12 Novembro 2018
Capital do Pará, a cidade de Belém enfrenta uma guerra entre facções criminosas e milícias comandadas por policiais e ex-agentes de segurança cujo resultado são chacinas e mortes em série. A afirmação é do promotor militar Armando Brasil, responsável do Ministério Público por investigar má conduta de policiais militares a atuação de milícias armadas no Estado.
"Hoje, é normal andar pela cidade e ver corpos pelo chão", diz ele, de 48 anos de idade, 17 dos quais atuando na Promotoria militar.
No final de semana anterior às eleições, 25 pessoas foram mortas na região metropolitana de Belém entre a noite do dia 19 e a manhã do dia 21 - a média diária de mortes em 2017 foi de 2,3 casos.
A entrevista é de Leandro Machado, publicada por BBC News Brasil, 11-11-2018.
Em entrevista à BBC News Brasil, o promotor afirma que Belém vive uma situação "caótica" em meio à briga pelo controle de bairros pobres e do tráfico de drogas.
Entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios no Pará aumentou 96%, subindo de 27,17 para 53,4 mortes violentas para cada 100 mil habitantes. Embora esteja em ligeira baixa neste ano, a taxa cresceu 29% entre 2012 e 2017, durante a gestão do atual governador Simão Jatene (PSDB). São Paulo tem o menor índice do país: 11,10.
Entre as capitais, Belém tem a terceira pior taxa - 67,5 por grupo de 100 mil moradores -, perdendo apenas para Rio Branco e Fortaleza, primeira e segunda colocadas, respectivamente. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Nas ruas de Belém, são costumeiras as notícias de chacinas ou assassinatos de pessoas comuns que apenas passavam pela ruas. "Um bairro sem polícia, com roubos e traficantes, passa a ser ocupado por milicianos que oferecem segurança. A lógica é essa", diz.
No dia 24 de outubro, três dias depois do final de semana violento, oito pessoas morreram e três ficaram feridas quando dois motoqueiros abriram fogo em uma rua do bairro Tapanã, periferia da cidade.
Uma das vítimas era o gari Sávio Miller Silva da Conceição, de 22 anos, que tinha saído de casa para comprar açaí para o filho, segundo relatos de testemunhas.
A chacina ocorreu cinco dias depois do sargento da PM João Batista Menezes Dias ter sido assassinado no mesmo bairro - após o crime, a família do policial precisou fugir da área por sofrer ameaças. A polícia agora investiga se o ataque a pedestres teria sido uma retaliação pela execução do agente.
Essa característica, morte de policial seguida por chacina, é recorrente em grandes cidades do país, como São Paulo e Rio de Janeiro. Agora, também tem se repetido na capital do Pará. Em abril, nove pessoas foram mortas por motoqueiros horas depois do assassinato de um PM.
Nos dias 20 e 21 de janeiro do ano passado, mais uma ocorrência semelhante: 30 pessoas foram executadas horas depois do PM Rafael da Silva Costa ter sido morto com um tiro na cabeça no bairro de Cabanagem, também na periferia.
Em 2015, a Assembleia Legislativa do Pará realizou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as milícias. O relatório apontou que policiais aposentados e também da ativa comandam grupos armados em bairros da periferia.
Segundo o documento, um dos grupos era chefiado pelo policial militar Antônio Marcos da Silva Figueiredo, conhecido como cabo Pet. A quadrilha dele vendia "segurança" particular para comerciantes do bairro do Guamá, um dos maiores de Belém.
Em novembro de 2014, Pet foi assassinado por um grupo de traficantes. Horas depois, mais 10 pessoas foram executadas em suposta retaliação, episódio historicamente conhecido como "Chacina de Novembro".
Por outro lado, a facção Família do Norte hoje comanda o tráfico de drogas na cidade, mas também há relatos da presença do PCC. Segundo o promotor militar Armando Brasil, líderes de facções têm ordenado a morte de PMs de dentro das prisões - matar um policial e roubar sua arma seria uma das portas de entrada do grupo criminoso.
Neste ano, 40 policiais militares do Pará foram assassinados com características de execução ou latrocínio (roubo seguido de morte) - em 2017 foram 49.
Além do consumo interno, o Pará tem se tornado rota de saída de drogas do Brasil. O Estado tem um dos maiores portos do país, em Barcarena, região metropolitana de Belém.
Esse caldo de milícias e facções disputando espaços tem causado centenas de mortes em Belém, diz Armando Brasil. Muitas vezes, afirma o promotor, as vítimas são pessoas comuns sem passagem pela polícia.
Em contraponto, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará afirma que os homicídios diminuíram 5% em 2018 em comparação com o ano passado. De janeiro a 6 de novembro no ano de 2017, houve registros de 3.263 casos no Estado. Já em 2018, o número foi de 3.166 ocorrências.
O governo do Estado afirma, ainda, que "tem trabalhado fortemente para coibir a criminalidade no Estado com ações preventivas, repressivas e de investimentos". Diz que, neste ano, 2.849 novos policiais militares e 616 policiais civis entraram em serviço.
Cresceu muito a taxa de homicídios em Belém e no Pará como um todo. Qual o papel das milícias nesse contexto?
As notícias não são nada animadoras. Nos últimos cinco, seis anos, o governo do Estado [do governador Simão Jatene, do PSDB] ficou marcado pela condução omissa da segurança pública, na minha opinião. Isso foi combustível para que grupos de milicianos e de traficantes tenham se instalado nas regiões e disputado pontos de venda de drogas.
As milícias ganharam poder em razão dessa ausência do Estado nos bairros mais pobres. Se o Estado não ocupa os espaços públicos da forma devida, se não oferece segurança para a população, se não faz policiamento em áreas com muitos roubos, os milicianos passam a oferecer esses serviços.
Um bairro sem polícia, com roubos e traficantes, passa a ser ocupado por milicianos que oferecem segurança. A lógica é essa.
E eles cobram pela segurança...
Sim, as milícias obrigam comerciantes a pagar uma taxa pela suposta segurança que oferecem. Quem não paga pode sofrer retaliações, tornar-se vítima de assaltos ou até ser morto. Os comerciantes pagam para a milícia por uma suposta proteção.
Havia um grupo em Belém comandado pelo cabo Pet, bastante atuante no bairro do Guamá. O comerciante até ganhava uma placa para colar na porta: 'protegido pelo cabo Pet'.
Quem quisesse assaltar um estabelecimento sabia que podia ser morto por ele. As milícias surgem nesse sentido também, para eliminar os supostos bandidos de forma violenta.
O cabo Pet virou uma espécie de símbolo dessa ascensão das milícias. Qual a importância dele?
O cabo Pet era da Rotam [grupo de eleite da PM do Pará]. Também trabalhou na Força Nacional de Segurança, era bem conhecido na cidade. Ele tinha uma empresa que vendia câmeras de vigilância, junto com outro policial.
Então ele começou a oferecer segurança armada para os comerciantes. Depois, entrou no tráfico de drogas também. Ele foi uma espécie de precursor das milícias como conhecemos em Belém. Ele acabou assassinado.
Em alguns casos, os milicianos assumem o papel do traficante e passam a comercializar as drogas na área. As milícias também obrigam os moradores a comprar seus serviços, como gás e TV a cabo ilegal.
E elas são formadas por quem?
Por agentes das forças de segurança, da ativa e aposentados. Mas há também civis, empresários. No fim do ano passado, fizemos uma operação que desmontou uma milícia no bairro da Pedreira, era uma das mais violentas. Entre os donos da milícia havia um empresário do ramo de autopeças.
Mas qual a amplitude das milícias hoje em Belém?
Elas estão em praticamente todos os bairros pobres da região metropolitana. Dividem o controle do território com os traficantes.
Hoje, Belém vive uma guerra entre esses dois lados, milícias e traficantes. Quem vence a batalha, ocupa o território e implanta sua política de venda de drogas e de serviços. A situação é insustentável.
Essa guerra tem feito as pessoas perderem a coragem de sair de casa à noite, elas têm medo de serem assassinadas na rua por algum motoqueiro ou ocupante do chamado "carro prata". Existe essa lenda do "carro prata" em Belém, quando ele aparece, as pessoas são mortas.
Há uma situação de pânico entre a população, principalmente na periferia. A vida social diminuiu muito, os bares e restaurantes ficam vazios à noite. Você anda pela cidade e é normal ver corpos pelo chão, uma coisa horrorosa.
Mas já não era assim nos anos 1990? Há relatos de milícias naquela época.
Havia grupos de extermínio, mas não com a força que as milícias atuam hoje em Belém. Nos anos 1990, um grupo se revoltava com um bandido, se reunia e o matava. Mas parava aí, não era estruturado para dominar um território, um bairro inteiro. Não era o que a gente hoje tipifica como milícia armada.
Os jornais e sites locais têm relatado mortes aparentemente sem explicação. Uma pessoa sem vínculo com o crime, uma pessoa comum, está andando na rua e é assassinada a tiros.
Sim, isso tem ocorrido, não só na periferia. Moro em um dos bairros mais ricos da cidade e, na semana passada, uma pessoa foi morta exatamente nessas circunstâncias.
Um carro prata chegou com dois homens encapuzados. Eles desceram e fizeram os disparos. A vítima era um vigilante particular. Isso aconteceu às 15h. Qual a explicação para isso? É uma situação caótica.
Por outro lado, o Pará tem registrado um número alto de mortes de policiais militares.
Só nesse ano, foram 40 militares mortos, um dos maiores números do Brasil.
As facções criminosas tem ordenado a morte de PMs de dentro das prisões. A informação que temos é que quem mata um policial e leva sua arma, a pistola .40, consegue entrar na facção. Matar policial é uma porta de entrada.
Às vezes, horas depois de mortes de policiais, ocorrem chacinas no mesmo bairro onde o agente foi assassinado. O senhor acredita que as chacinas sejam vinganças?
Nós não podemos afirmar com certeza que exista essa relação. Até porque a taxa de resolução de homicídios no Pará é baixíssima, sabemos muito pouco quem são os assassinos. É possível que existam retaliações, sim, há indícios para isso. Mas não podemos provar ainda.
No caso da chacina de Tapanã, na semana passada, um sargento foi assassinado e a família dele foi obrigada a sair do bairro dias depois. Isso causou uma certa ofensa aos policiais. Quatro dias depois, oito pessoas foram mortas na rua.
Há um conflito conhecido entre facções no Brasil, principalmente entre as maiores, PCC e Comando Vermelho. Como isso tem afetado Belém?
Brasil - Em Belém, temos a Família do Norte, que também atua em outros Estados da Região Norte. Essa facção é uma espécie de filial do Comando Vermelho, do Rio.
A situação de miserabilidade e de desemprego em Belém, onde a pobreza é muito grande, faz com que muitos dos nossos jovens entrem para o crime. Eles acabam entrando em facções que vieram do Rio e de São Paulo.
Na área rural do Pará, há fortes indícios da participação de milícias em conflitos por terra. Em 2017, houve a chacina de Pau D'Arco, quando 10 militantes sem-terra foram mortos e 17 policiais foram acusados pelo crime.
Essa é uma questão histórica do Pará. Nos anos 1970, já havia policiais que vendiam segurança armada para fazendeiros. Os agentes são contratados para expulsar quem invade terra desses fazendeiros. Então, isso ocorre mesmo.
O que senhor acha que deveria ser feito para diminuir essa guerra?
Investir em investigação, ter instituições fortes e comprometidas com o combate ao crime. O governador eleito, Hélder Barbalho [MDB], disse que vai pedir ajuda da Força Nacional de Segurança. Sou a favor, pelo menos para iniciar alguma reação.
Nesse ano, pedi ao governo a proteção de um quilombola que estava sendo ameaçado em Barcarena [região metropolitana de Belém]. Ele não recebeu proteção nenhuma. Meses depois, foi assassinado. [Paulo Sérgio Almeida Nascimento, de 47 anos, denunciava crimes ambientais em Barcarena. Foi morto a tiros em 12 de março].
Nós, no Ministério Público, fazemos o que está ao nosso alcance.
Quantas pessoas investigam as milícias hoje no Ministério Público?
No Ministério Público Militar, apenas eu.
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Chacinas no Pará: "Hoje, é normal andar pela cidade e ver corpos pelo chão", diz promotor que investiga assassinatos em Belém - Instituto Humanitas Unisinos - IHU