31 Mai 2017
Cartaz da edição brasileira do livro 'Sobre a tirania'
feito por Alceu Chierosin Nunes/Divulgação
"É muito duro viver um cotidiano de exceção. É muito duro atravessar o presente aos sobressaltos. É muito duro perder a ilusão de que sabemos minimamente o dia de amanhã. É muito duro planejar algo com base numa realidade e, em seguida, tudo muda e o que foi programado caduca. Nossos instintos mais básicos nos induzem a desejar que isso acabe o mais rápido possível, mesmo que para isso tenhamos de abrir mão de direitos conquistados com muita dificuldade. Nossos instintos mais primitivos nos mandam aderir a qualquer um que prometa “dar um jeito nisso tudo que taí", escreve Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, em artigo publicado por El País, 29-05-2017.
O sobressalto encarnou-se nos dias. Não é mais inerente ao cotidiano, mas o próprio cotidiano. Temos vivido no Brasil (e acredito que em boa parte do mundo), aos espasmos. Um espasmo, outro espasmo, mais um espasmo. A cada noite, dormimos (ou tentamos dormir) sem saber o que acontecerá no país. Ou mesmo com qual presidente o dia terminará. Não há mais como imaginar o dia de amanhã. Às vezes, não dá para imaginar a hora seguinte. O sobressalto tece a experiência – tanto a coletiva, a maneira como estamos com os outros, como a individual, nosso modo de estar consigo mesmos. Acusamos o impacto nas nossas vísceras, o sentimos na ansiedade misturada aos goles de café, mas não somos capazes de dimensionar. É assim que a exceção vai se infiltrando nas horas – e também nas almas. E é assim também que ela mina a nossa resistência. Como persistir, então?
O controle é, desde sempre, uma ilusão. Mas em momentos como este, estamos além da possibilidade de ilusão. Se isso não é novo na história da humanidade, e obviamente não é, há algo que acentua e amplia essa percepção da realidade, que é a vida conectada pela internet, em que segundo a segundo algo salta na tela para contar de um sobressalto, sobressaltando. E, sobressaltados, replicamos o que nos sobressalta, sobressaltando outros. E, assim, criamos um mundo de gente que suspende a respiração – e às vezes também o pensamento.
Em épocas como esta, as armadilhas são várias. E talvez a maior delas esteja na reação. Há uma diferença entre reagir por reflexão – e reagir por reflexo. A reação por reflexo obedece à mesma lógica de alguém que se coça ao sentir a picada de um pernilongo. Assemelha-se a uma resposta sem pensamento, rápida como um “curtir” das redes sociais. É difícil alcançar qual é o efeito de uma reação generalizada por reflexo. Mas é importante perceber que, neste momento, há parcelas da sociedade que disputam o poder – ou lutam para mantê-lo – que reagem com pensamento e reagem com planejamento. E parte do seu pensamento e do seu planejamento é contar com o fato de que a maioria seguirá reagindo por reflexo.
No tempo da aceleração, o que se infiltra nas horas é esta sensação de anormalidade que não passa. Convertida num presente contínuo, é como se o dia seguinte nunca chegasse. O risco é que, para recuperar a “normalidade”, qualquer normalidade, se aceite o inaceitável. Quanto maior for o anseio por “normalidade”, mesmo que ilusória, mais as pessoas e grupos tornam-se dispostos a conceder e a perder direitos. E é aí que mora o perigo.
Resistir neste momento é também deixar de reagir por reflexo – e passar a reagir a partir da reflexão. Quando tudo parece caótico, quando tudo fica meio misturado e parecido, é preciso olhar para os fatos. Olhar para os fatos com toda a atenção. São eles que nos apontam onde estão as verdades e nos ajudam a enxergar onde está a manipulação, assim como a falsificação. O pensamento é ainda a melhor forma de resistência.
Há um livro que pode nos ajudar a pensar sobre este momento. Sobre a tirania – Vinte lições do século XX para o presente será lançado pela Companhia das Letras no início de junho. Perturbado pela chocante eleição de Donald Trump, Timothy Snyder, professor de história da universidade de Yale, postou um texto no Facebook que se tornou viral. Ele começava assim: “Os americanos não são mais sábios que os europeus, que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo. Nossa única vantagem é ser capaz de aprender com a experiência deles”. O texto foi ampliado e se tornou um livro best-seller nos Estados Unidos, já convertido para várias línguas. Agora chega ao Brasil, traduzido por Donaldson M. Garschagen.
Cartaz feito por Tereza Bettinardi/Divulgação
“A maior parte do poder concedido ao autoritarismo é concedida voluntariamente”, diz Timothy Snyder. É justamente o que vamos deixando que façam por comodismo ou pela esperança de que a exceção sobre apenas para os outros. Ou, pior: na expectativa de obter alguma vantagem para nós mesmos ou para o grupo que representamos. É no que o autor chama de “política do dia a dia” que a gente vai concedendo o que jamais deveríamos conceder. É também na política do dia a dia que podemos impedir que o autoritarismo avance. É nos momentos de gravidade que cada um precisa radicalizar a sua ética.
Entre os vários exemplos, o autor lembra que o holocausto judeu não teria sido possível sem a adesão do cidadão comum. E essa adesão vai acontecendo aos poucos. Quando olhamos para o assassinato de seis milhões de judeus, além de ciganos, homossexuais, pessoas com algum tipo de deficiência física ou mental, a maioria acha que só um monstro seria capaz de endossar tal barbárie. Mas ela foi o fim de um processo que só se tornou possível por uma série de pequenas adesões e concessões cotidianas da qual participou a maior parte da população não judia.
O futuro que resultou deste passado de concessões e adesões foi o extermínio de seis milhões de pessoas. Mas podemos ter certeza de que o cidadão que cometeu sua primeira omissão ou tirou sua primeira pequena vantagem dos acontecimentos jamais teria imaginado que no futuro próximo caminharia sobre cadáveres. E podemos ter certeza de que a maior parte destas pessoas não se achava apenas cidadão, mas um pouco mais: “cidadão do bem”. Os monstros, afinal, eram os judeus.
O horror não aconteceu de uma vez. O horror foi acontecendo um pouco por dia, o horror foi acontecendo um pouco mais a cada dia. Na primeira vez que alguém atravessou a rua para não cruzar com um judeu até então amigo. Na pequena vingança pessoal feita por inveja do outro melhor sucedido nos estudos, nos negócios, nas relações amorosas. Na vantagem que comerciantes não judeus poderiam tirar – e tiraram – ao eliminar a concorrência. Em algo mais trivial, mas terrível, que é se calar diante do que fazem ao seu vizinho em nome de salvar a própria pele. No pedido de ajuda recusado, na porta na cara.
Nenhuma das grandes barbáries da história humana foi consumada sem o silêncio da maioria. E o silêncio sempre se inicia no cotidiano.
Silenciar é o primeiro ato de desumanização do outro – e é amplamente praticado agora mesmo no Brasil. Aqui, poderíamos escrever vários livros sobre as concessões feitas ao autoritarismo antes e hoje. Cada brasileiro que se horrorizar com alguma barbárie cometida em outro lugar, antes e hoje, deveria se perguntar com honestidade o que faz diante dos milhares de cadáveres de jovens negros que morrem assassinados nas periferias – parte deles por balas pagas com dinheiro público, disparadas por um policial militar. É importante denunciar o genocídio cometido longe, desde que você não se esqueça daquele que permite que aconteça no seu quintal.
Neste momento, há uma outra desumanização em curso no Brasil. E é preciso ficar muito atento a ela. Agora que os protestos voltaram a ocupar as ruas do país depois da divulgação da conversa entre um empresário investigado e o vice que virou presidente por conta de um impeachment, vale a pena cada um se perguntar quem vandaliza o quê neste país antes de começar a chamar o outro de “vândalo”. Porque um dia, e ele pode não demorar, o “vândalo” pode ser você.
A estratégia de desumanização contida na palavra “vândalo”, que apaga qualquer nuance e elimina contexto e circunstâncias, foi estabelecida nos protestos de junho de 2013 e é reeditada sempre que o conteúdo das manifestações contraria interesses dominantes. Neste momento, setores da sociedade brasileira dedicados a disputar o poder – ou a se manter no poder – querem barrar qualquer possibilidade de eleições diretas após a provável cassação ou impeachment ou renúncia de Michel Temer. Usam – e especialmente abusam – da estratégia de transformar manifestante em “vândalo” – e reprimir as manifestações com violência para que as pessoas tenham medo de ir para as ruas pedir “diretas já”.
A expressão mais evidente do autoritarismo que a maioria aceita e inclusive apoia neste país, o autoritarismo entranhado no cotidiano e assumido como normalidade, é o abuso da Polícia Militar. E mais uma vez este abuso é usado estrategicamente contra o cidadão para garantir os interesses de manutenção do poder. Nem uma vez deveria ser aceito que um representante desta instituição ferisse um manifestante ou acabasse com uma manifestação com bombas de gás, spray de pimenta e balas de borracha. Mas isso é aceito como natural – e é chamado de “confronto” ou, conforme o caso, de “dispersão”. E isso fere a legalidade a cada vez – e permitimos.
Se observarmos as narrativas de parte da imprensa, ao mesmo tempo coautora e difusora das palavras de ordem “vândalo” e “confronto”, percebe-se que a PM tem um lugar no mínimo peculiar nas manifestações. É como se a qualquer minuto a força de segurança do Estado pudesse se descontrolar e acabar com tudo. E isso é encarado como algo natural por quem narra.
Esquece-se, por conveniência, que a PM está ali também para garantir o direito constitucional à manifestação, está ali para garantir que os manifestantes possam se manifestar, está ali para proteger os manifestantes. E esquece-se que, caso alguém cometa uma violência, a PM está ali para contê-la também para que a manifestação possa continuar. Mas trata-se como se aqueles chamados “vândalos” e a PM fossem forças iguais, ocupando a mesma posição simbólica. Mas não é uma briga entre gangues rivais. A PM é Estado. E está ali para proteger os cidadãos – e não para vandalizá-los.
Cada vez que a PM acaba com uma manifestação a bombas de gás, cada vez que a imprensa chama de “confronto” a incapacidade de a polícia conter pessoas que usam o recurso da violência sem ela mesma ampliar e expandir a violência, cada vez que eu e você ficamos calados, o Brasil dá um passo adiante no caminho do autoritarismo. Um país que permite que um policial, funcionário público portanto, arrebente a cabeça de um manifestante, como aconteceu num protesto em Goiânia, é um país que já está mergulhado no autoritarismo. Um país que não para quando a PM usa armamento letal numa manifestação, ferindo pessoas, como aconteceu em Brasília, é um país que já naturalizou a tirania.
No Brasil, a pena de morte não é permitida pela lei, mas é amplamente praticada por agentes do Estado sob a justificativa de “confronto”. É importante perceber como a mesma estratégia é utilizada nas manifestações e na cobertura das manifestações. Quem diz que “bandido bom é bandido morto” passou a ampliar esse entendimento ao aceitar – ou mesmo apoiar – que “vândalo” pode ser ferido. E, mais uma vez, a justificativa é a do “confronto”. Do morto “em confronto” (sempre os pobres, a maioria negros) se passa para o ferido “em confronto” nas manifestações. Desumaniza-se para matar cotidianamente nas periferias urbanas, desumaniza-se agora para ferir nas manifestações. A cada vez que silenciamos diante disso, abrimos mão de nossos direitos, rasgamos a Constituição e podemos ter certeza de que o dia seguinte será pior. No sobressalto seguinte, vale a pena repetir, o “vândalo” poderá ser você.
Existe quem não apoia a repressão aos manifestantes, mas acredita que tudo se deve apenas ao despreparo da Polícia Militar. Mas, se é um fato que a polícia é despreparada, é ingenuidade deixar de perceber que esse despreparo é instrumentalizado. E é também seletivo. Mais do que despreparo, é um modo de tratar manifestações cujo conteúdo é inconveniente para quem detém o poder. Neste sentido, a PM se transforma numa força ideológica. Vale lembrar ainda que despreparado não deve portar arma, muito menos representando o Estado.
Há dois efeitos bem convenientes para quem quer acabar com manifestações que contrariam seus interesses de perpetuação no poder: transformar protesto em “baderna” – a terceira palavra do triunvirato autoritário no trato das manifestações – e tirar as pessoas das ruas, já que muita gente passa a ter medo de ser ferida e acaba ficando em casa. Pense, desconfie, preste atenção ao que os fatos mostram.
Em Sobre a tirania, o autor dá um bom conselho: “Evite proferir as frases que todo mundo usa”. E o meu é: pense bem antes de chamar o outro de “vândalo”, repressão de “confronto” e manifestação de “baderna”. Você pode pensar que está a salvo, que só vai acontecer com os outros, mas a história mostra que não é assim que o autoritarismo evolui.
A convocação do Exército feita por Temer, um ato de autoritarismo mas também de estupidez por parte de um governante acuado, foi fortemente criticada. O presidente investigado por corrupção, obstrução da justiça e participação em organização criminosa e seu grupo, composto por vários investigados, recuaram. O que é urgente perceber é que a Polícia Militar já vandaliza as ruas, assim como vandaliza o direito de pedir “diretas já”. É para estes militares com autorização para estar nas ruas, para estes que deveriam estar protegendo os direitos constitucionais e, em vez disso, estão vandalizando a democracia, em nome do Estado mas a serviço de interesses particulares, que é preciso olhar. E reagir com reflexão.
Ao falar sobre a realidade americana a partir da experiência histórica, Timothy Snyder faz alguns comentários que ecoam bastante aqui. Em 2 de fevereiro de 1933, por exemplo, um jornal de judeus alemães escreveu o seguinte: “Não concordamos com a opinião de que Herr Hitler e seus amigos, que agora conquistaram, finalmente, o poder que por tanto tempo desejaram, vão por em prática as propostas que circulam. Eles não privarão, de repente, os judeus alemães de seus direitos constitucionais, não os juntarão em guetos, nem os submeterão aos impulsos invejosos e homicidas da multidão. Não podem agir assim porque diversos fatores cruciais impõem restrições aos que detêm o poder”.
Alguma semelhança com páginas de jornais brasileiros nos últimos tempos? O autor de Sobre a tirania acredita que, nos Estados Unidos, semelhanças existem. Ele escreve: “Esse era o posicionamento de muitas pessoas sensatas em 1933, e é o posicionamento de muitas pessoas sensatas hoje. O erro está em presumir que os governantes que chegaram ao poder por meio das instituições não possam mudar ou destruir essas mesmas instituições”. E, logo adiante: “Às vezes as instituições perdem a vitalidade e a função, são transformadas em simulacros do que foram um dia, passando a fortalecer a nova ordem, em vez de atuarem como um foco de resistência”.
Para quem se pergunta qual é o seu papel num momento como este, alguns trechos podem ser iluminadores: “Quando os líderes políticos dão um exemplo negativo, os compromissos profissionais com uma prática honesta tornam-se mais importantes. (...) Os governos autoritários precisam de funcionários públicos obedientes, e os comandantes dos campos de concentração procuravam empresários interessados em mão de obra barata. (...) Se os advogados tivessem seguido a norma que proibia execuções sem julgamentos, se os médicos tivessem obedecido à regra que proíbe cirurgias sem consentimento, se os executivos tivessem endossado a proibição da escravidão e se os burocratas tivessem se recusado a processar a documentação que envolvia os assassinatos, o regime nazista teria enfrentado muito mais dificuldades para dar cabo das atrocidades pelas quais é lembrado”.
E conclui: “A ética profissional deve nos guiar precisamente quando nos dizem que a situação é excepcional. Nesse caso ninguém pode dizer que estava ‘apenas seguindo ordens’. Por outro lado, se os profissionais liberais confundem sua ética específica com as emoções do momento, podem acabar dizendo e fazendo coisas que antes teriam julgado inimagináveis”.
Em Sobre a tirania, há algo também para os policiais militares honestos – e eles existem, conheço alguns. Vale lembrar que honestidade é mais do que não roubar ou embolsar propina. Honestidade é proteger a vida humana, mais do que as coisas, e é proteger a Constituição. “Os regimes autoritários em geral contam com uma força policial de choque, cuja tarefa consiste em dispersar cidadãos que procuram protestar”, lembra o autor. Há um capítulo dedicado a mostrar como policiais e soldados foram instrumentalizados para servir ao nazismo e também ao “Grande Terror” na União Soviética. Para os policiais dispostos a defender a Constituição também no Brasil, ele dá a dica: “Se você é obrigado a portar uma arma no serviço público, que Deus o proteja e guarde. Mas saiba que males do passado envolveram policiais e soldados que um dia se viram cometendo atos irregulares. Esteja pronto para dizer não”.
“Abandonar os fatos é abandonar a liberdade”, diz o autor de Sobre a tirania. No Brasil, um exercício importante é ver o que continua em vigor apesar da situação insustentável de Michel Temer. Enquanto a crise ocupa as principais manchetes, há uma outra camada de acontecimentos que segue seu curso imperturbável.
Em plena convulsão do país, o Senado reduziu a proteção ambiental de 600 mil hectares de floresta amazônica, no Pará, e arrancou mais de 10 mil hectares do Parque Nacional São Joaquim, em Santa Catarina. Com o pretexto de fazer a “regularização fundiária”, a Câmara aprovou uma medida provisória que, na prática, permite a legalização da grilagem: aqueles que abocanharam áreas públicas podem reivindicar a titulação de até 2,5 mil hectares de terra. A bancada ruralista tenta fazer avançar no Congresso o afrouxamento das regras de licenciamento ambiental,mostrando que tragédias como a de Mariana importam menos do que os interesses privados de grupos no poder. A polícia matou 10 trabalhadores rurais em Pau D’Arco, no Pará. A ação chegou a ser noticiada como “confronto”, mas sobreviventes relatam tortura e execução.
Há um processo que não foi paralisado pela crise política. Enquanto Temer balança e há grande probabilidade de que caia, a república ruralista segue cada vez mais ágil e autônoma no Congresso. Segue literalmente arrancando pedaços da floresta, liberando terra pra gado e mineração, legalizando a apropriação de áreas públicas. É importante compreender: não se trata do agronegócio preocupado com os efeitos da mudança climática sobre a produção de alimentos e adepto das novas tecnologias de aproveitamento da terra, mas do velho modelo predatório que atravessa a história do Brasil. Embora tanto falem em “progresso”, é o atraso que botam em funcionamento. Não é uma coincidência que o delator do momento fez sua fortuna com bois, financiamento do BNDES e propinas a agentes públicos.
Há perguntas que precisam ser feitas na busca por respostas que não são fáceis de encontrar, mas que precisam ser buscadas: quem ganha e quem perde? Ou quem segue ganhando mesmo quando outros, que eram aliados até ontem, começam a perder? Siga os fatos.
Em geral se olha para o centro, mas tudo acontece primeiro nas periferias. As urbanas e também as do campo e da floresta. Assim como o que acontecia nos governos Lula-Dilma-PMDB se desenhava como ovo da serpente na construção financeira e política da hidrelétrica de Belo Monte, lá no meio do Xingu, hoje a sequência de episódios de violência, só aparentemente desconectados, sinaliza onde está o poder. Quem circula na Amazônia e outras partes distantes dos centros de decisão sente a tensão crescente, palpável nas ruas, no campo, na floresta e nos rios, porque sempre que parcelas da sociedade percebem que ficarão impunes, o tênue equilíbrio se quebra primeiro lá. E de forma mais direta, porque seus protagonistas disfarçam menos a truculência. É assim que os mais frágeis morrem primeiro.
Mais perguntas se impõem: quem, neste momento, se esforça para que, mesmo que Temer caia, nada mude? Por que grupos que articularam e/ou apoiaram o impeachment de uma presidente eleita, sem base legal para isso, agora consideram eleições diretas “uma afronta à Constituição”? As respostas não são fáceis num cenário tão nebuloso como o atual. Mas nossa chance de encontrá-las está nos fatos.
Há ainda uma outra pergunta importante: quem decide o que vazar, quando vazar e para quem vazar? E quais são os objetivos que movem essa decisão?
Por enquanto, o que parece mais claro é por que Joesley Batista gravou o presidente. Mas há bem mais para entender. Compreender não absolve Temer, pelo contrário. O que ele de fato disse é muito grave e incompatível com vestir a faixa presidencial. Mas compreender todos os aspectos envolvidos é o que pode fortalecer a luta pela democracia – e impedir que se troquem os atores mas a farsa continue a ser encenada.
Mover-se por reflexão – e não por reflexo – é mais difícil ainda num momento como este. Mas, de novo, o que temos como ponto de partida são fatos. O resto é “pós-verdade”, “narrativas alternativas”, reality-show disfarçado de noticiário. Em Sobre a tirania, o autor alerta: “a pós-verdade é o pré-fascismo”.
Vejam um exemplo em que os fatos nos dão pistas para compreender o que está bem na nossa frente. O político João Doria elegeu-se prefeito de São Paulo dizendo-se não político. A estratégia é um fenômeno do mundo globalizado, basta ver a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. A palavra do momento é “gestor”. Aceitando apenas como exercício que João Doria é o que diz ser – um gestor e não um político – o que sua recente ação na Cracolândia nos mostra, além da desumanização de pessoas?
É importante começar pelas perguntas mais simples. Um bom gestor derrubaria um prédio com gente dentro? Um bom gestor destruiria primeiro para encontrar alternativas para as pessoas depois? Se a Cracolândia apenas mudou de lugar, por que era importante liberar aquela parte do centro?
Sem esquecer a pergunta que deve nos acompanhar por bastante tempo e cuja resposta é crucial: a quem interessa destruir a política e convencer a população de que todos os políticos são corruptos e nenhum merece confiança? Ou: a quem interessa borrar as diferenças? Ou ainda: que interesses movem os políticos que se apresentam como não políticos?
Sigam os fatos, encontrem as respostas por si mesmos. Não saiam repetindo o que os outros dizem. Respeitem a própria inteligência. Vejam o que diz o autor de Sobre a tirania: “Renunciar à diferença entre o que se quer ouvir e o que de fato é verdadeiro é uma maneira de se submeter à tirania”.
A estratégia é bem popular no Brasil, disseminada por movimentos que se converteram em milícias digitais de direita que contam com milhões de seguidores e replicadores. Além de servirem ao que há de mais autoritário no país, parece evidente que estes grupos têm um gozo com a descoberta de que podem dizer qualquer absurdo como se fosse verdade que receberão milhões de “curtir”. Quando o conceito de “pós-verdade” passou a ser discutido em toda parte, claramente divertiram-se produzindo notícias falsas cujo conteúdo era dizer que as notícias verdadeiras eram as falsas. Em alguns momentos parecem crianças psicopatas brincando de manipulação, com a certeza de que não serão responsabilizadas.
O Brasil paga caro tanto pela destruição da educação pública como pela educação privada ter se tornado apenas um negócio lucrativo, reprodutor de segregação e de privilégios entre muros. Criou-se uma geração de indigentes intelectuais de todas as classes sociais que hoje não conseguem discernir o que é fato do que é falsificação, mas dispostos a aderir, a gritar e a linchar.
Como recuperar a capacidade de pensar e vencer a preguiça de ler num momento tão decisivo para o dia seguinte do país?
Timothy Snyder escreveu capítulos bem interessantes sobre a imprensa, sobre a TV e sobre as redes sociais. E faz uma bela e enfática defesa do jornalismo escrito e dos livros. Selecionei alguns trechos:
Sobre a TV:
“A televisão pretende superar a linguagem da política mediante a transmissão de imagens, mas os saltos sucessivos de um quadro a outro podem prejudicar um senso de conclusão. Tudo acontece depressa, mas nada acontece de verdade. Toda notícia do telejornal é ‘urgente’, mas só até ser desbancada pela notícia seguinte. Com isso, somos atingidos por uma onda atrás da outra, mas nunca vemos o oceano. (...) Consideramos esse transe coletivo uma coisa normal. Caímos nele lentamente”.
“No mundo bidimensional da internet, surgiram novas coletividades, invisíveis à luz do dia – tribos com diferentes visões de mundo, entregues a manipulações. (E, sim, há uma conspiração que se pode encontrar on-line: a conspiração para mantê-lo conectado, à procura de conspirações).
Sobre a imprensa escrita:
“Se por um lado qualquer pessoa pode passar adiante um artigo, pesquisar e escrever é um trabalho duro, que exige tempo e dinheiro. Antes de ridicularizar a ‘corrente dominante’ do jornalismo, observe que ela não é mais dominante. O que é dominante e fácil é a ridicularização, o jornalismo de verdade é restritivo e difícil. Por isso, experimente você mesmo escrever uma matéria digna do nome, que envolva ter trabalho no mundo real: viajar, entrevistar pessoas, manter relações com as fontes, pesquisar em arquivos, verificar tudo e revisar rascunhos, tudo isso dentro de um prazo apertado e inadiável. Se você achar que gosta, crie um blog. Nesse meio-tempo, dê crédito àqueles que fazem tudo isso para ganhar a vida. Os jornalistas não são pessoas perfeitas, da mesma forma que outros profissionais não são perfeitos. Mas o trabalho das pessoas que praticam um jornalismo ético tem uma qualidade diferente do jornalismo de quem não se preocupa com isso”.
Sobre a responsabilidade de quem curte, compartilha e replica textos, áudios e vídeos na internet:
“Se buscarmos os fatos, a internet nos proporciona um poder invejável de divulgá-los. (...) Como na era da internet todos nós somos editores, cada um de nós arca com uma certa responsabilidade privada pelo senso de verdade do público. Se adotarmos uma postura de seriedade na busca dos fatos, cada um de nós pode fazer uma pequena revolução na forma como a internet funciona. Se procurar por fatos comprovados, você não enviará informações falsas a outras pessoas. Se preferir acompanhar jornalistas nos quais tem motivos para confiar, pode também recomendar a outras pessoas o que eles publicaram. Se retuitar somente o trabalho de pessoas que respeitam protocolos jornalísticos, é menos provável que você rebaixe seu pensamento interagindo com robôs ou trolls. Não vemos as mentes que prejudicamos quando publicamos informações falsas, mas isso não quer dizer que não lhes façamos mal. (...) Se aprendemos a não violentar a mente de desconhecidos na internet, outros aprenderão a fazer o mesmo”.
O autor aconselha: “Reflita sozinho sobre as coisas. Dedique mais tempo aos artigos longos. (...) Responsabilize-se pelo que você comunica às pessoas”.
Cartaz feito por Rodrigo Maroja/Divulgação
É muito duro viver um cotidiano de exceção. É muito duro atravessar o presente aos sobressaltos. É muito duro perder a ilusão de que sabemos minimamente o dia de amanhã. É muito duro planejar algo com base numa realidade e, em seguida, tudo muda e o que foi programado caduca. Nossos instintos mais básicos nos induzem a desejar que isso acabe o mais rápido possível, mesmo que para isso tenhamos de abrir mão de direitos conquistados com muita dificuldade. Nossos instintos mais primitivos nos mandam aderir a qualquer um que prometa “dar um jeito nisso tudo que taí”.
Mas que bom que nossa espécie pensa – e não apenas reage. E então podemos refletir e perceber que o que hoje é difícil pode ficar mais difícil por muito mais tempo se aderirmos a um projeto autoritário e virarmos as costas ao dever de fazer perguntas, das mais simples às mais espinhosas. Como escreve Timothy Snyder, “as pessoas que lhe garantem que você só ganha segurança em troca da liberdade em geral querem negar-lhe ambas”.
Tudo poderá ficar difícil por muito mais tempo se renunciarmos ao imperativo ético de pensar – e de assumir a nossa responsabilidade como cidadãos. “Compreender um momento é ver a possibilidade de participar da criação de outro momento”, escreve o autor de Sobre a tirania. “A história nos permite sermos responsáveis não por tudo, mas por alguma coisa.”
Termino com um trecho do livro particularmente inspirador para o atual momento do Brasil:
“O poder deseja que seu corpo amoleça na poltrona e que suas emoções se dissipem na tela. Saia de casa. Leve seu corpo a lugares desconhecidos, onde vivem pessoas desconhecidas. Faça novos amigos e se manifeste junto deles. (...) Nada é real se não acaba nas ruas”.
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Cotidiano de exceção. Como lutar pela democracia aprendendo sobre a tirania - Instituto Humanitas Unisinos - IHU