28 Abril 2017
"A situação de Aurytha é a mesma de muitos indígenas que vem para “a cidade grande” por motivos diversos e aqui tentam estudar ou trabalhar. Ao contrário do que imagina a maioria da população, nem todos os indígenas vivem em aldeias. No município de São Paulo, por exemplo, somente os Guarani têm aldeias, nas regiões de Parelheiros e do Jaraguá", escreve Nayá Fernandes, jornalista, formada em filosofia e teologia e pós-graduada em jornalismo literário. Desenvolveu projetos no Vale do Jequitinhonha (MG) e na Amazônia, em artigo que publicamos a seguir.
Eis o artigo.
A bebida do povo Tabajara é o Mocororó. Ela é feita somente com o sumo do caju, que é espremido na mão e colocado numa cuia que fica embaixo da terra por sete dias. “Para tirar a cuida da terra é preciso realizar um ritual, o Toré. São duas rodas. Na roda central ficam o tambor e as lideranças indígenas, entre elas o cacique o e pajé. Também as pessoas que precisam ser curadas de alguma doença ficam no centro, recebendo a energia de todos os que estão na roda externa”, contou Aurytha Tabajara, que tem 37 anos e deixou a aldeia Imburana, no Ceará, onde nasceu, há 7 anos.
Aurytha estava no Pateo da Cruz, no campus da PUC-SP, em Perdizes, vestida com uma blusa verde e usando brincos e colar de penas e sementes. Durante o intervalo do cursinho pré-vestibular que faz na Universidade, em preparação para a prova que pretende prestar no fim deste ano, ela falou com a reportagem. Na capital paulista, a indígena do povo Tabajara divide o aluguel com uma prima, no bairro do Jabaquara, e já trabalhou numa empresa de telemarketing, como babá, cuidadora de idosos e diarista.
A situação de Aurytha é a mesma de muitos indígenas que vem para “a cidade grande” por motivos diversos e aqui tentam estudar ou trabalhar. Ao contrário do que imagina a maioria da população, nem todos os indígenas vivem em aldeias. No município de São Paulo, por exemplo, somente os Guarani têm aldeias, nas regiões de Parelheiros e do Jaraguá.
Outros povos como os Pankararu, os Pankareré ou os Kariri-xocó vivem espalhados pela cidade, concentrados ou não em diferentes bairros e assim, continuam tentado preservar a cultura e a espiritualidade próprias dos seus povos. A principal motivação para sair das aldeias de origem, na maioria das vezes, é a mesma de qualquer brasileiro, buscar melhores condições de vida para si, suas famílias e seu povo.
Foi isso que trouxe Wiryçar a São Paulo. Casado e pai de três filhos, o cacique do grupo Kariri-xocó foi praticamente enviado pela sua aldeia para uma missão: divulgar a cultura e levantar recursos para sua família e para os kariri-xocó que ficaram em Alagoas.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, há 305 etnias indígenas no Brasil, que falam 274 línguas diferentes. Embora haja uma situação muito precária dos Guarani, no Jaraguá, onde cerca de 700 pessoas vivem num espaço com 1,7 hectares, impressiona escutar as crianças falando o tupi guarani. Mas esta não é a realidade de muitas etnias. Dos entrevistados para esta reportagem, apenas os Guarani conseguiram preservar integralmente a língua.
“No Nordeste, os povos indígenas foram proibidos de falar suas línguas. Meus avós contam que viviam como fugitivos. Eram caçados e mortos simplesmente por serem indígenas. Eles já se fizeram de mortos para não serem assassinados de fato. Falar a língua e não o português era definitivamente proibido. Hoje, há uma antropóloga que está fazendo um trabalho de resgate da nossa língua na aldeia”, contou Aurytha, que desde os 8 anos anota as histórias contadas pela avó, Francisca Binga.
Em 2017, Aurytha conseguiu, finalmente, elaborar um projeto de contação de histórias indígenas nas escolas. “Estou tentando há cinco anos, mas só agora, com a ajuda de um professor da PUC-SP, consegui elaborar o projeto” contou à reportagem, enquanto tirava da mochila os livros e folhetos que já escreveu e as antologias das quais participa desde que chegou a São Paulo.
A indígena que pretende formar-se antes de voltar para a aldeia, disse que viveu aqui, em determinado momento, uma crise de identidade que a fez enfrentar uma profunda depressão. “De repente, depois de um ano tentando trabalho sem conseguir nada, eu quis ser como o branco, porque as coisas estavam difíceis demais para mim. Mas pensei que antes eu precisava voltar ao Ceará e falar tudo para minha avó. ‘Filha, você precisa ouvir o rio’ – disse minha avó. Ficamos uns 20 minutos em silêncio sentadas junto à margem do rio. E só então ela perguntou se eu tinha aprendido algo. Como minha resposta foi negativa, ela disse: ‘O objetivo do rio é desaguar em um rio maior. Se ele parar, se existir algo que seja obstáculo como o lixo, por exemplo, a água vai apodrecer, porque ele não teve energia para continuar. A mesma coisa vai acontecer com você, se desistir, você não vai conseguir continuar. Você escolheu estar em São Paulo, mas não é por isso que vai desistir da sua história. O que vai contar para suas filhas quando elas tiverem a sua idade? O que você é, na sua essência, você não pode desistir de ser’. Depois daquela conversa eu voltei para São Paulo, mas foi totalmente diferente. Comecei a procurar indígenas de outras etnias e me aproximei deles. Isso foi muito importante para mim”, comentou Aurytha, que já trabalhou ao lado de Daniel Munduruku, doutor em Educação pela USP, fundador do Projeto Uka – Casa dos Saberes Ancestrais e membro fundador da Academia de Letras de Lorena (SP), onde mora atualmente com a família.
