31 Outubro 2017
“Tudo depende de como se interpreta a Humanae vitae.” Assim disse o Papa Francisco na sua primeira conversa com o padre Spadaro. Sabemos como foi. Sobre aquele “não” à contracepção, há meio século, houve uma discordância imediata por parte de 49 Conferências Episcopais.
O comentário é do teólogo e jornalista italiano Gianni Gennari, publicado no jornal Avvenire, 29-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A questão havia agitado o Concílio com insanáveis contrastes, e Paulo VI advogou a matéria para si. A Comissão de Peritos, depois de quatro anos, ofereceu duas respostas: uma forte maioria no rastro da Gaudium et spes em favor da escolha de consciência dos cônjuges pelo “sim” também aos contraceptivos não abortivos. Contrária, uma estreita minoria, resguardando os chamados métodos naturais, proibidos até a Casti connubii de Pio XI (1931), mas depois declarados lícitos por Pio XII em novembro de 1951. Essa foi uma verdadeira mudança de doutrina.
A dupla resposta da Comissão e o risco de que Paulo VI acolhesse o parecer da maioria desencadearam a oposição da Cúria. Um pequeno grupo de cardeais, liderados por Ottaviani e Ciappi, expressou ao papa a sua objeção total: abrir aos anticoncepcionais seria um escândalo absoluto e desmentiria séculos de magistério.
Assim, Paulo VI, embora com uma abordagem personalista que justificaria também uma conclusão diferente, escolheu o “não”, mas, em consciência, não quis fechar nenhuma alternativa e pediu que a encíclica não fosse entendida como afirmação doutrinal definitiva.
Para apresentá-la, encarregou o Mons. Ferdinando Lambruschini, professor de Teologia Moral na Lateranense, para explicar em seu nome que não se tratava de magistério nem infalível nem irreformável. Com a publicação, o clamor foi enorme: protestos de episcopados, dissenso de teólogos e comunidades eclesiais. O ano de 1968 também afetou a Igreja.
Mas aqui deve-se lembrar que, embora entristecido, Paulo VI quis esclarecer que não condenava todas as objeções e concluiu a primeira audiência após a publicação dizendo que, de sua parte, abençoava quem a “acolhera” e também quem a “criticara”.
Se tivesse se tratado de uma doutrina de fé, a questão seria absurda. Não só: no dia 4 de maio de 1970, falando aos esposos das Equipes Notre Dame, provenientes de todas as partes do mundo, ele recomendou que não se angustiassem demais com o problema dos “métodos”.
No entanto, milhões de casais de fiéis preferiram se afastar da Igreja, e também muitos teólogos foram punidos e marginalizados em nome da obrigação da aceitação total, “infalibilista”, da norma.
Entre os outros, essa posição custou muito caro a homens de fé e sabedoria como Dalmazio Mongillo, dominicano, ao qual foi muitas vezes impedida a eleição a reitor do Angelicum. Outras “vítimas” foram o Pe. Enrico Chiavacci, mas também o Pe. Bernard Häring, redentorista e grande inovador da teologia moral católica.
O que dizer depois de 50 anos? Se, realmente, “tudo depende de como se interpreta a Humanae vitae”, então não é óbvio que “a doutrina nunca muda”. Em âmbito moral, é evidente o contrário, sobre vários temas.
Deve-se lembrar a contribuição altíssima feita à possível “evolução” – também do “dogma” – por parte do bem-aventurado Henry Newman. Para a moral social, a evolução histórica é evidente, mas isso também se verificou na moral da sexualidade. Durante séculos, sobre o assunto, pesou muito “a sombra longa” do grandíssimo Santo Agostinho, e pouco a lúcida e serena visão de São Tomás, várias vezes citado por Francisco na Amoris laetitia.
Parece-me necessário, em termos de sexualidade, citar, por exemplo, a doutrina da “superioridade da virgindade sobre o matrimônio”. Pio XII, na Sacra virginitas (1954, nn. 21 e 28) definia como “verdade e dogma de fé a doutrina que afirma a superioridade da virgindade e do celibato sobre o matrimônio”.
Porém, João Paulo II, na audiência de 14 de abril de 1982, declarou que “as palavras de Cristo (Mt 19, 11-12 e 1Cor 7) não fornecem motivos para sustentar nem a inferioridade do matrimônio, nem a superioridade da virgindade e do celibato”. É difícil sustentar que não há uma mudança doutrinal aqui.
Recentemente, Francisco recordou que a doutrina não deve ser conservada em “naftalina”, mas sim vivificada e traduzida sem traição no caminho da Igreja e, portanto, também da teologia. Essa pode ser uma boa sugestão também em vista do 50º aniversário da Humanae vitae, no respeito pelo passado, pelo presente e pelo futuro, à luz do Espírito Santo, que certamente acompanha a Igreja desde sempre.
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Humanae vitae, 50 anos: a doutrina muda, muitas vezes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU