22 Junho 2018
Os fãs de futebol de todo o mundo estão se segurando na cadeira enquanto assistem seus times favoritos se enfrentando na Copa do Mundo na Rússia. É sempre estressante ver sua equipe lutar, cair e se recuperar, aguardando ansiosamente pela libertação deste grito fatal: GOOOOOOOL!
A reportagem é de Claire Giangravè, publicada em Crux, 20-06-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No entanto, contraintuitivamente, essa antecipação está entre os sentimentos mais emocionantes que a vida tem a oferecer. De certa forma, é apropriado que, durante este período, a Pontifícia Universidade Lateranense de Roma esteja examinando um filósofo cujas obras descrevem com precisão a vibração que todos sentimos quando assistimos aos nossos times em campo.
No congresso, os palestrantes apresentaram um livreto intitulado “Martin Heidegger: jornada e escritos”, com contribuições de 19 pesquisadores e professores, elaborando sobre o brilhante, e às vezes controverso, filósofo alemão do século XX.
A série de ensaios tem como objetivo apresentar “diretrizes para a correta interpretação” do pensamento de Heidegger, disse Dom Enrico Dal Covolo, decano da Universidade Lateranense, durante o evento do dia 18 de junho.
Heidegger, considerado uma das mentes filosóficas mais influentes do século passado, estava convencido de que, na maioria das vezes, os seres humanos não estão realmente conscientes da maravilha, do mistério e da exaltação de estarem vivos, contentando-se em realizar tarefas diárias e mundanas.
Mas, em poucos e escassos momentos, como descrito em seu livro “Ser e Tempo”, Heidegger acreditava que podíamos experimentar a vida em sua plenitude, completamente conscientes daquilo que ele chamava de Das Sein, ou, em português, “o ser”. É nesses momentos, acreditava Heidegger, que as pessoas se sentem verdadeiramente vivas e alcançam um senso de transcendência.
Em seu recente livro What We Think When We Think about Football [O que pensamos quando pensamos sobre futebol], o filósofo inglês e fã de futebol Simon Critchley faz uma conexão entre a compreensão de Heidegger sobre o estar presente e o “arrebatamento do momento” que se sente enquanto se assiste a um jogo de futebol.
A ansiedade, como aquela sentida enquanto assistimos a um jogo emocionante, é um componente fundamental, de acordo com Heidegger, da apreensão da enormidade do universo e do nosso papel dentro dele. Isso poderia explicar, de certo modo, por que os ávidos fãs de esportes passam horas decifrando o significado universal ou a experiência religiosa de ver Messi balançando as redes.
Para aqueles que estão sintonizados com a teologia católica, incluindo grandes nomes como Santo Agostinho, a ansiedade também é um componente importante quando se aborda o divino e é até mesmo um gatilho significativo para a conversão. Heidegger certamente conhecia essa tradição; ele cresceu como um dos seis filhos de um sacristão de uma Igreja Católica e até entrou em um seminário jesuíta durante um tempo para prosseguir seus estudos.
Embora o filósofo de Meßkirch tivesse uma forte educação católica, suas crenças nem sempre se alinham com a compreensão católica do mundo.
“O jovem Heidegger está profundamente envolvido em reflexões teológicas”, disse Antonio Gnoli, jornalista do jornal italiano La Repubblica, no congresso. “O que ele não podia aceitar era a institucionalização da Igreja.”
Isso não impediu o filósofo de especular sobre o divino.
“Tenho pensado sobre o problema de Deus há 40 anos e acredito que ainda não refleti sobre ele suficientemente”, Heidegger supostamente teria dito durante uma conversa em 1951.
Os pensadores católicos têm estado em um diálogo filosófico com Heidegger há anos, e o grande esforço teológico do Papa João Paulo II por “uma nova teologia do ser” envolveu desposar o pensamento fenomenológico dos filósofos do século XX com a dimensão metafísica de Tomás de Aquino.
Até mesmo na teologia pastoral do Papa Francisco, podem-se encontrar ligações com as ideias de Heidegger. Por exemplo, ambos têm um forte desgosto pela fofoca, contra a qual Francisco frequentemente se opõe durante suas Audiências gerais semanais. Para o filósofo alemão, a fofoca alimenta a preocupação dos seres humanos com o modo como são percebidos pelos outros, distraindo-os assim da maravilha da existência.
Além disso, Francisco e Heidegger compartilham uma desconfiança na industrialização agressiva, na guerra e na tecnologia, especialmente quando desconectadas dos interesses da família humana.
“A agricultura é agora uma indústria alimentícia motorizada, em essência o mesmo que a produção de cadáveres nas câmaras de gás e nos campos de extermínio, o mesmo que os embargos e a redução de países à fome, o mesmo que a fabricação de bombas de hidrogênio”, escreveu Heidegger em “A questão da tecnologia” [Die Frage nach der Technik], em 1954.
Apesar das palavras sedutoras do filósofo, ele tem sido fortemente criticado e às vezes até rejeitado, à luz do seu apoio ao regime nazista na Alemanha, especialmente durante seu mandato como reitor da Universidade de Friburgo.
A publicação em 2014 dos “Cadernos negros” de Heidegger, escritos entre 1931 e 1941, revelou as opiniões antissemitas do pensador e levou a uma reinterpretação negativa.
Suas visões raciais, no entanto, não impediram Heidegger de ter casos extraconjugais com suas alunas de ascendência judaica, incluindo a renomada filósofa e intelectual germano-estadunidense Hannah Arendt.
Mas, de acordo com os palestrantes do congresso, Heidegger merece um segundo olhar hoje e deve ser avaliado “pelo seu poder filosófico e não pela sua ideologia política”.
A Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma, é uma das poucas que ainda oferecem “um estudo rigoroso” do pensador alemão, disse Dal Covolo, depois de um mandato que lhe foi dado primeiro pelo Papa Emérito Bento XVI e depois por Francisco para orientar a instituição rumo a uma “reflexão teológica orientada à verdade e ao diálogo”.
“Se pararmos em uma interpretação não sustentada por um estudo rigoroso das fontes, cairemos em interpretações ideológicas”, disse Dal Covolo.
No congresso, Gnoli expressou a esperança de que Heidegger tenha a mesma avaliação reservada ao filósofo grego Platão, que desfrutou do favor do infame tirano de Siracusa, Dionísio I.
“Hoje, não nos importamos mais com o tirano e estamos dispostos a ler Platão em uma chave diferente”, disse o jornalista.
Heidegger tem sido chamado de nazista, de católico profundamente arraigado, de antissemita e de uma das maiores mentes filosóficas do século 20, mas, de acordo com os professores que falaram na Universidade Lateranense, em Roma, não demos ouvidos ao último deles, e sua influência continuará reverberando no futuro.
Por enquanto, os fãs de futebol podem se contentar em saber que a mistura entre alegria e ansiedade que rasga seus olhos, unindo-os e abalando seus corações em uníssono, enquanto os jogadores correm no campo, tem um nome: Das Sein.
Graças a Heidegger e a pensadores que desenvolvem a sua obra, os fãs de esportes ao redor do mundo podem lembrar que, enquanto o tempo se estende até o último segundo do último minuto daquele que poderia ser seu último jogo, eles estão real e inexoravelmente vivos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Evento em Roma reflete sobre Heidegger e a vibração de um gol no futebol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU