14 Agosto 2018
Sobre distopias, autoengano e a perspectiva de um futuro fracassado.
A entrevista é de Álvaro Kassab, publicada por Jornal da Unicamp e reproduzida por EcoDebate, 13-08-2018.
“Nosso futuro afigura-se, com toda a probabilidade, catastrófico. É preciso admitir que estamos funcionando mentalmente à base de autoengano. É preciso encarar de frente as evidências”. O alerta, feito pelo historiador Luiz Marques, estará no centro dos debates do “Seminário Internacional Degradação socioambiental, catástrofe e distopias”, que acontece dias 13 e 14 de agosto na Unicamp.
O evento, que é organizado por Marques, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), e por Carlos Eduardo Berriel, docente do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), reunirá intelectuais de diferentes áreas do conhecimento, abrigando mesas que vão abranger um amplo leque de temas. “Apesar do risco de que tal heterogeneidade suscite fricções e talvez alguma cacofonia, a aposta de base é que a diversidade de perspectivas é intelectualmente produtiva”, afirma Marques.
O professor Carlos Eduardo Berriel: “No século XX a distopia tornou-se dominante, enquanto a utopia desapareceu” | Foto: Unicamp
“Dada a gravidade extrema e a pluralidade de aspectos das crises ambientais, nenhum saber isolado tem abrangência compatível com o caráter totalizante e globalizante dessas crises”, completa o docente, colunista do Jornal da Unicamp e autor, entre outras obras, do livro Capitalismo e Colapso ambiental (Editora da Unicamp), premiado com o Jabuti em 2016.
Marques refere-se a um quadro que, em suas palavras, resultará em “um colapso socioambiental inevitável”. Não à toa, no texto de apresentação do seminário, há uma declaração de Kevin Anderson, vice-diretor do Tyndall Centre for Climate Change Researchal: “Estamos conscientemente enveredando em direção a um futuro fracassado”.
O professor Luiz Marques: “Perto dos cenários projetados pela ciência, os cenários imaginados pela ficção parecem cada vez mais tímidos” | Foto: Unicamp
E qual o lugar das distopias nesse cenário de terra arrasada? “Adistopia diz antes as mais graves questões de nosso tempo. Essa é sua importância”, observa Berriel, autor do livro Tietê, Tejo e Sena – a obra de Paulo Prado, idealizador do seminário e coordenador do U-TOPOS, Centro de Estudos sobre Utopia, cujas pesquisas, desenvolvidas no IEL, tornaram-se referência no país.
Qual é o objetivo do seminário?
Luiz Marques – O seminário surgiu de uma ideia do professor Carlos Eduardo Berriel, diretor do U-TOPOS, Centro de Estudos sobre Utopia do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). O professor Berriel é responsável pelo caráter internacional dessa iniciativa, à qual eu me associei com muito entusiasmo, porque compartilhamos, com muitos de nossos colegas, as mesmas preocupações. Decidimos, assim, que o encontro será aberto no IEL e encerrado no IFCH, nos dias 13 e 14 próximos. Como já seu título o explicita, seu objetivo é afirmar que nosso futuro afigura-se, com toda a probabilidade, catastrófico e que é preciso admitir que estamos funcionando mentalmente à base de autoengano. É preciso encarar de frente as evidências.
Quais seriam?
Luiz Marques – Dado o poder das petroleiras e demais corporações, bem como dos Estados a elas umbilicalmente ligados, a chance de que as emissões de gases de efeito estufa diminuam significativamente no próximo decênio são praticamente nulas, quando sabemos que elas já deveriam estar caindo rapidamente e estar zeradas até 2040, para conservarmos probabilidades significativas de manter a temperatura do planeta abaixo de níveis catastróficos de aquecimento.
Tal como o Protocolo de Kyoto, também o Acordo de Paris, os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e demais acordos internacionais em prol da conservação da biodiversidade terrestre e marítima não estão a caminho de atingir, nem de perto, suas metas. Esse seminário tem, portanto, o objetivo de contribuir, na medida de suas possibilidades, para um sobressalto das consciências acerca das ameaças que pesam sobre nosso presente e nosso futuro.
O encontro reúne cientistas de diferentes áreas, com temas que vão de Darwin a Maio de 68, passando por diferentes dimensões das crises socioambientais, da econômica à política. Quais foram os critérios que nortearam as escolhas dos nomes e seus respectivos temas?
Luiz Marques – Em face das crises socioambientais extremamente graves de nossos dias, e da necessidade de elaborar respostas a elas, pareceu-nos imprescindível colocar em contato pessoas de saberes, experiências, sensibilidades, linguagens e horizontes de pesquisa muito diferentes, desde cientistas a estudiosos do imaginário literário e visual. Apesar do risco de que tal heterogeneidade suscite fricções e talvez alguma cacofonia, a aposta de base é que a diversidade de perspectivas é intelectualmente produtiva. Dada a gravidade extrema e a pluralidade de aspectos das crises ambientais, nenhum saber isolado tem abrangência compatível com o caráter totalizante e globalizante dessas crises, e não é capaz de avaliar o alcance material, cultural e mesmo espiritual de suas consequências.
O texto de apresentação do seminário destaca que, “embora o imaginário do século XX, reminiscente por vezes de tradições escatológicas, tenha cultivado uma rica vertente distópica, a perspectiva de um futuro fracassado nunca havia sido formulada pelo consenso científico”. O sr. poderia falar sobre essa perspectiva e da dimensão desse consenso?
Luiz Marques – O que se nota, de fato, é que o imaginário distópico dos séculos XIX e XX foram, como não poderia deixar de ser, tributários seja da riquíssima tradição escatológica judaico-cristã, seja da ideia de “cansaço” e de declínio da natureza, recorrente na tradição clássica desde Homero e Hesíodo. O que se nota nos últimos decênios, entretanto, é que a ciência vem se somando às expectativas de um unhappy end de nossas sociedades ainda no horizonte deste século. Não porque essas tradições escatológicas ou porque as tendências irracionalistas contemporâneas tenham “contaminado” a ciência, como disso a acusam seus detratores e os chamados “mercadores de dúvidas”, fomentados pelas corporações.
A ciência emite prognósticos a partir de um acúmulo rigoroso e consistente de dados, modelos e análises das coordenadas do sistema Terra e esses prognósticos, sóbrios em suas formulações, são não raro mais sombrios que as mais assustadoras ficções de antecipação. Basta lembrar aqui um exemplo. Um aquecimento médio global de 3°C acima do período pré-industrial, que é, mantida a trajetória atual, a mais otimista projeção para este século, significa o fim das florestas tropicais e a conversão em savana do que resta da floresta Amazônica, pela ação combinada de secas e incêndios, com adicional liberação de CO2 na atmosfera. Há mais de 10 anos, em 2007, James Hansen alertava para o fato de que tal nível de aquecimento conduziria à ultrapassagem de pontos críticos no sistema Terra, além dos quais há alta probabilidade de uma transição para temperaturas ainda mais altas. Perto dos cenários projetados pela ciência, os cenários imaginados pela ficção parecem, em suma, cada vez mais tímidos.
Outro ponto destacado na apresentação – e que também seria inédito – é que “esse consenso tem sido objeto de vários graus e estratégias de denegação, com crescente resistência política, ideológica e psicológica à ciência e a seus alertas”, inclusive de setores “com maior educação formal”. A que o sr. atribui essa resistência e quais são, em sua opinião, suas consequências?
Luiz Marques – É muito difícil e penoso para a sociedade admitir o fracasso puro e simples de nosso modelo econômico e civilizacional. A tendência é continuar a pensar segundo o paradigma do crescimento econômico e dos “milagres” criados pela revolução tecnológica permanente a que estamos habituados desde ao menos o Iluminismo e advento do capitalismo industrial no século XVIII. Economistas continuam a pensar como manter o crescimento econômico, cientistas e engenheiros são formados para “resolver problemas”, são problem solvers, cientistas sociais pensam e agem em prol de programas políticos mais aptos a distribuir melhor a riqueza, de modo a minorar as desigualdades e injustiças sociais, algo que permanece, obviamente e mais que nunca, necessário.
Mas o que muitos ainda não percebem é que pela via atual não resolveremos mais nossos problemas e não nos aproximaremos mais desses objetivos. Ao contrário, começaremos em breve – na realidade, em parte já começamos – a nos distanciar aceleradamente deles. São demasiado poucos ainda os que entendem que o grau insuportável de interferência antrópica no sistema Terra tornou anacrônica a farmacopeia das soluções propugnadas pela economia, pela ciência e pela política.
Um exemplo gritante dessa incompreensão é a ausência da questão ambiental no debate eleitoral no Brasil e mesmo em âmbito internacional. Os cientistas estão roucos de gritar que estamos próximos de superar pontos críticos, além dos quais nossa civilização, qualquer civilização, torna-se inviável. Mas suas advertências são duras de ouvir e é, portanto, compreensível, embora não justificável, que tais mensagens encontrem tantos ouvidos moucos.
Além disso, não se há de subestimar a capacidade das corporações de abafar o debate sobre as crises socioambientais, tal como ainda continuam a fazer em relação aos malefícios do cigarro, dos agrotóxicos etc. Enfim, é importante lembrar o espaço desproporcionalmente pequeno que a grande mídia reserva a esses alertas científicos, dependente que é da publicidade dessas corporações.
Nesse quadro, qual o lugar das distopias? Como elas se manifestam?
Carlos Berriel – A distopia é um galho da grande árvore da utopia, pois paradoxalmente compartilham de elementos comuns. Há em toda utopia um elemento distópico, e vice-versa. A utopia, uma obra e gênero criados por Thomas More em 1516, se caracterizava pela criação de uma sociedade imaginária num lugar inexistente, porém conectada ao mundo real por serem o seu contrário, a sua visão especular. Os graves problemas da sociedade do autor utopista vinham resolvidos, como projeto e programa, nesta sociedade fictícia. As utopias eram marcadas, portanto, pela época de seu autor, sendo portanto datadas.
O elemento distópico – isto é, negativo – das utopias estava em que elas eram engessadas pelo seu tempo, pois se suas soluções eram “perfeitas”, não poderiam portanto serem aperfeiçoadas ou mesmo modificadas. A utopia era imediatamente u-cronias, isto é, sociedades estáticas, sem tempo. Aí está a distopia, o pesadelo social.
Quando a distopia se torna praticamente um gênero em si mesmo – talvez com Frankenstein, de Mary Shelley (1818) – há uma marca original: um elemento da sociedade real, uma ameaça em estado latente, é dilatado ao ponto de representar uma ameaça mortal para esta sociedade. Tendo como exemplo o mesmo Frankenstein, temos que uma ciência avançadíssima, porém desprovida de uma ética que a controle, gera monstros.
Pensemos na bomba atômica, nos agrotóxicos, etc. No século XX a distopia tornou-se dominante, enquanto a utopia desapareceu. O Estado totalitário, mantido pelo controle das mentes e pela universal vigilância dos indivíduos, está em 1984, de George Orwell. A destruição do planeta está em tantos filmes, como Blade Runner, que mostra também como a humanidade pode ser substituída por criaturas artificiais: quantos de nós já perderam o emprego para um robô? Então, a distopia diz antes as mais graves questões de nosso tempo. Essa é sua importância.
Rio Tietê no município paulista de Pirapora (Foto: Unicamp)
Prof. Luiz Marques, a concentração do poder econômico e político é tema recorrente em artigos e trabalhos de sua autoria. Em que medida as distorções do capitalismo, entre aquelas estudadas pelo sr., são uma ameaça à democracia?
Luiz Marques – O capitalismo define-se por um ordenamento jurídico assente sobre a premissa de que as decisões estratégicas de investimento econômico pertencem aos proprietários do capital. Os boards que controlam as corporações e os grandes investidores nos mercados de capitais decidem o destino desses investimentos em função de sua expectativa de rentabilidade. Os investimentos já feitos na produção de mercadorias ou commodities, tais como combustíveis fósseis, plásticos, soja, óleo de palma, carne e outros produtos que estão desequilibrando o clima e destruindo a biodiversidade do planeta são da ordem de trilhões de dólares.
A maximização do retorno a médio e longo prazo desses investimentos na forma de lucros é a razão de ser deles e é algo a que os investidores jamais estariam dispostos a renunciar. Além disso, enquanto esses produtos oferecerem uma rentabilidade potencialmente atrativa, sua produção continuará a aumentar em decorrência de novos investimentos. Dado que, como dito, os investimentos de capital permanecem no capitalismo um direito inalienável de seus proprietários e dado que estes se guiam por sua rentabilidade, é claro que há uma incompatibilidade crescente entre os interesses vitais da sociedade, que necessitam deter esses processos ambientalmente deletérios, e os interesses vitais das corporações, que necessitam manter a rentabilidade de seus investimentos.
O terreno de confronto desse antagonismo de interesses é, na tradição democrática, o sistema político, vale dizer, o Estado e as organizações da sociedade civil – partidos, sindicatos, ONGs, movimentos etc – que com ele compartilham o poder. Ocorre que é crescentemente desfavorável para as sociedades a relação de forças entre, de um lado, os grupos que entendem a necessidade de desacelerar a degradação socioambiental e, de outro, as corporações e a alta burocracia do Estado por elas controlada, interessadas em manter o business as usual. De onde observarmos a ineficácia dos Acordos internacionais e a regressão generalizada da democracia, fenômeno particularmente acentuado no Brasil, onde o Congresso nacional é quase totalmente controlado por grupos de interesses econômicos e por bancadas extremamente conservadoras.
Na condição de historiador e ao mesmo tempo de autor de trabalhos de referência – e premiados – na área ambiental, qual o seu prognóstico do que está por vir? O colapso é inevitável? O que pode ser feito para evitá-lo?
Luiz Marques – Sim, mantida a atual trajetória, e nada indica que esta sofrerá em breve uma inflexão relevante, um colapso socioambiental é inevitável. Esse é o prognóstico consensual da ciência. Não sabemos ainda quando ele sobrevirá e a forma histórica que ele assumirá. Mas é crescente a percepção de que ele deve nos surpreender antes, ou bem antes, do final do século e nos golpear com uma força particularmente destrutiva. Diante disso, é preciso reagir. Para tanto, a experiência histórica e política têm, a meu ver, que enfrentar dois desafios imensos.
Quais são eles?
Luiz Marques – O primeiro é entender que a escala e a velocidade das transformações operadas pela economia globalizada na natureza são incomparavelmente maiores que jamais o foram e que isso tem consequências nunca experimentadas pela humanidade. Portanto, nossa experiência passada e nossas coordenadas já sedimentadas de pensamento não oferecem mais um quadro adequado de referências para perscrutar nosso futuro.
O segundo desafio é entender que o vínculo social, objeto inaugural e central das ciências humanas, não contém mais em si o princípio de sua inteligibilidade. Temos, historiadores, cientistas sociais, filósofos e políticos, que incorporar doravante a percepção de que as respostas da natureza aos impactos antrópicos, as chamadas alças de retroalimentação das crises ambientais, estão em vias de ganhar protagonismo e que em breve se tornarão mestras do jogo. Portanto, é preciso agir já, se quisermos mitigar as consequências do que já desencadeamos. Digamos sem rodeios o que é mais que tempo de dizer: não é mais razoável a expectativa de um futuro melhor para os jovens e para as futuras gerações.
Às crescentes emissões industriais de CO2 cujo efeito é cumulativo, soma-se a crescente liberação de metano pelos rebanhos ruminantes – sacrificados para o bife de cada dia de nossa sociedade crescentemente carnívora –, pelos incêndios das turfeiras, pela degradação dos plásticos, pelo degelo dos pergelissolos setentrionais e dos hidratos de metano no Ártico.
De modo que, mesmo que começássemos hoje, por um passe de mágica, a diminuir drasticamente as emissões industriais de gases de efeito, um aquecimento médio global superior a 2°C nos próximos dois ou três decênios, e provavelmente superior a 3°C ao longo da segunda metade do século já é, ao que parece, inevitável. A menos que sejamos capazes de detê-lo, o agronegócio global continuará igualmente a nos condenar a uma maior escassez hídrica, ao desmatamento e à perda de biodiversidade. Isso significa, em suma, que estamos condenados a um futuro pior. Possivelmente muito pior. Quão pior, ainda depende de nossa capacidade como sociedade de reagir às causas dessas crises, e elas são, fundamentalmente, repita-se, a voracidade energética de nosso sistema econômico, a crescente queima de combustíveis fósseis, o desmatamento e uso insustentável da água pelo agronegócio, a poluição e intoxicação generalizada dos organismos pelos agrotóxicos e pela sopa química em que a indústria banha insanamente nossas sociedades.
“Seminário Internacional Degradação Socioambiental, catástrofes e Distopias”
Data: 13 e 14 de agosto
Locais: dia 13, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), e no dia 14, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
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Seminário internacional sobre degradação socioambiental reúne intelectuais de diferentes áreas na Unicamp. Entrevista com Luiz Marques e Carlos Eduardo Berriel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU