12 Setembro 2017
Entre as diversas degradações ambientais em curso no planeta, uma delas vem se expandindo de modo silencioso, mas não menos letal. O nosso cardápio diário não é composto apenas de arroz, feijão, massa, batatas, carnes, ovos, queijos, frutas e outros produtos, mas também de glifosato, 2,4D, bisfenol, plásticos, metais pesados e outras substâncias que estão presentes nos alimentos, na água e no ambiente que nos cerca. Apesar das promessas da indústria e das advertências mais ou menos envergonhadas das agencias de saúde, não há índices seguros para a ingestão dessas substâncias, especialmente pela sinergia que se estabelece entre elas. “Uma das coisas mais graves que está ocorrendo é que nós estamos morrendo por causa da alimentação. Pior ainda, já que morrer todos vamos morrer algum dia, estamos sofrendo por causa da alimentação”, diz o biólogo, arquiteto e urbanista Francisco Milanez, que voltou a assumir a presidência da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 11-09-2017.
Em entrevista ao Sul21, Milanez aponta um amplo leque de destruições em curso que vão do desmonte da legislação ambiental à entrega pura simples de riquezas e patrimônios naturais do país em mãos estrangeiras sem qualquer debate interno. “Isso é traição à pátria, é razão para ser preso. As pessoas do governo envolvidas nisso tinham que ser presas. Não se trata de crime contra a segurança nacional, mas sim de roubo das riquezas e do patrimônio do país”, afirma. Ele chama a atenção com especial ênfase para uma verdadeira catástrofe que está acontecendo com a saúde da população por conta do atual modelo alimentar que ele define como perverso.
“O crescimento das doenças degenerativas está diretamente ligado à questão ambiental. E está atingindo as pessoas cada vez mais cedo, basta ver o número de crianças com câncer e outras doenças degenerativas. Estamos vivendo uma catástrofe em termos de saúde. E o pior ainda está por vir”, alerta o presidente da Agapan.
Após 45 anos de militância na Agapan e no movimento ambientalista, qual o balanço que faz desse período, do ponto de vista do avanço das lutas em defesa do meio ambiente? Entre avanços e retrocessos, qual é o saldo?
Há muitas coisas paralelas que aconteceram neste período e todas elas estão relacionadas, embora, às vezes, pareçam contraditórias. Quando fomos para a rua e iniciamos essa luta, éramos motivo de piada, éramos ridicularizados na mídia. Por outro, tivemos um grande espaço na mídia, considerando que vivíamos em uma ditadura militar onde tudo era censurado. Da criação da Agapan, em 1971, até o Dayrell (Carlos Alberto Dayrell) subir na árvore, em 1975, nós andamos absolutamente livres. A partir dali, o Dops (Departamento de Ordem Política e Social) nos fichou e passamos a ter um agente espião dentro da Agapan que, casualmente, era um colega meu do básico e eu já sabia que ele era espião.
Falava-se muito da Agapan nesta época e o Lutz (José Lutzenberger) “maltratava” muito os jornalistas que, mesmo assim, imploravam para entrevistá-lo. Ele reclamava muito dizendo que os jornalistas distorciam o que ele falava. Mas, na sociedade de um modo geral, éramos vistos como os protetores de borboletas. Não havia leis ambientais naquele período e aí tivemos conquistas muito importantes. A lei da poda das árvores, por exemplo, foi responsável por tornar Porto Alegre uma referência mundial em flores. Não tínhamos flores na primavera, pois as árvores eram cortadas na altura do tronco. Ficava só o tronco das árvores e, na primavera, elas começavam a brotar de novo. A luta contra a Borregaard, fábrica de celulose instalada em Guaíba, é outro exemplo de conquista. A empresa simplesmente não tratava seus efluentes. Após anos de luta, conseguimos fechá-la.
Porto Alegre é uma cidade linda, com uma formação geológica e uma flora espetaculares, mas estava tudo virando mina. Nós conseguimos frear as pedreiras de Porto Alegre. Desde os anos setenta, não temos mais pedreiras funcionando na cidade. As suas marcas ficaram congeladas. A nossa luta era de rua. Fazíamos passeatas e manifestações públicas. A existência da ditadura acabou atrofiando o cérebro da direita, que ficou só mamando no Estado. A esquerda, por sua vez, foi se reorganizando e lançando as bases de conquistas importantes nas décadas seguintes. Mais recentemente, a direita parece ter aprendido matemática básica e descobriu que tinha maioria no Congresso. A formação da bancada BBB (boi, bala e bíblia) unificou as forças da direita que, agora, estão destruindo todas as conquistas desses últimos 45 anos em termos de legislação.
Há 33 anos, aprovamos a Lei dos Agrotóxicos no Rio Grande do Sul, uma conquista gigante que depois inspirou uma lei federal. Conquistamos também o Código Florestal. Todas essas coisas estão sendo destruídas. É curioso que essa boçalidade se exerça exatamente no momento em que o meio ambiente está virando um consenso e a educação ambiental evoluiu muito. Praticamente ninguém mais é insensível ao meio ambiente. O que cresceu muito também, junto com a educação ambiental, é a maquiagem. As empresas de uma idade intermediária aprenderam a maquiar seus produtos e atividades, adotando um discurso de sustentabilidade que está repleto de bobagens. Mas há uma geração vindo de baixo que pode até não ter as soluções, mas tem um pouco mais de honestidade. Tenho muita esperança nesta geração. Essa evolução é demorada e silenciosa, mas é a mais eficaz na minha opinião.
Precisamos formar pessoas que pensem além e que não sejam estúpidas como aquelas que, no momento em que enfrentamos a maior crise de clima no mundo, querem envenenar um pouco mais o ar e a água que os próprios filhos delas irão tomar e ficar com disrrupção endrócina, problemas de reprodução, câncer e outras doenças degenerativas. Temos uma epidemia mundial de autismo e de Alzheimer, atingindo inclusive crianças. O crescimento das doenças degenerativas está diretamente ligado à questão ambiental. Estamos vivendo uma catástrofe em termos de saúde. E o pior ainda está por vir. Essas destruições levam um tempo para manifestar seus efeitos.
Qual é o tamanho dessa destruição, na sua opinião?
Hoje, os que tratam a natureza como coisa e mercadoria, sem nenhuma sensibilidade ambiental, estão altamente organizados e atuando da pior forma possível. Estão aí entregando o Brasil, negociando nossos recursos e nosso patrimônio com o estrangeiro antes de falar com o próprio país. É uma traição profunda. Há quem diga que temos integrantes do próprio Judiciário coligados a outros países. Não é mais nem uma questão interna, mas sim de entregar o país mesmo. Nas últimas décadas, a esquerda pode colocar em prática alguns de seus sonhos. O Brasil escolheu governos populares, mas não escolheu congressos populares, nem assembleias nem câmaras de vereadores. O atual presidente golpista teve que comprar o Congresso, comprar a sua própria maioria, para aprovar alguns projetos e assegurar a sua própria sobrevivência.
Temos algumas armas que precisamos aprender a usar de modo mais efetivo. Podem até nos roubar os direitos civis, mas o direito do consumidor, o direito da opção de compra pelo cidadão, esse ninguém tira. Se a maioria da população passar a consumir orgânicos, toda a agricultura terá que seguir nesta direção. Agora, não adianta nada comer orgânico e beber água de plantador de soja, com uma carga de agrotóxicos gigantesca. Precisamos limpar a nossa água e parar de exportar a nossa saúde para alimentar porcos na China. Essa commoditie da soja é uma verdadeira vergonha. Nós optamos pelo pior e, agora, estamos querendo de novo optar pelo pior, com a mineração. Precisamos planejar qual uso queremos para nossos minérios. Hoje, estamos exportando alumínio para fazer latinhas descartáveis, estamos exportando ferro para produzir qualquer porcaria.
O projeto do governo golpista para acabar com a Renca é uma coisa pornográfica. Até os militares avaliaram que era de interesse do país manter aquela área como reserva. E isso que eles estavam entregando muitas das nossas riquezas. Não foi por acaso que o Golbery virou presidente da Dow Chemical. Mesmo assim, optaram por manter aquela área. Mais pornográfico ainda é ter, cinco meses antes, informado interesses estrangeiros sobre esse projeto. Se fosse algo sério, justo e necessário liberar determinada área para mineração, seria preciso avisar antes as empresas nacionais e levar em conta os interesses brasileiros no tema para enfrentar a concorrência das multinacionais e não o contrário. Isso é traição à pátria, é razão para ser preso. As pessoas do governo envolvidas nisso tinham que ser presas. Não se trata de crime contra a segurança nacional, mas sim de roubo das riquezas e do patrimônio do país. Se fosse nos Estados Unidos, estariam presos. Imagine se alguém avisar a Rússia antes de anunciar determinado projeto…E aqui dentro ninguém está dando bola para isso.
O plano agora é fingir que tem democracia. O que ocorre nos conselhos é uma falsa participação. Por isso, a Agapan decidiu não participar mais desses conselhos. Somos sempre minoria e não estamos aí para legitimar porcaria. Precisamos buscar outra forma de participação e, de modo mais amplo, construir um novo projeto para o país. Infelizmente, ninguém tem hoje um projeto inteiro para o Brasil. Fizemos uma das coisas mais lindas do mundo no combate à fome e à miséria. Não há dúvida quanto a isso e o mundo inteiro reconhece. Mas não fizemos o mesmo, por exemplo, em relação à energia. Quando eu estava fazendo pós-graduação na Amazônia, assisti ao fechamento de Balbina, uma das obras mais burras da nossa história. Balbina tem uma área quase igual a de Tucuruí e produz 30 vezes menos energia. Foi uma obra burra.
Não há nenhum planejamento sobre a nossa atividade econômica. Quais os minérios que precisamos e para quê? Quanto precisamos de soja e para quê? Parece que os chineses são os únicos que pensam e planejam neste mundo. Eu aposto que um chinês, com um dólar, faz cem vezes mais que um norte-americano, por uma simples razão: ele planeja. Se tem espaço para produzir 50 milhões de sapatos no mundo, eles produzem 50 milhões. Nos Estados Unidos e em outros países, cada empresa vai querer produzir 50 milhões e elas vão se matar entre si. O laissez-faire capitalista é um desperdício de energia e um criador de sofrimento. Com um pouquinho de planejamento, a iniciativa privada poderia, inclusive, sofrer menos. Não adianta querer 50 mil automóveis se o mercado só comporta 10 mil. Vemos isso aqui no Brasil.
Se o nosso principal objetivo é melhorar a qualidade de vida das pessoas é preciso orientar o nosso planejamento nesta direção. No entanto, o que vemos é tudo ser tratado como se houvesse uma única maneira de fazer as coisas. Um determinado interesse de um setor pode não ser de interesse comum. É preciso fazer o balanço total. Quando se anunciou a vinda da GM para Gravataí, eu disse para o então prefeito, recém-eleito, que ele não tinha como dizer não, pois seria decapitado, mas que ele deveria se preparar para os efeitos negativos na cidade. Ele e o secretário de planejamento acharam que eu estava exagerando. Eu disse o que ia acontecer na cidade em um período de dois anos e que, tudo o que a Prefeitura iria arrecadar não seria suficiente para dar conta dos custos sociais decorrentes da instalação da empresa. Cinco meses depois, encontrei esse secretário em uma reunião e ele me disse: “Milanez, nós gozamos de ti e da tua previsão, mas ti estava certo”.
Que problemas foram estes, exatamente?
Não sou contra, por princípio, a instalação desse tipo de empresa em um município. Pode até ser desejável em certas circunstâncias. Mas, quando você traz uma empresa com o nível de tecnologia da GM para um município como Gravataí, outras coisas vem junto, como profissionais de outros estados que chegam na cidade com dinheiro, passam a alugar e comprar casas, empurrando um setor da população para a periferia. A infra-estrutura urbana tem que crescer fazendo crescer as demandas e pressões sobre a prefeitura que ainda precisa financiar algumas coisas para garantir a permanência da empresa. Lembra que houve um leilão entre Guaíba e Gravataí? Gravataí era uma cidade bem equilibrada. Hoje, é uma cidade mais violenta com vários outros problemas sociais.
Você referiu antes o tema da presença de agrotóxicos na água. A questão dos riscos dos agrotóxicos costuma sensibilizar a maioria da população, mas normalmente se restringe à possibilidade de contaminação de alimentos ou de quem trabalha diretamente com a aplicação desses produtos. Essa ameaça da presença de agrotóxicos na água é real mesmo? Já estamos bebendo água contaminada com esses produtos?
Esse problema nos afeta totalmente hoje. É um problema mundial e existe um cinismo técnico-científico ao redor desse tema. Fala-se de qualidade de água como se bastasse fazer o controle de coliformes fecais para garantir a potabilidade, o que representa mais ou menos a idade da pedra em termos de qualidade de água. Praticamente todas as águas minerais têm alguma presença de coliformes fecais. Até um certo índice, não representam problema. Acima disso, pode causar problemas intestinais, mas não mata. O que os processos de tratamento da água fazem no mundo inteiro é agir sobre a carga orgânica matando as bactérias que vivem nela, normalmente usando cloro. Agrotóxicos, metais pesados e produtos componentes de plásticos provocam efeitos teratogênicos, carcinogênicos, hormonais e atuam como disruptores endócrinos.
Até bem pouco tempo atrás, quando essas substâncias eram contados em partes por milhão, sua presença era tão pequena que era desconsiderada. Só que nessas concentrações elementos como as dioxinas, por exemplo, destroem e matam a saúde e a vida.
Existem tecnologias hoje para detectar a presença dessas substâncias na água?
Sim, mas são caríssimas. Nos Estados Unidos, há municípios que divulgam ao final do ano uma lista com tudo o que foi detectado na água. Eu vi uma dessas listas, que tinha sete páginas de elementos identificados. As pessoas têm a possibilidade de saber o que estão tomando, não que isso adiante muito. Uma alternativa que temos é o uso do carvão ativado que retém muitas dessas substâncias. Como ele é um filtro químico, precisa ser trocado regularmente. Mas também é uma alternativa cara. Na minha casa, o que eu tenho de mais requintado é a filtragem de água. Eu tenho muito medo e sei do que tenho medo.
A Agapan traduziu para o português um documentário produzido pela BBC (“Assault on the Male”, Agressão ao Macho) que mostra que os homens, em 20 anos, perderam cerca de 50% de sua fertilidade, na Europa e nos Estados Unidos (ver vídeo abaixo). Aqui deve ser igual, só não temos os dados. Boa parte dessa geração que hoje tem dez, doze anos, já pode ser praticamente estéril, com um numero de espermatozóides insuficiente para se reproduzir naturalmente. Terão que fazer fertilização artificial e pode chegar a um ponto que nem isso adiante. Os dados dessa pesquisa foram escondidos do público na Inglaterra por dois anos, supostamente para não causar medo na população. Na verdade, foi para proteger a indústria do plástico.
Essa pesquisa fez uma coisa muito importante, que não se costumava fazer. Pegaram dez substâncias com índices considerados seguros, o que não é nada, pois ingerimos centenas de coisas. Os cientistas pegaram essas dez, todas com índices bem abaixo do permitido, e tiveram um efeito estrogênico gigantesco. Isso se chama sinergia e não se sabe quase nada sobre esse tipo de interação entre diferentes substâncias. E o mundo, cabe destacar, é totalmente sinérgico. Ninguém está ingerindo apenas um tipo de agrotóxico. Estamos tomando Roundup, 2,4 D, bisfenol, o plástico da garrafa PET e assim por diante. Esse documentário mostra que não há índice seguro.
O índice que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece como permitido para a presença de Roundup na soja, por exemplo, não é o que o ser humano pode ingerir sem ter doença, mas sim o que a tecnologia transgênica permite. Essa tecnologia aumentou duas vezes a quantidade de Roundup permitida na soja. A OMS, que deveria cuidar da saúde, não poderia dizer isso. Tinha que dizer claramente que nenhuma quantidade é segura. E as quantidades permitidas pelas novas tecnologias aumentaram cerca de 200 vezes. Ou seja, são 200 vezes mais perigosas. Tem uma coisa muito ruim acontecendo e isso não está sendo debatido pela sociedade.
Neste cenário, quais são, na tua avaliação, os desafios colocados para o movimento ambientalista. Houve uma tentativa no Brasil de criação de um Partido Verde que acabou se desvirtuando completamente. Do ponto de vista político, qual é a capacidade hoje do movimento ambientalista intervir nestas questões que estamos abordando aqui?
Desde o início fui contra essa ideia de ter um partido para tratar das questões ambientais. O Gabeira veio a Porto Alegre e reclamou que os gaúchos, que eram a pátria do movimento ambiental, não entravam no Partido Verde. Nós não aceitamos essa ideia e pensamos assim até hoje. Acreditamos que partidos de todas as posições têm que ter ambientalistas. É claro que algumas visões políticas são, digamos, mais harmônicas com essa agenda e outras nem tanto. A Rede, uma iniciativa mais recente, foi uma decepção gigante. Fez um percurso parecido com o PV. A mosca azul é muito forte. Por isso é preciso ter um processo de participação popular amplo, pois a mosca azul muda o comportamento das pessoas. Eu fiquei completamente decepcionado com a Marina, uma pessoa que conheço de perto. Cheguei a dizer que só podiam tê-la abduzido e devolvido outra pessoa parecida com ela. Essa não é a Marina que conheci, com quem muito almocei e tantas vezes dividi o quarto com o marido dela. Nunca vi uma mudança tão radical.
Pensando no futuro e em um novo projeto para o país, meio ambiente é algo que todos devem respeitar. Não se negocia a qualidade da água. Não tem essa de vamos piorar só um pouquinho pois se trata de uma atividade importante. Dizimar as nossas florestas? Não pode. Acabar com a nossa agricultura? Também não pode. É engraçado que a agricultura está destruindo a própria agricultura. Está ajudando a acabar com o clima que é essencial para a sua própria sobrevivência. Como nós somos um dos maiores países agrícolas do mundo, somos também um dos mais burros. Temos florestas delicadas e produtivas que estão sendo destruídos por uma lógica absolutamente burra.
A Amazônia é um dos lugares mais produtivos do mundo, sem a necessidade de qualquer grande investimento. Talvez só perca para a Mata Atlântica em produtividade. A produção de um hectare de castanha do Pará dá mais dinheiro do que a produção de carne, sendo que esta última exige grandes investimentos para destruir a floresta, plantar pastagens e em animais que não vão durar muito pois o clima não é fácil. Tudo isso para uma cultura que, em seis anos, vai entrar em decadência. Investe-se um monte para obter menos do que aquilo que já está pronto na floresta. Além disso, não há nenhum hectare da Amazônia que tenha só castanha do Pará. Também tem guaraná, borracha, dezenas de plantas medicinais e uma fauna fantástica. Nós vamos trocar isso por um projeto que vai devastar a floresta para ganhar menos em seis anos. É uma estupidez querer fazer pecuária na Amazônia. O Brasil virou o paraíso do empreendedorismo idiota.
Vale o mesmo para a nossa Mata Atlântica que, em um mesmo hectare, tem açaí, pitanga, goiaba, uvaia, guabiroba e tantas outras frutas que todo mundo gostaria de ter. Felizmente, começamos a ter agora projetos de agroecologia que estão valorizando essas plantas.
Olhando para a realidade local, aqui em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul, como definiria a nossa situação?
É uma pena o que está acontecendo em Porto Alegre. Nós acertamos em criar o Orçamento Participativo, tanto que o mundo passou a se referenciar em Porto Alegre neste tema. Infelizmente, essa experiência foi se enfraquecendo e se distorcendo. No início, foi uma coisa revolucionária, cercada por um grande entusiasmo e inversão de prioridades. Isso se perdeu. Agora, nós estamos recuperando o ruim de Porto Alegre e perdendo a alegria.
Eu acho que uma das coisas mais graves que está ocorrendo é que nós estamos morrendo por causa da alimentação. Pior ainda, já que morrer todos vamos morrer algum dia, estamos sofrendo por causa da alimentação. E nós temos tecnologia desenvolvida aqui no Rio Grande do Sul para fazer diferente: a biomineralização. Devemos essa tecnologia, em muito, a Sebastião Pinheiro, a toda a equipe do MST e a outras pessoas que ajudaram a desenvolvê-la. Hoje temos tecnologia para que toda a nossa agricultura seja orgânica. Poderíamos nos tornar totalmente auto-suficientes e parar de importar potássio e outras porcarias para fazer esses adubos químicos que são uma estupidez, onde se aproveita 1% ou 2% e o resto vai poluir as águas. O Brasil, que tem uma das maiores áreas agrícolas do mundo, poderia fazer toda sua agricultura orgânica, como a Rússia e a Dinamarca já disseram que vão fazer. Temos uma condição infinitamente melhor que a Rússia e a Dinamarca para dar esse passo.
O que falta para enxergar isso? Quando aprovamos a Lei dos Agrotóxicos na Assembleia Legislativa, muita gente disse que ela iria acabar com a agricultura no Rio Grande do Sul. Na outra semana, a Du Pont lançou o Dipel, um inseticida biológico.
Nós criamos um sistema perverso e há duas maneiras básicas de controlá-lo: ou pela lei, proibindo o que é indesejado para as pessoas, ou por meio das escolhas de consumo dos cidadãos. Esse segundo caminho é mais moderado. Em primeiro lugar, devemos proibir os produtos mais perigosos para que as pessoas não morram intoxicadas. Ao mesmo tempo, precisamos educar as pessoas para que elas mudem suas escolhas de consumo e debater as nossas escolhas de produção. Não basta o argumento de que determinada cultura dá mais dinheiro. Se for assim, deveríamos começar a plantar coca, maconha e papoula. O mesmo vale para a soja, que sequer é um alimento. Na verdade, é um anti-alimento, um disruptor endócrino descalcificante. É uma estupidez. Só os orientais, com sua sabedoria milenar, sabem preparar essa coisa por meio de fermentações, com menos danos.
Se mudássemos a alimentação brasileira o SUS seria o melhor sistema de saúde do mundo. Hoje, a maioria dos recursos do SUS são gastos com a externalização dos custos sociais do lucro de algumas atividades produtivas. E essas enfermidades – como diabetes, câncer e doenças cardíacas – são as de tratamento mais caro. As doenças infecciosas, em geral, tem um tratamento muito mais simples e barato. O tratamento das doenças degenerativas é para o resto da vida e elas estão atingindo pessoas cada vez mais jovens. O Hospital de Câncer Infantil de Porto Alegre está lotado. Ninguém se pergunta o que está acontecendo?
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Francisco Milanez: ‘Estamos sofrendo e morrendo por causa da alimentação. É um modelo perverso’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU