02 Novembro 2018
"Democracia nossa de cada dia, infectada e enferma. Igualitária quanto aos votos depositados na urna, mas abissalmente díspar no que diz respeito à distribuição da riqueza produzida. Democracia que, ao longo da história, baniu as dinastias do poder, abrindo as portas a novas oportunidades. Ao mesmo tempo, porém, deixou inalterável as dinastias dos bens e da renda", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais.
Além da novela da rede Globo e da ilusão do personagem Ulisses na obra de Homero, há uma sereia que hoje representa uma tentação à democracia. Desta vez, não vem das águas do mar, mas do status quo de quem habita as fortalezas contemporâneas da riqueza acumulada num grau sem precedentes. Fortalezas erguidas pela renda do capital, pela exploração da força do trabalho humano e dos recursos naturais, bem como pelo patrimônio cultural de toda humanidade. Por trás dos muros de tais fortalezas, reina o luxo, o consumo ilimitado e a ostentação. Mas reina, de igual modo, uma indiferença nunca vista por aqueles que penosamente rastejam do lado de fora dos muros, pelas condições climáticas do meio ambiente, pela diversas formas de vida (biodiversidade) e pelas gerações futuras.
Nas pesquisas, nos estudos, nas análises e nas estatísticas, os números convergem. Nas últimas 5 décadas, fortemente marcados pela crise que inicia com os anos de 1970, a técnica, o progresso e o crescimento econômico favoreceram desmedidamente o andar de cima da pirâmide social. A economia globalizada de corte liberal, de modo particular o capital financeiro, infectados pelo vírus do lucro pelo lucro, agravaram as injustiças, as assimetrias e as desigualdades sociais. Enquanto os estratos médios viram-se sacrificados, aprofundou-se drasticamente a distância entre o punhado de poderosos ricos e a enorme massa dos pobres, seja em nível nacional e regional, seja em nível internacional. As fortalezas convivem lado a lado com os casebres e favelas, enquanto os serviços públicos tornaram-se parcos e precários, diante do rendimento dos gigantescos conglomerados empresariais.
De um lado, no imenso cassino mundial, o capital volátil joga com milhões, bilhões e trilhões. Voa de um país a outro, sem qualquer respeito pelo rastro de fome e de cadáveres que deixa pelo caminho. De outro, os deserdados do planeta disputam os centavos que sobram do banquete.
Disputam-nos como errantes que giram, eles também de um lugar a outro. Migrantes em marcha atrás de migalhas na divisão da terra e do trabalho, na educação e na saúde, no transporte e no saneamento básico, no alimento e na moradia…. Enfim, de uma sobrevivência cada vez mais difícil e provisória.
Democracia nossa de cada dia, infectada e enferma. Igualitária quanto aos votos depositados na urna, mas abissalmente díspar no que diz respeito à distribuição da riqueza produzida. Democracia que, ao longo da história, baniu as dinastias do poder, abrindo as portas a novas oportunidades. Ao mesmo tempo, porém, deixou inalterável as dinastias dos bens e da renda. Os patrimônios permanecem sagrados, como heranças intocáveis de pai para filho, independentemente de como tenham sido acumulados. Regime capaz até de suportar determinadas alternativas de pilotagem, desde que esteja garantida a segurança das fortalezas. Democracia que navega com relativa tranquilidade nas ondas, espumosas mas inofensivas, das disputas políticas; contudo, não ousa mergulhar nas correntes subterrâneas da economia. Na superfície aparente as águas se agitam, sem dúvida, mas nada se compara ao ímpeto e ao impacto devastadores das torrentes profundas onde imperam as leis cegas e férreas do sistema capitalista.
Semelhantes leis da economia globalizada, real ou virtual, acabam contaminando não somente o processo eleitoral, mas também o mandato legitimado pelas urnas. Um e outro encontram-se inextricavelmente subordinados ao poder econômico. Desse modo, a dinastia da renda e da riqueza acaba por refazer uma espécie de dinastia do comando, desde a campanha até o governo efetivo. Com o força do dinheiro, renascem e se fortalecem “os donos do poder”, para usar a expressão de Raymundo Faoro. A pergunta aqui é simples: diante do mercado total e global, qual a margem de manobra dos candidatos eleitos? Que pode fazer o governo para mudar os rumos de uma nação endividada, por exemplo? Que tipo de política econômica será capaz de pavimentar de modo real e eficaz? Poderá implementar políticas sociais em favor da população pobre, no sentido de uma verdadeira distribuição de renda?
Soa então, melodioso e tentador, o canto da sereia. A inércia da direita conservadora. O melhor é dançar de acordo com seu ritmo suave e encantador. Hoje em dia, a sereia vem avançando rapidamente pelas mais diversas partes do planeta. Daí as alianças pela governabilidade, as quais, tendem a levar em conta as dívidas contraídas durante a ascensão às escalas do trono, em lugar de ouvir as reivindicações dos movimentos sociais e das organizações de base, enfim, do empoderamento popular.
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O canto da sereia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU