Por: Patricia Fachin | Edição: João Vitor Santos | 16 Setembro 2017
Para o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS Ernildo Stein, a filosofia moderna é fortemente influenciada pelas tentativas de sistematização presentes no trabalho de Francisco Suárez. “Suárez pode ser considerado aquele que sistematizou pela primeira vez a filosofia medieval, sobretudo a ontologia. Ele superou o hábito que até então consistia em fazer apenas comentários dos textos da filosofia da Antiguidade”, destaca.
Essa influência chega até a Contemporaneidade e é materializada nas reflexões de filósofos como Martin Heidegger. “Não sei se podemos falar de uma recuperação de Suárez através de Heidegger, mas certamente, este aborda questões centrais daquele filósofo, em seu livro Problemas fundamentais da Fenomenologia”, analisa Stein, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Portanto, quando L.B. Puntel afirma que Heidegger é por excelência o filósofo do ser no século XX, ele está nos aproximando de algo suareziano na analítica existencial”, completa.
Ernildo Stein | Foto: Rádio e TV Unisinos
Ernildo Jacob Stein é graduado em Filosofia e Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Doutor em Filosofia também pela UFRGS, realizou estágios de pós-doutorado nas Universidades de Erlangen-Nuremberg, Heidelberg, Freiburg, Frankfurt, Münster e Wuppertal. Lecionou na UFRGS e atualmente é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS. Entre seus livros publicados, destacamos A Caminho de uma fundamentação pós-metafísica (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997), Anamnese - a filosofia e o retorno do reprimido (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997) e Às voltas com a Metafísica e a Fenomenologia (Ijuí: Unijuí, 2014). Sua obra mais recente é A caminho do paradigma hermenêutico - ensaios e conferências (Ijuí: Unijuí, 2017).
O entrevistado apresenta a conferência A presença de Suárez na filosofia de Heidegger no dia 26 de setembro, às 14h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, campus São Leopoldo da Unisinos, dentro da programação do VIII Colóquio Internacional IHU. A atualidade do pensamento de Francisco Suárez, 400 anos depois.
Acesse a programação completa aqui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a atualidade do filósofo Francisco Suárez, 400 anos depois?
Ernildo Stein – Tenho dificuldade de avaliar a atualidade de um filósofo. Será que ela consistiria na capacidade de ele responder a problemas de nosso tempo, nas questões práticas da ética e da filosofia política? Ou ajudaria a resolver, de maneira competente, impasses no debate da filosofia teórica? A atualidade de uma obra filosófica não se mostrará pelo simples retorno de uma data da história da filosofia, 400 anos, por exemplo?
Costumamos celebrar a memória de um autor que interveio com uma obra notável em sua época, trazendo respostas esclarecedoras nas confusões dos debates que ocupavam estudiosos de várias tendências. Penso, no entanto, que hoje esperamos de um filósofo, ou de uma obra, respostas para que nós melhoremos nosso modo de fazer filosofia. Necessitamos hoje, em primeiro lugar, de pensadores que ajudem a inovar em nossas atividades filosóficas, e a corrigir a superficialidade em nosso mercado acadêmico. Suárez representa um homem que, na escolástica tardia, veio com soluções que trouxeram, no fim do século XVI, uma mudança de paradigma e deu impulsos para o começo da modernidade.
Basta olharmos para Descartes [1] e descobriremos que o filósofo inaugurou a Modernidade com sua teoria da subjetividade. Toda a sua linguagem está atravessada pela terminologia de Suárez. Mas isso também ocorre em Christian Wolff [2] e Kant [3], que se alimentaram com a problemática suareziana. O pensador influenciou fortemente a filosofia moderna através da incorporação das suas tentativas de sistematização. Suárez pode ser considerado aquele que sistematizou pela primeira vez a filosofia medieval, sobretudo a ontologia. Ele superou o hábito que até então consistia em fazer apenas comentários dos textos da filosofia da Antiguidade. As Quaestiones Disputatae (1597) é a primeira obra que tratou os problemas ontológicos de modo sistemático.
IHU On-Line – Em grande parte, deve-se a Heidegger o resgate de Suárez no século XX. Como se deu essa recuperação da filosofia suareziana?
Ernildo Stein – Certamente, Heidegger [4] conhecia a tradição da filosofia medieval, tanto assim que escreveu um livro sobre Santo Tomás de Aquino [5], fez sua tese de Livre Docência sobre a Teoria do Significado, analisando o livro De Modis Significandi, que se presumia na época como sendo de Duns Scotus [6], mas que efetivamente, depois se descobriu ter sido escrito por Thomas de Erfurt [7]. Pode-se imaginar o quanto o filósofo estudou Duns Scotus e, portanto, o quanto estava preparado para compreender essa passagem da filosofia por Ockham [8] até Francisco Suárez.
Heidegger estava, portanto, informado sobre os temas suarezianos. Certamente lhe chamou atenção o tratamento que este filósofo deu aos problemas ontológicos e à própria Metafísica de Aristóteles [9]. No seu esforço de construção sistemática, Suárez fez uma distinção entre uma Metaphysica Generalis, Ontologia Geral, de uma Metaphysica Specialis, dividida em Cosmologia rationalis, Ontologia da Natureza, Psychologia rationalis, Ontologia do Espírito, e Theologia Rationalis, Ontologia de Deus. Heidegger chega a afirmar que esse conjunto de “disciplinas filosóficas centrais retorna na Crítica da Razão Pura de Kant. A Lógica transcendental corresponde em seu fundamento à Ontologia geral. Aquilo de que Kant trata na Dialética transcendental, os problemas da psicologia racional, da cosmologia e da teologia, corresponde àquilo que a filosofia moderna colocou em questão.
Suárez, que apresentou sua filosofia nas Disputationes Metaphysicae, não teve uma grande influência sobre o desenvolvimento ulterior da teologia no interior do catolicismo”, mas, através de Fonseca, estudioso jesuíta colega de Suárez, teve forte influência sobre a Escolástica protestante. Não sei se podemos falar de uma recuperação de Suárez através de Heidegger, mas, certamente, este aborda questões centrais daquele filósofo, em seu livro Problemas fundamentais da Fenomenologia.
IHU On-Line – Que elementos da metafísica de Suárez estão presentes e influenciaram a metafísica de Heidegger?
Ernildo Stein – Para responder a esta questão, na verdade, eu deveria escrever um livro. A distinctio rationalis entre essentia e existentia apresentada por Suárez foi incorporada, sob diversos aspectos, no pensamento de Heidegger. Portanto, o conceito de ser em Heidegger não se liga à intervenção de Deus na criação. O conceito de ser que está escondido por baixo dessa inovação de Suárez termina influenciando o modo como Heidegger irá falar do ser em Ser e tempo.
Portanto, quando L.B. Puntel [10] afirma que Heidegger é por excelência o filósofo do ser no século XX, ele está nos aproximando de algo suareziano na analítica existencial. Assim como a distinção entre essência e existência é “quoad nos”, é, portanto, um elemento formal que usamos para pensar a diferença entre ser finito e ser infinito, assim também o conceito de ser em Heidegger é apenas um instrumento para pensar. “Tão finitos somos nós que precisamos do conceito de ser para pensar” (M.H.). O quanto ressoa na ideia da “compreensão do ser” de influência suareziana exigiria uma longa explicação. O que podemos dizer numa frase é que Heidegger quer repensar a metafísica com seu conceito de ser que se distancia profundamente do realismo tomista. Para imaginar isto, citemos mais uma vez Heidegger: “O pior idealismo é melhor do que o melhor realismo”.
IHU On-Line – Em relação à recepção da metafísica de Tomás de Aquino e de Francisco Suárez, diria que há uma preferência pela abordagem tomista? Por que e em quais aspectos?
Ernildo Stein – Se fôssemos ler o livro de Heidegger sobre Santo Tomás de Aquino, que resultou de um curso pouco depois de publicar Ser e tempo, diríamos que o autor conhecia as questões centrais de Santo Tomás, mas somente um filósofo com influência suareziana no núcleo de seu pensamento apresentaria desse modo o pensamento tomista. Talvez tenhamos que aprender nesse contexto o quanto o conceito de metafísica de Heidegger, que ele irá chamar de fenomenologia hermenêutica, desconstruiu a metafísica clássica, e abre as portas para vários conceitos de metafísica.
IHU On-Line – Qual tem sido a recepção da metafísica de Suárez entre os heideggerianos?
Ernildo Stein – Penso que ainda está por surgir uma linha de interpretação de Heidegger que realmente faça justiça à influência secreta do autor de Disputationes Metaphysicae sobre o autor de Ser e tempo. Para um leitor cuidadoso e bem informado, recomendo para essa questão meu livro A caminho do paradigma hermenêutico - ensaios e conferências (Unijuí, 2017).
IHU On-Line – Qual é o papel de Suárez na filosofia contemporânea, para além do projeto ontológico de Heidegger?
Ernildo Stein – Essa pergunta deve ser feita para um conhecedor da obra de Suárez e que saiba analisar com cuidado o que significa uma possível influência que tenha sentido, de um filósofo do século XVI na filosofia do século XXI. Assim como se procede, de maneira geral, na comparação entre pensadores filosóficos, Suárez não teria nenhum papel na filosofia atual. Faz pouco sentido estudar um filósofo do fim da Idade Média apenas do ponto de vista da história da filosofia. Seria necessário imaginar Suárez com os recursos que hoje dispomos para discutir o que ele nos tem a ensinar. Em geral, faz-se apenas uma história da filosofia, quando não se fica preso dogmaticamente a uma doutrina do passado. Para compreender essa questão, leia-se meu livro As voltas com a Metafísica e a Fenomenologia (Unijuí, 2014).
IHU On-Line – Ao longo do século XX – e de certo modo, atualmente – a metafísica sofreu duras críticas e viu sua legitimidade ameaçada. Qual é o sentido de continuar estudando metafísica nos dias de hoje?
Ernildo Stein – Aristóteles, no livro 6º da Metafísica, afirma: “estive falando com um homem que disse que não necessitava dos princípios da metafísica. Tive a impressão de estar falando com uma árvore”. O que existe hoje de recusa do pensamento especulativo, portanto, de recusa das questões centrais da metafísica, me faz lembrar o título de um livro de Cornelius Castoriádis [11], A ascensão da insignificância...
Notas:
[1] René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e matemático francês. Notabilizou-se sobretudo pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, tendo também sido famoso por ser o inventor do sistema de coordenadas cartesiano, que influenciou o desenvolvimento do cálculo moderno. Descartes, por vezes chamado o fundador da filosofia e da matemática modernas, inspirou os seus contemporâneos e gerações de filósofos. Na opinião de alguns comentadores, ele iniciou a formação daquilo a que hoje se chama de racionalismo continental (supostamente em oposição à escola que predominava nas ilhas britânicas, o empirismo), posição filosófica dos séculos 17 e 18 na Europa. (Nota da IHU On-Line)
[2] Christian Wolff (1679-1754): filósofo alemão que influenciou os pressupostos racionalistas de Immanuel Kant. Sua primeira obra, de 1710, chama-se Anfangs-Gründe Aller Mathematischen Wissenschafften. (Nota da IHU On-Line)
[3] Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século 19, as quais se tornaram um ponto de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22-3-2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador com o título Kant: razão, liberdade e ética. Também sobre Kant, foi publicado o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, lógica e ética. Confira, ainda, a edição 417 da revista IHU On-Line, de 6-5-2013, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios. (Nota da IHU On-Line)
[4] Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947) e Introdução à metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de 19-6-2006, intitulada O século de Heidegger, e 187, de 3-7-2006, intitulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísica. Confira, ainda, Cadernos IHU em formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução da metafísica, e a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do ciclo de estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. (Nota da IHU On-Line)
[5] São Tomás de Aquino (1225-1274): padre dominicano, teólogo, distinto expoente da escolástica, proclamado santo e cognominado Doctor Communis ou Doctor Angelicus pela Igreja Católica. Seu maior mérito foi a síntese do cristianismo com a visão aristotélica do mundo, introduzindo o aristotelismo, sendo redescoberto na Idade Média, na escolástica anterior. Sistematizou o conhecimento teológico e filosófico de sua época em suas duas Summae: Summa Theologiae e Summa Contra Gentiles. (Nota da IHU On-Line)
[6] John Duns Scotus (1266-1308): foi um teólogo escocês pertencente aos escolásticos. Ele entrou na ordem franciscana e estudou em Cambridge, Oxford e Paris; ele lecionou nas duas universidades. Pela sutileza de sua análise ele ganhou o apelido de "Doutor Sutil". Ele foi considerado santo e adoraram-no sem uma canonização. Em 20 de março de 1993 o Papa João Paulo II confirmou seu culto como beato. (Nota da IHU On-Line)
[7] Thomas von Erfurt: morava próximo de Erfurt, na Alemanha, onde era Magister Regens (diretor) e reitor das escolas St. Severi e St. Jakob. Ele se tornou conhecido como filósofo e teórico da gramática no século XIV. (Nota da IHU On-Line)
[8] William de Ockham (1285-1350): filósofo lógico, teólogo escolástico inglês, frade franciscano e criador da teoria conhecida como Navalha de Ockham (em inglês, Ockham’s Razor), que dizia que as “pluralidades não devem ser postas sem necessidade”. Considerado um dos fundadores do nominalismo, teoria que afirmava a inexistência dos universais, que seriam apenas nomes dados às coisas, e portanto produto de nossa mente sem uma existência prática assegurada. Por causa de suas ideias foi excomungado pela Igreja. O conceito, bastante revolucionário para a época, defende a intuição como ponto de partida para o conhecimento do universo. Ockham foi discípulo do filósofo Duns Scotus e precursor do empirismo inglês, do cartesianismo, do criticismo kantiano e da ciência moderna. (Nota da IHU On-Line)
[9] Aristóteles de Estagira (384 a.C.-322 a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas – por um lado, originais; por outro, reformuladoras da tradição grega – acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por séculos. Prestou significativas contribuições para o pensamento humano, destacando-se nos campos da ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e história natural. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)
[10] Lorenz Bruno Puntel: filósofo brasileiro radicado na Alemanha, professor em Munique. (Nota da IHU On-Line)
[11] Cornelius Castoriádis: (1922-1997): foi um filósofo, economista e psicanalista francês, de origem grega, defensor do conceito de autonomia política. É considerado um dos maiores expoentes da filosofia francesa do século XX. Em 1949, fundou, com Claude Lefort, o grupo Socialismo ou barbárie, que deu origem à revista homônima, que circulou 1967. Autor de inúmeras obras de filosofia e, em especial, de filosofia política, Cornelius Castoriadis é considerado um filósofo da autonomia. Entre suas inúmeras obras destacam-se: Instituição Imaginária da Sociedade, Encruzilhadas do Labirinto, Socialismo ou Barbárie. (Nota da IHU On-Line)
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A centralidade de Suárez no pensamento de Heidegger. Entrevista especial com Ernildo Stein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU