08 Fevereiro 2018
Sem apoio do Estado, índios Munduruku pressionam garimpeiros ilegais.
A reportagem é de Fabiano Maisonnave, publicada por Folha de São Paulo e reproduzida por Amazonia.org, 05-02-2018.
Os 225,8 km de água enlameada que cruzam a floresta amazônica anunciam a tragédia adiante: megagarimpos ilegais encravados na Terra Indígena Munduruku e na Floresta Nacional do Crepori, no sudoeste do Pará. Mas, ao contrário do rio Doce, a destruição do remoto rio das Tropas acontece de forma oculta —menos para os índios.
Cansados de esperar por uma intervenção do Estado, guerreiros e lideranças da etnia, incluindo o cacique-geral, Arnaldo Kaba, organizaram uma expedição para expulsar os garimpeiros não indígenas do local. Em seis lanchas, viajaram dezenas de guerreiros armados com flechas e espingardas de caça, mulheres, crianças e idosos. A reportagem da Folha foi autorizada a acompanhar a viagem.
A iniciativa foi precedida por um duro comunicado do Movimento Ipereg Ayu (“povo que sabe se defender”). Contrário a todo tipo de garimpo, tem forte participação de mulheres e é responsável por protestos ousados, como a tomada da usina Belo Monte, em 2013. Ações como essa renderam aos mundurucus, com cerca de 14 mil pessoas, a reputação de etnia aguerrida e combativa.
Com “muita dor e vergonha”, o movimento diz que a aldeia PV, cooptada e cercada pelo garimpo, “não existe mais”. Prometeu expulsar os garimpeiros pariwat (brancos) e destruir seu maquinário. E acusa o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), a Funai (Fundação Nacional do Índio) e o Ministério Público Federal de “ficar no escritório ou fazendo reunião”.
A viagem de ida tomou dois dias de barco desde Jacareacanga (1.160 km em linha reta de Belém), da foz do rio das Tropas, que deságua no Tapajós, até a sua cabeceira. Antes de águas transparentes, o rio ficou barrento em toda a extensão.
No papel, o rio deveria estar protegido desde as nascentes —com a exceção de um pequeno trecho na foz, o curso d’água corre ao longo da divisa entre o território mundurucu e a Flona Crepori.
Durante paradas em algumas das cerca de 20 aldeias às margens do Tropas, os mesmos relatos de que o rio deixou de ser fonte de água e alimento. “Acabou o peixe. Estamos há quatro anos sem usar a água do rio”, disse a vice-cacique Iraneide Saw, 29, por meio de uma intérprete. Sua aldeia, a Caroçal, é agora abastecida por um poço artesiano.
Ao mesmo tempo, muitos mundurucus dessas aldeias, sobretudo os homens, trabalham ou já passaram por garimpos de ouro, há várias décadas a principal atividade econômica da região do Tapajós.
É comum a fala de que a extração do ouro deveria ser feita pelos próprios mundurucus. Na sua grande maioria, eles não usam Pcs (escavadeiras), que têm potencial destruidor várias vezes maior do que as máquinas acopladas a mangueiras de água, chamadas de “tatuzão”.
A parte mais crítica da viagem começou a 7 km da aldeia PV, em linha reta. A partir dali, onde há um grande garimpo dentro da Flona do Crepori, a expedição subiu pelo igarapé Massaranduba, que corre apenas dentro da terra indígena e é o principal afluente do rio das Tropas.
Por cerca de 2h30, os pilotos dos barcos sofreram para subir o leito desviado e assoreado em meio a toneladas de terra revirada. Não há nenhuma vida aquática ali, apenas um jorro contínuo de lama. Em um trecho, foi preciso desembarcar para que os barcos vencessem um desnível provocado pela garimpagem.
Depois de uma viagem em silêncio pela área devastada, o grupo chegou à aldeia no meio da tarde do último dia 25.
Os mundurucus pareciam em minoria: vários garimpeiros circulavam pelas casas a pé, em motos e em quadriciclos. “Parece cidade”, disse Ana Poxo, uma das lideranças da expedição.
Única presença visível do Estado, a escola municipal indígena virou depósito e dormitório de garimpeiros. A lousa serve de mural de recado para os invasores.
Por conta das chegada dos guerreiros, os garimpeiros retiraram diversas caixas do prédio da escola, em péssimo estado, carregadas com o auxílio de mundurucus da PV, entre eles uma criança não maior do que 7 anos.
A poucos metros das casas de madeira, uma extensa pista recebeu sete aviões apenas naquela tarde. É uma ponte aérea entre o garimpo e o Creporizão, distrito de Itaituba (PA) e fonte de abastecimento de comida, combustível, bebida alcoólica e insumos para o garimpo.
Ironicamente, a aldeia PV, abreviação de Posto de Vigilância, foi criada em 1996 justamente para evitar a entrada de garimpeiros brancos. “Isso aconteceu por causa do cacique [Osvaldo Wuaru]. Ele autorizou, e o filho dele [João] acelerou”, disse o cacique-geral. “O índio é fraco para vigiar.”
Durante a tarde e na manhã do dia seguinte, os cerca de 40 guerreiros vasculharam comércios, bares em busca de drogas e bebidas alcoólicas. No barraco onde funciona o prostíbulo, foram apreendidas latas de cerveja, mas as prostitutas haviam deixado o local dois dias antes, segundo garimpeiros.
Os guerreiros também abordavam garimpeiros não indígenas para convocar para uma reunião. Alguns estavam protegidos por mundurucus pró garimpo —um deles circulava sobre um quadriciclo escoltado por quatro guerreiros armados com flechas, um deles pré-adolescente.
“A água está muito grossa, não tem mais peixe, não tem mais caça”, afirmou Kaba a dezenas de garimpeiros que lotaram o centro de reuniões da aldeia. “Não vi nem borboleta atravessando o rio das Tropas.”
O cacique-geral deixou claro: “Os senhores têm de sair”. Os garimpeiros “convidados” por mundurucus, explicou, poderão se retirar após negociar um prazo.
Falando em seguida, o cacique da aldeia PV, Osvaldo Wuaru, foi menos enfático. Em vez de reforçar a ordem de expulsão, decidida em reuniões preparatórias, falou sobre promessas não cumpridas, principalmente um poço artesiano para substituir a água barrenta consumida pelos mundurucus.
Foi a deixa para os garimpeiros renovarem promessas de ajuda. Um deles se levantou e entregou 20 gramas de ouro enquanto Wuaru falava. Ele embolsou o pacotinho de papel.
“Às vezes, a gente tira 15, 20 gramas para gastar com cachaça e prostituição. Isso eu digo vivenciado”, disse o garimpeiro Barbudo. “E não temos coragem pra dar pro capitão Osvaldo 5 gramas, 10 gramas de ajuda para ele? Temos de conscientizar que estamos dormindo, comendo e bebendo dentro da casa do capitão Osvaldo.”
No final, os guerreiros mundurucus separaram os “donos de máquina” dos demais garimpeiros. Contaram 50, dos quais 39 não indígenas, obrigados a dar o nome, o número de máquinas e a cidade de origem.
Entre os mais poderosos está Eduardo Martins, que também faz as vezes de pastor no garimpo. Com três Pcs na área, avaliadas em até R$ 600 mil, ele prometeu fazer dois tanques de peixe, pagar o poço artesiano e até trazer deputado para falar com os mundurucus.
Entre os mundurucus, o mais influente é Valmar Kaba, um dos pouquíssimos indígenas que enriqueceram com o garimpo. Dono de dois Pcs, segundo relatos, ele foi representado por um não indígena.
Dias depois, a reportagem o procurou em sua casa, em Jacareacanga. De alvenaria, amplo jardim e muros altos, contrastava com a aglomeração de mundurucus esperando atendimento médico diante da Casai (Casa da Saúde Indígena), que fica ao lado.
Valmar Kaba, mundurucu por parte de mãe, atendeu a porta usando dois colares, pulseira e relógio de ouro. Ele alegou cansaço e disse que falaria mais tarde por telefone, o que não ocorreu. No WhatsApp, ele aparece ao lado de dois Pms.
Os guerreiros deixaram o garimpo na manhã do último dia 27, para alívio dos garimpeiros. Mas a promessa é voltar dentro de 30 dias, desta vez para expulsar os invasores: “Aí virão todas as aldeias. É isso que estamos avisando”.
Responsável por proteger os direitos dos povos indígenas, a Funai foi o único dos sete órgãos públicos procurados que não respondeu às perguntas enviadas pela Folha. Já o ICMBio, que faz a gestão da Flona do Crepori diz que não há descontrole do garimpo na região nem alteração na fauna de peixe do rio das Tropas.
O questionamento, submetido na última terça-feira (30) à Funai, inclui o total da população mundurucu atingida pela contaminação do rio das Tropas e quais foram ações do órgão indigenista contra o garimpo nos últimos dois anos.
Atualmente, a Funai mantém apenas um funcionário para atender a toda a TI (terra indígena) Munduruku, de 2,4 milhões de hectares (pouco mais do que 15 municípios de São Paulo). Lotado em Jacareacanga (PA), ele não acompanhou a expedição dos guerreiros mundurucus contra os garimpeiros, na semana passada, alegando falta de segurança.
Alvo de desmantelamento contínuo nos últimos anos, a Funai mantinha cinco chefes de posto, espalhados pela terra indígena, incluindo o rio das Tropas, hoje contaminado pelo garimpo. Em 2010, durante o segundo governo Lula (PT), uma reestruturação eliminou esses cargos.
A Funai é vista com desconfiança pelos mundurucus e até por outras instituições do Estado. Em reunião na última quinta-feira (1°) sobre o assunto no Ministério Público Federal em Santarém, o representante do órgão foi impedido de participar da primeira parte, que contou com Ibama, Polícia Federal e ICMBio. Entrou apenas no diálogo com lideranças indígenas.
Após a reunião, o procurador Paulo de Tarso de Oliveira pediu à Justiça Federal que “obrigue o Ibama e o ICMBio a fiscalizar em até 30 dias o garimpo ilegal na TI Munduruku”. “Caso a decisão judicial não seja cumprida, o MPF quer que o Ibama e o ICMBio sejam multados em R$ 10 mil por dia de desobediência à Justiça”, afirmou.
Em resposta por escrito, o ICMBio admitiu que há 306 hectares desmatados pelo garimpo na Flona Crepori, “mas entendemos que a situação não é de descontrole”.
“Não temos estudos sobre a contaminação de garimpo ou assoreamento no rio das Tropas, mas a situação de deterioração não é intensa, não havendo relatos de diminuição da população de peixes e com as comunidades mantendo as atividades de pesca sem alterações”, afirmou.
Sobre atividades de fiscalização, o órgão diz ter feito apenas dois sobrevoos no ano passado, mas planeja ações “que devem ter impacto significativo na atividade garimpeira”.
A Flona do Crepori é administrada pelo escritório de Itaituba, que dispõe de apenas 26 servidores para cuidar de 12 unidades de conservação, num total de 8,9 milhões de ha —área um pouco menor do que Portugal.
Encarregado de medir a qualidade da água em rios estaduais, a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará afirmou que só tem capacidade de monitorar a qualidade da água na Região Metropolitana de Belém.
A ANA (Agência Nacional de Águas) afirmou que, em sua base de dados, não há nenhum dado de monitoramento da qualidade da água no rio das Tropas realizado pelo Pará.
O Ibama realizou uma operação contra outro garimpo, localizado no igarapé Água Branca, afluente do Tropas. A ação foi abortada após um mundurucu ligado ao garimpo investir contra agentes do órgão ambiental.
Em nota, o Ibama afirma que “há necessidade de intervenção urgente da Funai, do MPF e da PF para prisão dos criminosos e desintrusão da área”.
“A solução do problema socioambiental na região, assim como em outras áreas protegidas na Amazônia, pressupõe medidas de responsabilização criminal dos envolvidos, sobretudo dos financiadores da atividade ilegal”, afirma.
Questionada sobre o uso intenso de pistas clandestinas na região, a FAB (Força Aérea Brasileira) diz que o Destacamento de Controle do Espaço Aéreo, em Jacareacanga (PA), “não tem a competência de fiscalizar pistas clandestinas”, tarefa da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
A Anac informou que, “em relação às possíveis operações de garimpo na região, está recebendo essas informações como denúncia”, mas afirmou que não tem como fechar pistas clandestinas de garimpo.
“O poder de polícia desta agência visando à interdição de um aeródromo restringe-se àquelas infraestruturas aeroportuárias cadastradas, não alcançando pistas clandestinas, uma vez que não há informações dos responsáveis por estas pistas no banco de dados”, disse, em nota.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Indígenas Munduruku tentam fechar megagarimpo ilegal que desvia e polui rio no Pará - Instituto Humanitas Unisinos - IHU