As aldeias Imburana e Cajueiro ficam no munícipio de Poranga (CE), uma cidade que tem 11 mil habitantes, dos quais mais de mil famílias são das etnias Tabajara e Kalabaça. “Poranga era só mata. Os fazendeiros que procuravam lugar para o gado a encontraram, mas os Tabajara já estavam lá. A cidade cresceu em volta da aldeia, que fica entre três pedras, em cima de uma serra. No início da habitação, quiseram nos expulsar, mas os povos Tabajara já tinham se juntado aos Kalabaça e com lideranças fortes, conseguiram manter-se ali. Contudo, a terra ainda está em fase de estudo e não foi demarcada”, explicou Aurytha, que é também formada em magistério.
Em São Paulo, seu primeiro emprego foi como operadora de telemarketing. “Demorei um ano para conseguir trabalho. Eu percebi tarde que era preciso acompanhar um determinado padrão de roupa, maquiagem, modo de falar e, principalmente, que eu não podia me apresentar como indígena. No começo, eu chorava muito quando saía de uma entrevista de emprego e, por isso entrei em depressão”.
Além da horta e do artesanato, os indígenas nas aldeias Cajueiro e Imburana sobrevivem da caça e muitos trabalham nas próprias aldeias ou fora delas. “A caça mais comum é o peba [uma espécie de tatu] e a cotia. Temos um ritual próprio para a caça e tudo o que é conseguido, é compartilhado. Além disso, se alguém está numa situação de dificuldade, todos se unem para ajudar”, explicou Aurytha.
Aurytha saiu da aldeia porque desde pequena queria conhecer outras culturas, num lugar que fosse diferente de onde nasceu. “Mas minha avó não me deixava sair. Cheguei a me casar, mas acabamos nos divorciando e então, decidi vir para São Paulo. Agora, não quero retornar sem contribuir com meu povo, por isso pretendo concluir a faculdade. Em São Paulo aprendi a valorizar minha cultura e adquiri conhecimentos sobre os direitos dos povos indígenas, que eu jamais teria se tivesse continuado ali”, disse a Tabajara, que contou à reportagem um episódio em que foi demitida do emprego no mesmo dia em que contou sua origem.
“A minha empregadora à época, quando soube que eu era indígena, disse no mesmo dia que eu não precisava mais voltar. Eu era babá e não entendi o motivo. Só depois, quando voltei para receber o que tinha direito pela demissão, ela me disse que não confiava nos índios, porque eles comem pessoas e têm uma cultura estranha. Chorei muito, muito mesmo e pensei: ‘mas eu não sou ruim, porque isso acontece comigo’? ”, recordou emocionada Aurytha que, por ter a pele clara, tem sua identidade questionada constantemente. “Mas história não tem cor, cultura não tem cor”, repetiu.
Ele ficou conhecido no mundo inteiro depois de levantar uma faixa vermelha na qual estava escrito “Demarcação”, durante a abertura da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em 2014. Jeguaka Mirim tinha 13 anos na época e é filho de Olívio Jekupê, liderança indígena da aldeia Krukutu, do povo Guarani Mbya. “Foi muito importante, porque naquele momento as comunidades indígenas ficaram mais conhecidas, bem como nossa principal luta: a demarcação das terras”, disse Olívio, que nasceu no Paraná e tem cinco filhos.
A aldeia onde eles moram atualmente, fica na região de Parelheiros, no extremo sul da capital. Lá vivem cerca de 300 pessoas, numa extensão de 25 hectares. Olívio é autor de 15 livros, palestrante e um dos fundadores da associação dos Guarani.
Na aldeia há uma escola do Estado, um Centro de Cultura Indígena (Ceci), mantido pela prefeitura e a Unidade Básica de Saúde (UBS) Krukutu. Além disso, todas as noites eles se reúnem para rezar na Opy’i – casa de reza. “É a força que Deus que recebemos lá dentro que nos ajuda a preservar a cultura. Passaram-se muitos séculos e muitas dominações, mas os guarani conseguirem permanecer. A Opy’i é o principal lugar da aldeia”, explicou Olívio.
Muitos Guarani trabalham dentro da aldeia, outros fazem artesanato que é vendido quando os indígenas recebem grupos de visitantes. Além disso, uma parcela da população é aposentada e os demais se organizam para divulgar a cultura em escolas e eventos, ocasiões em que recebem, também, alguma ajuda de custo, principalmente para as crianças que cantam no Coral Guarani.
“Há cerca de dez anos tivemos muitos problemas de desnutrição porque não tínhamos água boa. Agora temos um poço artesiano e isso nos ajudou muito. Água boa é remédio. Temos uma equipe médica na aldeia e agentes de saúde também. O pajé realiza rezas pelos doentes e ensina as pessoas a prepararem seus remédios naturais”, contou o pai de Jeguaka, que também já publicou dois livros, entre eles os “Contos dos curumins guaranis”.
A aldeia Kariri-xocó fica entre Alagoas e Sergipe, perto da cidade de Arapiraca (AL). Wiryçar Kariri-xocó veio para São Paulo há cerca de oito anos. “Já viajei para lugares como Rio de Janeiro e Santa Catarina, mas tenho ficado mais tempo em São Paulo. Vou, porém, na aldeia duas ou até três vezes por ano. Em janeiro temos um ritual fechado, o Ouricuri, no qual passamos 15 dias no mato, mais uma semana em retiro. Como sou eu responsável pelo retiro, vou cerca de um mês antes para preparar”, contou Wiryçar, que é casado e tem três filhos, todos nascidos em São Paulo.
“Não conseguimos mais sobreviver de caça e pesca e, devido à dificuldade de subsistência, resolvemos vir para divulgar nossa cultura e conseguir sobreviver aqui e lá. Além disso, a região em que estamos sofre muito com a falta de chuva. Trabalho aqui como palestrante, em apresentações nas escolas e eventos. Nestes encontros contamos a verdadeira história dos Kariri-xocó. A sociedade imagina os índios de 500 anos atrás e não a realidade dos povos hoje”, contou à reportagem o indígena, cujo nome significa protetor da natureza.
No momento da entrevista, já passava das 20h e Wiryçar tinha acabado de chegar de Jundiaí (SP) onde havia palestrado e feito apresentações de danças para estudantes e professores. Os eventos são também uma oportunidade para venda do artesanato trazido de Alagoas.
Na aldeia dos Kariri-xocó no Alagoas vivem cerca de cinco mil indígenas. A principal fonte de renda é o artesanato, vendido em todo o Brasil. Há um grupo de mulheres que faz copos e panelas com o barro da própria aldeia e os troca por feijão e farinha no interior do Estado. “Este ano conseguimos eleger dois vereadores. E há, ainda, aqueles que são professores e agentes de saúde”, explicou Wiryçar.
São três dias de viagem de São Paulo até a aldeia Kariri-xocó, para onde Wiryçar pretende voltar com a família no próximo ano. Ao ser questionado sobre a manutenção da cultura em São Paulo, ele disse que enfrenta inúmeras dificuldades. “Se não tivéssemos uma espiritualidade muito forte, não conseguiríamos. Estamos acostumados a fumar a xanduca (feito com fumo de corda, imburana e amesca) e muita gente não gosta, acha que é droga. Aqui não podemos também andar com os corpos pintados, porque somos maltratados e, principalmente, não é fácil conseguir trabalho. Em geral, as pessoas nos perguntam porque não estamos na aldeia, como se a cidade não fosse um lugar para nós”, desabafou o cacique.
Wiryçar mora na região do Jaçanã e seu último filho, Wiryçar Tenório da Silva tem apenas 6 meses e nasceu no hospital São Luiz Gonzaga. Registrado com nome indígena, situação que só foi permitida pelos cartórios brasileiros após uma resolução do ano de 2012, o pequeno provavelmente irá aprender logo algumas palavras usadas pelos Kariri-xocó em seus rituais.
Ao ser perguntado sobre a situação de empobrecimento em que vivem os indígenas nas comunidades urbanas, principalmente os Guarani, que estão nas aldeias do Jaraguá, Daniel Muduruku afirmou que a presença indígena na cidade é sinal de que um modo de vida diferente é possível. “Os indígenas urbanos são fruto de um fenômeno muito comum na sociedade brasileira: a questão territorial que obriga à migração. Penso também que tal êxodo tem ocorrido por conta da necessidade de buscar melhores condições de vida e formação intelectual ou ainda projeção cultural. Grandes centros costumam oferecer opções viáveis para que os indígenas possam viver suas culturas, por mais contraditório que isso possa parecer. Não se trata, portanto, de uma “fuga”, mas de autoafirmação identitária que encontra eco em lugares que precisam refletir sobre o tipo de desenvolvimento que rege um país como o nosso. Realmente, eu penso que nossa presença nos centros urbanos acaba se tornando a consciência necessária para que as pessoas reconheçam que outro modo de vida é possível. Nesse sentido, os indígenas urbanas cumprem um papel fundamental na manutenção de uma utopia. Nossas comunidades – apesar das dificuldades que passam – são verdadeiras ‘ilhas de resistência’, disse Daniel, que nasceu na aldeia dos Munduruku, no Pará, é autor de 50 livros, entre eles “Meu avô Apolinário”, escolhido pela Unesco para receber menção honrosa no Prêmio Literatura para Crianças e Jovens na Questão da Tolerância.
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Indígenas na metrópole, sinal de que outro modo de vida é possível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU