20 Setembro 2017
Há três anos, se não mais, o presidente da Fundação Gaia Amazonas, Martin von Hildebrand, tem passado por ONGs latino-americanas, ministérios, academias de ciência, reservas indígenas e corredores vaticanos para colocar sobre a mesa uma ideia tão maluca que, por isso mesmo, é possível: um corredor ecológico e cultural que protegeria 200 milhões de hectares da Amazônia. O projeto já tem um nome provisório: Corredor Tríplice A ou Caminho da Anaconda, e manteria a conexão natural entre o oceano Atlântico, a região da Amazônia e os Andes.
Martin von Hildebrand explicando o Corredor Tríplice A ao chanceler da Academia de Ciências do Vaticano, Marcelo Sánchez Sorondo (Foto: El Espectador)
A reportagem é de Helena Calle, publicada por El Espectador, 17-09-2017. A tradução é do Cepat.
A ideia soa como uma loucura pela extensão que o corredor teria: um terço de um dos territórios mais importantes para o meio ambiente global. Atravessaria oito países sul-americanos e envolveria 385 comunidades indígenas e 30 milhões de pessoas.
Ainda que se tenha começado a fala disto há pouco tempo, o Corredor Tríplice A é uma ideia que vem sendo fermentada há menos 30 anos e que somente agora, após o compromisso dos países latino-americanos (exceto Equador e Chile) na Cúpula de Paris para reduzir o desmatamento da Amazônia a zero, tem um compromisso político internacional importante.
Martin von Hildebrand que embarcou na titânica tarefa de fazer do Tríplice A uma realidade, tem 74 anos, 50 dos quais foram dedicados à conservação da Amazônia colombiana. Este colombiano por adoção, nascido em Nova York, esteve por trás da criação e ampliação do Parque Chiribiquete, do estabelecimento de 200.000 quilômetros quadrados de reservas indígenas, nos anos 1980, e do reconhecimento como “nação pluricultural e multiétnica”, na Constituição de 1991. É toda uma autoridade no tema ambiental e ainda que ele diga que o corredor não pode ser atribuído a uma só pessoa, pois o tornaria excludente, é ele quem bateu nas portas para colocar no ônibus do Tríplice A os governos do Peru, Brasil, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa, Suriname e Colômbia, centenas de comunidades indígenas dos nove países amazônicos, ONGs, cooperação internacional, prefeitos das áreas urbanas, cientistas, empresários e civis. Conseguir articular todos ao redor do corredor será muito difícil, tanto pelas diferenças ideológicas e conflitos de interesses, como pela imensa extensão que cobre o corredor. “O importante é, como dizem os indígenas, tecer a cesta. Se já temos o corredor, podemos começar a trabalhar”, disse Hildebrand.
No ano passado, o IDEAM (Instituto de Hidrologia, Meteorologia e Estudos Ambientais) advertiu que, pela primeira vez na história, estava sendo perdida a conexão entre os Andes e a Amazônia. A água de quase todo o continente depende dos 200 bilhões de toneladas que viajam do oceano Atlântico e são absorvidas pela flora da Amazônia. Graças ao calor, 600 milhões de árvores transpiram, através de raízes e folhas, criando o vapor que o vento empurra para os Andes para que se torne água novamente e irrigue a terra, até voltar ao mar. Esta desconexão é uma ameaça não só para a água, mas também para o intercâmbio genético entre a fauna e a flora da mata.
As três regiões responsáveis pela viagem destes “rios voadores” – que é basicamente o ciclo da água – estão sendo desconectadas entre si. Segundo a Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG), há 73 hidrelétricas em territórios indígenas e 62 áreas protegidas da Amazônia, além de 35 milhões de hectares concedidos à mineração em territórios indígenas e 20 milhões em áreas protegidas, entre outras ameaças.
Ainda que seja difícil conseguir fazer com que oito países entrem em acordo para assinar e realizar um projeto deste tamanho, existem antecedentes que dão margem para pensar que traçá-lo será mais fácil e rápido do que se pensa. O desejo é conseguir isto antes que a Amazônia continue perdendo florestas com a velocidade deste ano.
“Durante os últimos 30 anos, os países vêm reconhecendo áreas protegidas, declarando reservas indígenas, delimitando reversas florestais e parques nacionais”. Em 1911, foi criada a primeira reserva florestal no Brasil. Tempo depois, em 1948, foi criada a primeira reserva na Colômbia, em La Macarena.
Segundo a RAISG, nos anos 1980, a maioria dos países foi adotando exemplos similares e declarando áreas protegidas e parques nacionais. Os gabinetes de ministérios do Meio Ambiente foram se instalando nos enormes edifícios governamentais e, nos anos 1990, dois quartos dos 700 milhões de hectares que compõem a Amazônia estavam sob alguma figura de proteção. Enquanto isso, as reservas de petróleo no norte do Peru, as de cobre no Brasil, as de ouro na Colômbia e tantas mais eram comercializadas com o melhor concorrente.
Em inícios do século, e mesmo hoje, a Amazônia ainda é vista como um território indômito, vazio e, portanto, aproveitável para o mais esperto.
Por esta razão, fortaleceu-se o movimento indígena na América Latina. A ponta de pressão. Paulatinamente, cada país foi reconhecendo a diversas populações através da Lei de Comunas (Equador), terras indígenas no Brasil, reservas na Colômbia, e outras. Também foram realizados acordos transfronteiriços para cuidar da Amazônia, tanto para combater o narcotráfico e os grupos armados, como para aproveitar a floresta ou guardá-la. “Estes antecedentes foram chaves para uma atual iniciativa regional (Anaconda) que busca formar um corredor do Atlântico aos Andes, onde a Amazônia é o eixo transversal”, lê-se no relatório de ameaças da RAISG. “Quando fomos ver o mapa, o corredor já estava praticamente pronto”, conta Hildebrand, sentado em seu escritório em Bogotá. Pode ser que ele esteja com 30 anos de tarefa adiantada, mas ainda falta resolver como vão se articular tantos atores ao redor de um só objetivo.
Harol Rincón Ipuchima, membro da direção da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA), que reúne vários povos amazônicos de toda a bacia, e da Organização Nacional dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana (OPIAC), menciona os atores envolvidos como “malocas”, que não são apenas casas, mas também centros administrativos e de tomada de decisões.
“Martin é quem possui os contatos com a cooperação internacional, quem falou com os presidentes e os ministros e que mais se movimentou, mesmo que governo algum tenha colocado um só peso”, disse, em um modesto escritório no bairro Teusaquillo, em Bogotá. “As malocas das ONGs, dos governos, da sociedade civil e dos indígenas, entre outras, foram conectadas por Martin em um exercício de paciente aranha tecedora”.
Embora haja muito trabalho a ser feito, o projeto do Corredor Tríplice A ascendeu e rápido. A maloca das ONGs já está em cada país incentivando o projeto, localmente. A maloca indígena – ou seja, organizações como a OPIAC e a COICA – conversam sobre o tema do corredor desde 2013, tanto com Hildebrand, como internamente, com alguns problemas logísticos. De qualquer modo, quase 50% do hipotético corredor já está sob alguma forma de proteção. Devem determinar como querem proteger a região e como querem se relacionar para este objetivo.
Contudo, o corredor só não está tecido entre mapas e fronteiras nacionais. “Há algo que nós, indígenas, chamamos de o ‘caminho do pensamento’. Cada comunidade tem um agente da maloca que diz: por lei de origem, devo partir da maloca à colina, depois ao rio e retornar para percorrer espiritualmente esses pontos e curar o mundo. Cada agente faz isto em sua porção de terra e quando você vai observar, existe uma interconexão, um caminho do pensamento tecido entre os indígenas amazônicos”, explica Rincón Ipuchima. É uma cartografia espiritual, um corredor que já existe há tempo e é invisível para muitos.
Por último, vem a maloca do Governo, no momento, a mais evasiva de todas. “A ideia é conseguir uma maneira de cooperação internacional que respeite a autonomia dos governos e as comunidades indígenas, acorrendo a acordos dos quais muitos já estão firmados”, disse Hildebrand.
Há antecedentes que fazem pensar que esta loucura do corredor é possível: a maioria dos países amazônicos assinaram o Tratado de Cooperação Amazônica (1978) e da COP 21 (2015), que reconhecem a Amazônia como um território a ser protegido.
Na Colômbia, em 2015, o presidente Juan Manuel Santos anunciou seu apoio ao projeto e prometeu que o Ministério do Meio Ambiente e a Chancelaria iniciariam conversas com Brasil e Venezuela, que naquele momento eram os únicos países que integrariam o Corredor Tríplice A, além da Colômbia. Inclusive, a ideia de um “corredor ecológico, cultural e de desenvolvimento sustentável” está esboçada no Plano Nacional de Desenvolvimento 2014-2018. Desse plano nasceu Visão Amazônia, um dos novos organismos criados para frear o desmatamento na região.
Agora que restam 10 meses para o fim do período presidencial de Santos, o corredor não pode ficar no papel molhado. Isto supõe o desafio enorme de bater em portas de escritórios e malocas, em tempo recorde, para conseguir articular as propostas dos ministérios do Meio Ambiente dos oito países.
Houve aproximações com comunidades indígenas no Peru e Equador, mas não com os governos de turno. Suriname, Guiana e Guiana Francesa, cujos territórios estariam completamente cobertos pelo corredor, mostraram seu apoio, mas nada formal.
Segundo Hildebrand, a Venezuela dirá que sim, quando for questionada, pois 80% do estado do Amazonas, que cobriria o corredor, é indígena e praticamente todo o território é uma área protegida. Talvez o maior desafio na lista de observações apresentadas por Martin von Hildebrand é o Brasil: corresponde-lhe 46% da Amazônia e quase a metade do que seria o Corredor Tríplice A.
O ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, tornou público seu compromisso com o projeto em 2016, anunciando o Programa Corredores, justamente após o Brasil se comprometer em restaurar 12 milhões de hectares para 2020. Os estados do Amapá e Pará, que integrariam o corredor, mostraram interesse, ao passo que o estado de Roraima, cuja atividade principal é a pecuária, costuma se opor a projetos de proteção ambiental, mas ainda não conhece o Corredor. Além disso, o governo de Michel Temer parece caminhar por outro lado.
Segundo o New York Times, ele assinou uma espécie de decreto presidencial, em dezembro de 2016, transformando 305.000 hectares da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, em uma área de proteção ambiental. Uma jogada burocrática que permite a exploração comercial de terras.
Jamanxim está incluído no que seria o corredor e, por sua vez, representa mais da metade do desmatamento no Brasil. O desafio de Hildebrand é enfrentar 221 congressistas ruralistas, a bancada que controla o Congresso brasileiro. Os mesmos que acabam de aprovar um projeto de lei para acabar com a obrigatoriedade de apresentar licenças ambientais e que são o apoio político de Temer.
No entanto, o mais recente movimento de Hildebrand, e talvez o mais ousado, é ter convertido o Vaticano em uma maloca. Neste ano, viajou duas vezes ao Vaticano para explicar a ideia do Corredor Tríplice A para Marcelo Sánchez Sorondo, o chanceler da Academia de Ciências do Vaticano. Meses depois, o Papa Francisco falou especificamente da Amazônia em sua viagem à Colômbia. Seria muito ingênuo afirmar que o Papa falou da região graças ao corredor ou a Hildebrand, mas, sim, significa que este projeto tem cada vez mais eco em ouvidos poderosos.
Espera-se que cada país, no exercício de sua soberania, faça um diagnóstico da possibilidade do corredor e que possa apresentar suas propostas, em seis meses, para começar a tecer a cesta e, por fim, dar à luz o Caminho da Anaconda.
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A última loucura para salvar a Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU