13 Setembro 2018
"Através de um simples convite, fazer deste mero forasteiro um novo conhecido, um irmão, partilhando com ele o teto e a mesa. Chamá-lo a fazer parte de nossa roda de conversa, de nosso grupo de amizade e lazer, de nossos momentos de convivência, de descontração e de festa. Dividir com ele as “alegrias e esperanças, angústias e tristezas”, comungando do mesmo alimento e da mesma esperança. Reconhecer que somos todos estrangeiros pelas estradas do mundo, a caminho da pátria definitiva", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais.
Fácil virar o rosto, torcer o nariz, exibir a fachada do tédio e da arrogância, ou pura e simplesmente atravessar a rua para não encontrá-los face a face. Fácil dirigir um olhar oblíquo, atravessado, intransigente, de forma turva ou com ar de superioridade, medi-los de alto a baixo, velando e desvelando uma indisfarçável atitude de desprezo. Fácil fechar-se num hermetismo gélido e venenoso, ignorá-los com indiferença, fazer de conta que sequer existem como seres humanos. Fácil desconhecer sua passagem, como se fossem um bando de extra-terrestres, perdidos e errantes, sobre a face do planeta. Fácil reunir um grupo hostil e xenófobo, esconder a covardia na voz uníssona do coro, e gritar: “Que fazem aqui negros, não precisamos de vocês, voltem para o lugar de onde foram desenterrados!”...
Mais difícil é compreender por que se encontram deste lado do Mediterrâneo, este lado que é o “nosso” e não o “deles”? Por que deixaram sua terra natal, familiares e amigos, arriscando a vida na travessia das águas bravias? Por que ofereceram seus últimos centavos, pagando os traficantes com o sonho de alcançarem a margem oposta do mar que conduz ao suposto Eldorado? Por que, aparentemente inermes, sem raiz e sem destino, percorrem as ruas de nossas cidades em busca de uma moeda, de um pedaço de pão, de uma oportunidade de trabalho, ou de um lugar que possa servir de “endereço”? Mas também em busca de um olhar aberto, de um sorriso largo, de uma palavra amiga, de um toque de esperança, de uma janela voltada para o céu azul, de uma porta por onde recolher os pedaços do sonho quebrado, e recomeçar...
Muito mais difícil é olhá-los nos olhos, cara a cara, predispor-se ao encontro e ao diálogo, aceitar o confronto de ideias, visões, costumes e valores. Trocar um caloroso abraço, escutar suas histórias, “perder tempo” com a tradição de suas expressões culturais e religiosas, estender a solidariedade às suas feridas e cicatrizes, entrelaçar seus saberes com os nossos, deixar-se interpelar pela novidade de quem chega de fora. Fazer do encontro uma encruzilhada recíproca, no sentido de buscar alternativas ao modo de viver e relacionar-se neste mundo que se globaliza e, ao mesmo tempo, instiga e destila intolerância...
Quase impossível é abrir-lhes a porta do coração, da casa e da comunidade, familiar ou eclesial. Através de um simples convite, fazer deste mero forasteiro um novo conhecido, um irmão, partilhando com ele o teto e a mesa. Chamá-lo a fazer parte de nossa roda de conversa, de nosso grupo de amizade e lazer, de nossos momentos de convivência, de descontração e de festa. Dividir com ele as “alegrias e esperanças, angústias e tristezas”, comungando do mesmo alimento e da mesma esperança. Reconhecer que somos todos estrangeiros pelas estradas do mundo, a caminho da pátria definitiva...
O que parece impossível aos seres humanos, porém, Deus o torna improvisamente possível. “Armando sua tenda entre nós”, o Filho revelou que um só é Pai e Mestre, e que, se o Pai é único, também o é o “pão nosso de cada dia”. Que somos todos irmãos e irmãs, e que fronteira alguma pode separar aqueles que buscam o Reino dos Céus. Que, como Maria de Nazaré, se estivermos dispostos a abrir o coração e a alma ao projeto de Deus, Ele “faz em nós maravilhas que serão para sempre lembradas e celebradas de geração em geração”. Inverte o rumo da história, “derrubando os poderosos dos tronos e exaltando os humildes”.
O projeto divino de luz, amor e paz; perdão, misericórdia e sabedoria – longe de realizar-se somente após a morte – começa hoje, aqui e agora. Tem início em cada momento presente, como tempo kairológico, certo, dinâmico e oportuno. Sua plenitude está reservada para além da trajetória humana, sem dúvida, mas sua construção cotidiana, tem lugar não acima ou fora da história, e sim no interior mesmo de seus embates e de suas coordenadas, no ato mesmo de tecer fatos, atitudes, relações, comportamentos. Por isso é que acolher o estrangeiro que bate à porta é deixar irromper em nossa existência a vontade de Deus.
Ele, o estrangeiro, nos conduz ao total e absolutamente Outro, Insondável e Desconhecido. Disso resulta que o migrante, movido pela fé e pela esperança, marcha e faz marchar o ritmo da história. Seu movimento irrequieto rompe fronteiras, questiona e interpela o status quo, descortina horizontes para novas e diferentes alternativas. Profeta, artífice e protagonista de um amanhã sempre recriado.
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Migrantes: forasteiros e irmãos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU