14 Agosto 2016
“Fazer cinema sobre o Holocausto é uma forma de indagar como é possível que um povo – nessa ocasião o povo alemão – possa ter chegado a dar sustentação e legitimação às práticas mais violentas, cruéis e brutais contra outros povos e outros seres humanos”, frisa o psicanalista
Capa do Filme / Foto: Divulgação |
Manter a memória à vista e o exercício reflexivo acerca da ética e das crueldades que a humanidade já foi capaz de cometer, como o Holocausto. Ao longo da história a linguagem cinematográfica tem se configurado como um espaço instigante para cumprir esses papéis. Conforme aponta o psicanalista Alfredo Jerusalinsky em entrevista por e-mail à IHU On-Line, “como acontece com toda produção literária quando é de ficção, ela permite registrar os efeitos trágicos e subjetivos de qualquer evento real. No caso do Holocausto, fazer cinema a seu respeito é uma forma de indagar como é possível que um povo – nessa ocasião o povo alemão – possa ter chegado a dar sustentação e legitimação às práticas mais violentas, cruéis e brutais contra outros povos e outros seres humanos. O Holocausto não fez somente vítimas os judeus, mas também negros, ciganos, deficientes de todo tipo, opositores políticos e prisioneiros de guerra”, explica.
Para Jerusalinsky, a fruição de produções cinematográficas que tratam de temas como o Holocausto oferece a oportunidade de o espectador “perceber os efeitos de identificação com os personagens e como essas identificações impõem uma profunda revisão da ética em que cada um justifica os atos de sua vida. Trata-se, então, de uma memória que nessa condição se torna viva e atual”, ressalta.
Ao longo da entrevista, o psicanalista analisa a obra Bastardos Inglórios (Estados Unidos, 2009), dirigida por Quentin Tarantino. Segundo o estudioso, o filme “é uma tentativa de devolver alguma dignidade ao povo judeu perante as humilhações sofridas durante a Segunda Guerra Mundial. Os filmes que narram a rebelião do Gueto de Varsóvia e a tentativa de rebelião em Auschwitz Birkenau II quando já estava próxima a derrota do Terceiro Reich, tem o mesmo propósito. Tarantino o faz numa ficção a seu modo: a dignidade se encarna sempre num mocinho sanguinário”, conclui.
Alfredo Jerusalinsky é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutor em Educação e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo - USP. Integra a Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, a Association Lacaniènne Internationale – ALI e o Centro de Estudos Psicanalíticos – CEP e também é membro da direção do Centro Lydia Coriat, de Porto Alegre e de Buenos Aires. De sua vasta bibliografia, destacamos La formación del psicoanalista (Buenos Aires: Editora Nueva Visión, 1989), Psicanálise e desenvolvimento infantil (2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998), Para entender al niño, claves psicoanalíticas (Quito: Ediciones ABYA-YALA, 2003) e Quem fala na língua?: sobre as psicopatologias da fala (Bahia: Ágalma, 2004).
Confira a entrevista.
Foto: You Tube |
IHU On-Line – Qual é a importância de retratar o tema do Holocausto no cinema?
Alfredo Jerusalinsky - O cinema é uma das formas mais importantes de literatura e da historiografia contemporâneas. O Holocausto foi um acontecimento inédito na história da humanidade. Nunca até então um Estado moderno tinha disposto o extermínio de um povo inteiro - o que denominamos com propriedade “genocídio”.
Como acontece com toda produção literária quando é de ficção, ela permite registrar os efeitos trágicos e subjetivos de qualquer evento real. No caso do Holocausto, fazer cinema a seu respeito é uma forma de indagar como é possível que um povo – nessa ocasião o povo alemão – possa ter chegado a dar sustentação e legitimação às práticas mais violentas, cruéis e brutais contra outros povos e outros seres humanos. O Holocausto não fez somente vítimas os judeus, mas também negros, ciganos, deficientes de todo tipo, opositores políticos e prisioneiros de guerra.
IHU On-Line – Como a linguagem cinematográfica pode contribuir para a construção de uma memória dessa triste passagem da história mundial?
Alfredo Jerusalinsky - Essa linguagem se apresenta até agora fundamentalmente em três vertentes: Documental, Narrativa, Ficcional, sendo que as variantes de gênero multiplicam significativamente essas vertentes. As contribuições para a memória do Holocausto têm expressões nessas três vertentes. Por exemplo, “Shoah” (Documentário de Claude Lanzmann, 9 horas e 26 minutos de documentos com o testemunho de sobreviventes e o registro de cenas dos campos de concentração, original de 1965 e lançado em Paris em 1985), “Noite e Neblina” (documentário estreado em 1955, de Alain Renais), “Suíte Francesa” (Direção de Saúl Dibb. Narrativa que resgata um romance escrito por Irene Nemirovsky durante a ocupação nazi na França acerca da resistência e a perseguição aos judeus, sendo possível que se trate de um episódio real), “O Pianista” (relato da sobrevivência do pianista Szpilman enquanto sua família era deportada para os campos de concentração na Polônia), “O menino do pijama listrado” (ficção acerca do modo em que crianças de ambos os lados do arame farpado poderiam vivenciar a discriminação inumana).
Quem participe da projeção desses exemplos poderá perceber os efeitos de identificação com os personagens e como essas identificações impõem uma profunda revisão da ética em que cada um justifica os atos de sua vida. Trata-se, então, de uma memória que nessa condição se torna viva e atual.
IHU On-Line – De que maneira você avalia o modo como é retratado o holocausto em Bastardos Inglórios?
Alfredo Jerusalinsky - É uma tentativa de devolver alguma dignidade ao povo judeu perante as humilhações sofridas durante a Segunda Guerra Mundial . Os filmes que narram a rebelião do Gueto de Varsóvia e a tentativa de rebelião em Auschwitz Birkenau II quando já estava próxima a derrota do Terceiro Reich, tem o mesmo propósito. Tarantino o faz numa ficção a seu modo: a dignidade se encarna sempre num mocinho sanguinário.
"Bastardos Inglórios é uma tentativa de devolver alguma dignidade ao povo judeu perante as humilhações sofridas durante a Segunda Guerra Mundial" |
IHU On-Line – Qual é a questão de fundo retratada em Bastardos Inglórios?
Alfredo Jerusalinsky - É uma questão ética: quanta violência (se fosse uma matéria passível de cálculo) tem direito a exercer o representante de um povo que está sendo ostensivamente e brutalmente massacrado pelo simples fato de que – segundo a ideologia do agressor – esse povo representa o diabo e deve ser exterminado (veja-se o livro publicado em 1937 por dois peritos raciais alemães – J.Keller e Hans Andersen – “The Jew as a criminal” (Berlin/Leipzig: Nibelungen-Verlag, 1937)).
A intimidação produzida entre os alemães judeus pelos decretos de Nuremberg (que cancelavam todos os direitos sociais, econômicos e políticos dos judeus – 1938) seguida da adoção da “Solução Final” aprovada por Hitler em 1941, que fora aperfeiçoada na Conferência de Wannsee em 20/01/1942 – na qual participaram os Ministros de Justiça (valha a ironia) e de Relações Exteriores, o Ministro de Propaganda do Terceiro Reich Heinrich Himmler e Reinhard Heydrich, principal representante do chefe das SS. Então, essa intimidação seguida de atos criminosos em massa teria merecido alguma resposta intimidatória que inibisse sequer em alguma proporção a bestialidade posta em jogo? Essa é a questão de fundo retratada em “Bastardos Inglórios”.
IHU On-Line – O clima intenso de suspense e tensão também está presente ao longo do filme, extrapolando os diálogos e se evidenciando também nos silêncios e gestos das personagens e no andamento da narrativa. Essa atmosfera de tensão contribui para a recuperação de um tempo passado? De que forma?
Alfredo Jerusalinsky - No cinema toda extrapolação, as vacilações, os silêncios, as transposições temporais e o suspense tem a função de provocar a emergência do desejo do espectador que, desse modo, fica imaginariamente responsabilizado pelo que na tela acontece. Tarantino sabe comprometer o espectador como Hitchcock ou Woody Allen (cada um no seu estilo).
IHU On-Line – Em Bastardos Inglórios a imagem construída dos judeus vai além da vitimização, mostrando a reação dessas pessoas à violência sofrida durante o nazismo. Que construção simbólica dos judeus está em jogo nessa narrativa?
Alfredo Jerusalinsky - Um povo que mantém a sua identidade e suas tradições ao longo de quase 6 mil anos, que tem atravessado a dispersão (a Diáspora), a destruição de seus templos, a perda de seus reis e suas terras, e sobrevivido às mais diversas formas de opressão e tentativas de extermínio, certamente não tem vocação de vítima. Apenas tem um profundo respeito pela vida do semelhante e um indestrutível respeito pela lei e a palavra.
IHU On-Line – Além da violência, entre os eixos centrais da narrativa de Bastardos Inglórios, está a vingança. Que papéis esse elemento pode desempenhar na construção da memória do holocausto e no debate sobre o antissemitismo?
Alfredo Jerusalinsky - O relato ficcional de Bastardos Inglórios expressa mais um desejo do que uma realidade. Mas, ainda assim, devemos levar em conta que seus eventos ocorrem durante uma guerra. A guerra é uma das situações em que as paixões substituem estupidamente a racionalidade. Por isso há nela uma estética específica: assim como os amantes se perfumam para o encontro, os soldados marcham fazendo figuras de potência e se vestem com fardas brilhantes de heróis.
Porém, para encarnar o herói há uma condição ética (é surpreendente, mas a guerra também tem a sua ética): você não pode matar alguém indefeso nem praticar qualquer crueldade. É por isso que como saldo da Segunda Guerra Mundial não sobrou nenhum herói nas forças armadas da Alemanha apesar dos brilhantes uniformes que usavam. Não é necessário se vingar de quem se destrói a si mesmo pela falha ética de seus atos. Já capturar os criminosos de guerra prófugos para eles não ficarem impunes não constitui uma vingança, mas um ato de justiça. Quem não compreende isso e o utiliza como argumento contra o judaísmo podemos ter certeza de que já era antissemita antes do filme de Tarantino.
"Não esquecer que o Holocausto tem a finalidade de alimentar a consciência humana para que isso não se repita" |
IHU On-Line - Como pensar uma memória do Holocausto para além do ressentimento?
Alfredo Jerusalinsky - Não esquecer que o Holocausto tem a finalidade de alimentar a consciência humana para que isso não se repita. Tenho uma profunda admiração pelo pensamento alemão e considero penoso que um psicopata perverso como Adolf Hitler (involuntariamente ajudado pela voracidade econômica e covardia política da Entente capitalista) tenha conseguido fascinar o povo alemão desviando e destruindo grande parte de sua maravilhosa produção intelectual (Marx, Freud, Goethe, Rosa Luxemburgo, Adorno, Benjamin, Jaspers, Wagner, Husserl, entre muitos outros). Certamente as novas gerações estão fazendo um formidável esforço para se distanciar daquela barbárie. Pelo bem de todos nós lhes desejo a melhor das sortes.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo que não tenha sido questionado?
Alfredo Jerusalinsky - Há um detalhe no filme de Tarantino que demonstra sua sensibilidade e inteligência. O chefe do pelotão dos Bastardos é um descendente de apaches, representante, então, de uma minoria étnica ainda segregada nos Estados Unidos da América. Uma mensagem ao inconsciente do povo norte-americano: cuidado – dize o hollywoodense Tarantino –, podemos (Trump mediante) estar a um passo de fazer o mesmo que aqueles nazistas fizeram, embora as vítimas, é claro, não seriam as mesmas.
Por Leslie Chaves
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A memória viva na identificação dos traços de humanidade na atmosfera da barbárie. Entrevista especial com Alfredo Jerusalinsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU