03 Outubro 2018
Manifestações gigantescas foram muito além do #elenão e sugerem que há, nas ruas, enorme potência repolitizadora – não captada pelos partidos. Como articulá-la?
O artigo é de Antonio Martins, jornalista, publicado por Outras Palavras, 01-10-2018.
A multidão que se uniu contra o fascismo, no sábado, foi imensa e ubíqua. Centenas de milhares em São Paulo, Rio, Salvador, Recife, Belo Horizonte, Manaus e tantas outras capitais. Passeatas como há muito não se via em cidades médias de quase todos os Estados. Presença de grupos importantes mesmo nas ruas de muitas localidades menores. Sons e cores do Brasil em capitais do mundo, sugerindo que, depois de dois anos de infâmia, o país pode voltar a ter presença internacional importante. A multidão autoconvocou-se rapidamente pela internet, para lembrar que a rede, mesmo em tempos de vigilância, precisa ser disputada e pode ser ferramenta indispensável de convocação. Em duas semanas, um chamamento lançado por poucas mulheres – porém, capaz de dialogar com o desejo político de muit@s, articulou o que foi, de longe, a manifestação mais numerosa e mais importante e da campanha eleitoral.
A multidão foi alegre, criativa, irônica, muitas vezes mordaz. O ódio, os berros e vociferações, tão constantes entre os que vestem o amarelo, são expressões de quem tenta bloquear o inesperado provocando medo – e se defende cercando-se de privilégios, normalidades e passados. Mas a irreverência é a arma afiada d@s que zombam das misérias do presente, pois apostam que podem construir outros futuros. Por isso, a multidão cantou, dançou, beijou-se, inventou coros e músicas.
A multidão foi diversa e plural, porém tinha lado. Em São Paulo, as centenas de milhares de pessoas reunidas no Largo da Batata não eram uma massa informe, reunida para ouvir um grande líder. Pareciam muito mais um organismo vivo, composto de incontáveis grupos políticos, coletivos, turmas de amigos ou colegas, famílias (não eram raros os bebês de colo). Muita gente havia chegado em cortejos, que percorreram a cidade com a leveza dos blocos de carnaval. Todos puderam expressar-se – como muitas vezes não se vê inclusive nos atos da esquerda. Diante da ausência de caminhões de som, tonitruantes e silenciadores, emergiu a voz dos cartazes, dos corpos pintados, das vestes com cores e desenhos alusivos a causas. Não uma plateia passiva, mas centenas de milhares que não cessaram – e não cessarão, nas próximas semanas – de inventar formas múltiplas de dizer #elenão ao fascismo.
A multidão quis dizer algo que vai além dos partidos. Militantes de agremiações diversas participaram com suas bandeiras e símbolos – e foram acolhidos como tod@s. Mas eram poucos e souberam diluir-se na massa. Porque não se tratava de manifestar adesão a quem supostamente nos representa, mas de expressar diretamente desejos e projetos.
A multidão foi autônoma e horizontal, mas com claro sentido de estratégia política. Não havia lideranças, nem causas prioritárias. Tod@s eram iguais: dos coletivos feministas que convocaram o ato aos sindicatos, aos lutadores pela diversidade sexual,aos ambientalistas, aos jovens – vastíssima maioria –, aos ciclistas. Porém, esta ausência de hierarquia não gerou caos nem diluição. Os inúmeros grupos e pessoas presentes, ligados a múltiplas causas transformadoras, haviam definido de antemão que todas estas devem, no momento, dar prioridade a uma outra, comum: derrotar a ameaça fascista, sem o quê não haverá país respirável.
A multidão foi profundamente feminista, ao agir orientada por valores como a colaboração, o cuidado, a partilha – em vez da disputa, da violência ou do rivalismo. Ninguém enfrentou-se por um microfone ou um lugar no palanque. Nenhum carro de som elevou o volume dos alto-falantes para que as falas de seus ocupantes encobrissem as dos demais. Nenhuma central sindical posicionou seus balões em espaço mais visível que os das outras. A ausência de hierarquias permitiu que, no mesmo plano e transitando pelos mesmos espaços, os que apoiam diferentes causas ou se orientam por distintas sensibilidades políticas pudessem se enxergar, interagir, confraternizar.
A multidão foi intensamente política. As causas presentes compõem o mosaico de outro país possível. Um país que trate como iguais as mulheres e que acolha as múltiplas expressões do amor e da sexualidade. Um país em que a vida digna seja um direito assegurado por políticas e serviços públicos – não uma mercadoria cada vez mais cara, que se vende a quem possa pagar. Um país em que trabalhar não seja martírio e em que a lei não estimule a brutalidade dos patrões. Um país de cidades sem cercas e catracas, livre da ditadura do automóvel e do cimento. Um país descolonizado, que projete no mundo seus valores sem arrogância, mas sem voltar à condição de quintal; e que não regrida à categoria submissa de produtor de minérios e commodities agrícolas.
Há muitos anos, os partidos deixaram de liderar a luta por tais causas, tão políticas. Reduziram-se – inclusive os de esquerda – à condição de máquinas eleitorais. Relacionam-se com os cidadãos como vendedores de um produto. No Brasil, são distintos produtos, é verdade – e por isso, as eleições já eram importantes antes deste ano, quando elas serão a chave ou para a possível reversão do golpe de 2016, ou para sua continuidade e aprofundamento. Porém, ficaram para trás os tempos em que os partidos refletiam, formulavam, debatiam e mobilizavam pela transformação social.
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A multidão, que deu ontem novo rumo e novo clima à disputa eleitoral, mostrou que este lugar não precisa permanecer vazio: ele pode ser ocupado pela rua. Não foi, é claro, a primeira vez em que isso ocorreu, desde o golpe e o início da onda de grandes retrocessos. Em 2016, as ruas se encheram de gente que protestava contra a deposição arbitrária de Dilma e a tomada do poder pelos não-eleitos; porém, esvaziaram-se a partir do meio do ano, quando a disputa pelas eleições municipais dividiu os manifestantes e os subordinou à agenda dos candidatos. Em 2017, duas greves gerais extravasaram a dinâmica dos sindicatos e se converteram em protestos populares generalizados. Em março deste ano, as ruas voltaram a se autoconvocar e se abarrotar de gente, em protesto contra o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.
A multidão, que agora se propõe como personagem central da luta contra o fascismo, poderá ser também, a partir de 2019, ator decisivo para reverter os retrocessos, resgatar a democracia e os direitos, ensaiar o desenho de um novo país? Numa conjuntura em que Congresso, mídia e Judiciário manterão ser caráter ultraconservador, e em que um eventual governo de esquerda firmará os acordos previsíveis, as ruas saberão ser o contraponto? Como oferecer respostas tão potentes como as de ontem, em situações muito mais complexas? Como estabelecer algum tipo de articulação entre sujeitos políticos tão diversos, e ao mesmo tempo tão unidos por valores comuns? Da resposta a estas perguntas dependerá, em grande medida, nosso futuro comum.
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