguns de seus poemas mais populares, os de tema de amor, de engenhosa precisão, alimentados por suas leituras acadêmicas de Catulo e Marcial, enquanto estudava humanidades na Universidade Autónoma do México.
A morte de Marilyn Monroe, em 1962, inspirou sua elegia à garota que, como toda funcionária de loja, sonhava em ser uma estrela de cinema, uma profunda reflexão sobre a fabricação dos ídolos do espetáculo à custa dos próprios seres humanos elevados aos altares do espetáculo da fama. É um dos seus poemas mais difundidos e célebres.
Em 1966, viria El estrecho dudoso. Apegando-se à letra das crônicas das Índias, que revive episódios da conquista em torno da obsessão pelo Estreito Duvidoso, a passagem para o mar do Sul buscado tão ansiosamente desde então, e que teve tanto a ver até hoje com a ambição pelo canal interoceânico, o último desses episódios protagonizado pelo aventureiro Wang Ying, que, apesar do engano, um canal que nunca será construído, segue sendo dono de uma concessão que lhe entrega por cem anos a soberania do país.
Ordenado sacerdote em 1965, Ernesto fundou no mesmo ano a comunidade cristã de Solentiname, no Grande Lago da Nicarágua. Uma comunidade que primeiro seria contemplativa, idealizada com Merton, onde supôs vir morar ao lado de seu discípulo. A morte o impediu e a comunidade se tornou camponesa. Lá floresceu uma escola de pintores e escultores primitivos que chegaram a adquirir fama internacional. Em Solentiname, seria visitado por Julio Cortázar, em 1976, que foi lembrado em seu conto Apocalipse de Solentiname.
Nesse mesmo ano, são os Salmos, decorrentes de sua leitura do Antigo Testamento, mas trazidos para a vida moderna: opressão, sistemas totalitários, genocídio, campos de concentração, ameaças de cataclismo nuclear, sociedade de consumo descontrolada. Foi um livro de influência transcendental para jovens alemães e outros países europeus.
Após o triunfo da revolução sandinista, em 1979, foi nomeado ministro da Cultura, um cargo que aceitou apesar de sua relutância frente à burocracia. Realizou um processo transformador cercado por jovens cineastas, escritores, artistas plásticos, cantores e compositores. Ao mesmo tempo, seu irmão Fernando, um sacerdote jesuíta, assumiu o comando da Cruzada Nacional de Alfabetização.
Viveu circunstâncias amargas naqueles anos, quando foi forçado a renunciar a seu cargo por causa das intrigas da primeira-dama Rosario Murillo, que queria para ela todas as atribuições culturais, sem perceber que atropelava uma das principais figuras literárias fundamentais da língua. Em seu livro de memórias La revolución perdida, publicado em 2004, é possível ler sua avaliação implacável sobre aqueles que se apropriaram indevidamente da revolução, na qual se comprometeu profundamente com sua fé cristã.
O Vaticano o suspendeu ad divinis, por sua adesão à Teologia da Libertação e por se recusar a renunciar a seu cargo de ministro, e quando João Paulo II visitou a Nicarágua, em 1983, se tornou famoso pela fotografia do momento em que, com o dedo levantado repreende a Ernesto, que está ajoelhado com a boina basca na mão.
Em fevereiro deste ano, o Papa Francisco lhe enviou uma carta na qual anulava essas sanções e restabelecia sua condição sacerdotal. Em seu leito de hospital, em Manágua, o Núncio Apostólico lhe colocou a estola e ambos concelebraram uma missa de louvor.
Sua escrita deu um giro transcendental com o Cântico Cósmico, de 1989. Sua comunicação mística com a divindade se converte uma relação de erotismo pleno, a alma que é acoplada ao seu criador na mais exaltada das alegrias, como na poesia de São João da Cruz e Santa Teresa.
A exploração dos céus nesse livro é também a das memórias de seu passado, da antiga Granada de sua infância, das garotas que amou na adolescência, de sua juventude de cantinas, festas banais e bordéis, como se ele virasse o telescópio para dentro de si mesmo.
Um grande final de festa de sua obra e vida onde se fundem os mistérios da criação e da existência, dos buracos negros à célula, das galáxias perdidas aos prótons, e onde o seu olhar místico busca no Criador a explicação do todo, amor, morte, poder, loucura, passado e futuro, formas da eternidade.
Fora do hospital, onde foi várias vezes nos últimos meses, retomou a escrita, algo que se tornou consubstancial à sua vida. Seu ofício para sempre.
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Ernesto Cardenal e sua voz profética. Artigo de Sergio Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU