26 Fevereiro 2019
Se a temporada de premiações de Hollywood pudesse ser caracterizada por um “espírito primordial” poderia ser melhor descrita como “autocongratulatória”, e certamente não “de desculpas”. Mas isso é justamente o que Mahershala Ali tem a respeito da sua representação como Dr. Donald Shirley, em "Green Book".
A crítica é de Bill McGarvey, músico e escritor, publicada por America Magazine, 14-02-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O ator, que venceu seu primeiro prêmio na Academia há apenas dois anos pela sua atuação em Moonlight, foi nomeado mais uma vez nesse ano na categoria de melhor ator coadjuvante. Ele já recebeu os prêmios do Globo de Ouro e do BAFTA nessa temporada por sua performance como Shirley – o virtuoso pianista de jazz e música clássica que embarca em uma viagem em 1962 com seu motorista/guarda-costas Tony Vallelonga (Viggo Mortensen).
As desculpas do ator vêm nos passos dos ensinamentos dos membros restantes da família de Shirley – Shirley morreu em 2013, aos 86 anos – que chamaram o filme de “sinfonia de mentiras” que distorceu a natureza do relacionamento entre Shirley e Vallelonga e foi justamente outro exemplo de um homem branco oferecendo sua versão sobre a vida de um homem negro (O roteiro foi escrito com a coautoria do filho de Vallelonga). A sobrinha de Shirley, Carol Shirley Kimble, disse que “fazer a história sobre um herói, partindo de um homem branco para este homem negro incrivelmente talentoso é pelo menos um insulto”.
“Se eu lhe ofendi, eu estou terrivelmente arrependido, eu sinto muito”. Ali disse para o irmão de Shirley, Maurice, e seu sobrinho, Edwin Shirley III, que contou sobre a conversa que tiveram por telefone. “Eu fiz o melhor que eu pude com o material que tinha”.
Feito o melhor com o material que ele tinha parece menos uma desculpa nesse caso que um resumo conciso de “Green Book”. Ali e seu coadjuvante Mortensen estão entre os melhores atores em atividade hoje; eles consistentemente elevam tudo em que estão envolvidos. Mas mesmo seus talentos lutam para transcender os problemas apresentados pelo material que lhes deram no filme.
Green Book não conta uma história no vácuo. O filme é posto contra uma profunda e complexa história das raças nos Estados Unidos, na qual as repercussões continuam sendo sentidas. Em um tempo em que nosso discurso é muito frequentemente reduzido a ultraje e facilmente taxado com rótulos como “racista” – e o diálogo se acaba – , uma conversa muito mais útil seria colocar um olhar limpo nas histórias que nós gostaríamos de nos contar nos EUA. Pelo padrão, Green Book é uma canção de ninar, quando o que é realmente necessário é um alarme para despertar.
Nas minhas conversas, eu notei uma geração dividida entre assistentes mais velhos amando “Green Book”, enquanto aqueles com menos de 40 anos parecendo mais céticos. Meu senso é que o ceticismo é, em parte, sustentado pela capacidade bem desenvolvida da geração mais jovem de analisar mídia e mensagens com um olhar mais crítico. Aqui estão desvantagens dessa mídia experiente, mas entendendo que quem está controlando a narrativa e suas agendas não é um deles.
Green Book é entretenimento? Sim. O filme efetivamente toca o coração dos espectadores? Sim, seres humanos são feitos para reagir a histórias de reconciliação e conexões cruzadas. Os cristãos não precisam ir além da parábola do Bom Samaritano para provar isso. Os católicos, em particular, dão um grande prêmio a esse fenômeno com o conceito de comunhão. Mas a comunhão alcançada através da manipulação ou do engano não é de modo algum uma verdadeira comunhão.
Talvez a questão mais importante é quanto à representação da amizade de Shirley e Vallelonga. Ela é mesmo verdadeira? Nós não vamos saber ao certo porque as pessoas em que a história se baseia já morreram, ambas em 2013. Nós sabemos que os membros vivos das famílias, em ambos os lados, estão em rígido desacordo, o que faz ser difícil ver Green Book sob a mesma luz.
O perigo é que pela pasteurização da história de uma amizade que cruza fronteiras étnicas e raciais, nós continuamos a anestesiar a nós mesmos para a incrível complexa narrativa de raça nos EUA e recolocá-la com comoventes anedotas simplistas.
É um pouco como dizer que você está preocupado com os impactos ambientais e sociais da agricultura industrial e, em seguida, pedir a salada do cardápio do McDonald's para aliviar sua consciência e se convencer de que está comendo de forma nutritiva. É saboroso? É potencialmente nutritivo? Talvez, mas não vamos nos enganar. A refeição é envolta em camadas infinitas de uma empresa muito maior e mais problemática, para dizer o mínimo.
Em 2019 o negócio dos filmes está em uma batalha pela relevância diferentemente de qualquer coisa que tenha experimentado antes. As vendas de videogames – em um grupo esmagadoramente jovem demograficamente – mais que dobraram a venda de box de filmes. Os protestos #OscarSoWhite em 2015, assim como neste ano que rapidamente lançou-se a ideia de uma categoria de prêmio “Melhor Filme Popular” – para não mencionar essa competição com uma grande quantidade de conteúdos streaming – são indícios do quão fora de alcance e sem respostas a indústria cinematográfica tem se tornado.
O fato de que Green Book foi um candidato muito forte para Melhor Filme deste ano, enquanto filmes como o excelente “Sorry to Bother You”, de Boots Riley, não receberam reconhecimento, me diz que será preciso de mais desculpas nos futuros Oscars.
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Green Book e as histórias que americanos gostam de nos contar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU