29 Março 2017
Alphonse Borras, vigário geral da diocese de Liège (Bélgica) e professor emérito de direito canônico na Universidade de Leuven, aborda temas relacionados com o ministério presbiteral hoje. Para as edições dehonianas escreveu Il diaconato, vittima della sua novità? (‘O diaconato, sob o risco da sua novidade’. Lisboa: Ed.Paulinas, 2012). Sobre a falta de sacerdotes e como lidar com esta situação emergencial, encaminhamos a ele algumas questões.
A entrevista é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 21-03-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Monsenhor Borras, o senhor escreveu para as edições Mediapaul um livro esclarecedor Quand les prêtes viennent a manquer (‘Quando faltam padres’ em trad. livre), retomando um tema já abordado por Pe. J. Kerkhofs em sua obra de 1995, Europa senza preti (‘Europa sem padres’, trad. livre). Por que considera ilusória a expectativa de um aumento significativo das vocações presbiterais no Ocidente?
No final dos anos 1950, Karl Rahner foi o primeiro (e depois dele vieram outros teólogos) a diagnosticar o fim da cristandade - ou seja, uma Igreja na diáspora - e, depois, de forma crescente ao longo da década de 1990, muitos episcopados da Europa Ocidental e do Quebec (Canadá) compartilharam o mesmo diagnóstico. João Paulo II também assumiu tal convicção em relação às Igrejas de antiga tradição cristã em Novo millennio ineunte (n. 40). Se o recrutamento sacerdotal da Igreja latina, a partir do segundo milênio, e em especial depois do Concílio de Trento, é destinado a jovens solteiros, isso se deve em parte às condições culturais e eclesiais de um mundo cristão.
Admitir que essa condição está superada, significa reconhecer os limites de um recrutamento que correspondia a condições específicas da Igreja da christianitas. Nos séculos do cristianismo, onde o espaço religioso tendia a coincidir com o civil, o clero era uma condição que, na sociedade em simbiose com a Igreja, conferia um status jurídico e um papel social. Estatuto e papel que iam além - e, eventualmente, ao lado - da missão estritamente ministerial de servir à Igreja e à sua missão.
Na minha humilde opinião, é ilusório esperar uma retomada significativa das vocações presbiterais, levando em conta vários fatores. Apontarei três que merecem uma análise mais aprofundada.
Em primeiro lugar, existe o fator sócio-cultural, ou seja, o desgaste do cristianismo como regime sociológico em conexão com a evolução sócio-cultural da pós-modernidade e da mundialização.
Depois, há a evolução das novas gerações: demograficamente os jovens são bem menos numerosos, na proporção, do que apenas 40 anos atrás; em seu desenvolvimento psicoafetivo não se encontram mais, como acontecia anteriormente, jovens de 18 anos que consideram plausível, culturalmente falando, a abstinência sexual.
Do ponto de vista eclesial, os processos de catequese e a vida da comunidade estão centrados no crescimento espiritual em termos de jornada pessoal na experiência da fé por iniciativa individual que constrói de forma dinâmica – e, às vezes, dialética - a própria identidade. O indivíduo deve, nesse sentido, "tornar-se" cristão - e possivelmente continuar assim! - principalmente por sua iniciativa e não mais em decorrência de uma socialização com base na religiosidade civil; os jovens e os adultos que "decidem" se tornarem cristãos - e assim permanecer - estão "no caminho", questionando e aprofundando a sua experiência, e às vezes colocando-se "em suspenso"; registram sua evolução religiosa de forma dinâmica, como uma espiral, e não segundo uma perspectiva linear onde tudo converge para uma construção estável da própria identidade pessoal e cristã.
Se, como falou o Papa Bento XVI, agora temos um cristianismo de escolha, é ingênuo pensar, para a maioria das pessoas, que a escolha ocorra na saída da adolescência: a realidade nos mostra - especialmente na experiência dos "recomeçantes" (pessoas que retornam ao cristianismo após um período de afastamento) - que a experiência cristã alastra-se ao longo de um amadurecimento em etapas ao longo do tempo. O tempo de grandes escolhas não é mais preso ao período dos estudos superiores...
Isso não significa que não existam jovens capazes de responder a um apelo de investir suas vidas a serviço do Evangelho, da Igreja e de sua missão; mas eles são e serão menos numerosos que outrora. Eu não acho que seja preciso aguardar mais uma década para iniciar um debate franco sobre a questão, considerando que, com o Papa Francisco, é possível falar mais livremente. Sua recente entrevista ao Die Zeit é significativa...".
A distinção entre "precariedade relativa" no número de padres em uma igreja local e "precariedade absoluta" o que significa?
"É uma distinção que eu retomo de dois colegas teólogos franceses, Marie-Thérèse Desouche e o prof. Jean-François Chiron. Analisando as mudanças em curso na França, eles identificaram, em 2011, duas situações de escassez de padres; por um lado, a "precariedade relativa" com um número de padres menor do que seria ideal, mas com outros recursos, principalmente colaboradores laicos com disponibilidade para a dinâmica pastoral; e, por outro lado, a situação de "precariedade absoluta", onde o bispo diocesano logo não poderia "dispor do mínimo de sacerdotes capazes de assumir as missões essenciais". O que fazer nos dois casos? O que pode funcionar para a primeira situação não é dito que também possa ser aplicado para a segunda.
O meu livro é um convite para refletir sobre uma Igreja que terá menos padres. A realidade nos obriga a fazê-lo, na França como em outros países da Europa Ocidental e da América do Norte. A diminuição do número de sacerdotes está se acentuando em várias dioceses e até mesmo em algumas províncias eclesiásticas. Isso se acentua nas áreas rurais e mais afastadas das cidades. Em tais circunstâncias, já foi ultrapassada a "precariedade relativa"; em algumas dioceses, em breve, será atingido o grau de "precariedade absoluta". Somo minha voz à dos dois teólogos citados; creio que urge um sério reconhecimento da realidade. Caso contrário, continuaremos a pecar por cegueira... voluntária!".
Foram postas em prática várias tentativas para remediar à falta de sacerdotes. Poderia especificar algumas peculiaridades de cada solução?
Antes de especificar alguns aspectos, gostaria de salientar o axioma que atravessa toda a reflexão no meu livro: "Igreja é o lugar onde estão os batizados; a paróquia é onde estão os paroquianos". É de importância primordial considerar, em primeiro lugar e antes de tudo, a comunidade eclesial; ela recebe, assume e transmite o Evangelho anunciado, celebrado e testemunhado. Devemos partir do primado do "sujeito" eclesial dentro do qual se assentam batizados, pastores e outros ministros e, na diversidade das suas vocações, carismas e ministérios.
Pessoalmente insisto nos batizados "em sua diversidade" de percursos e de caminhadas dentro de uma Igreja que é entendida como corpus permixtum, como gostava de dizer Santo Agostinho, onde estão, ao mesmo tempo, fiéis fervorosos, interessados, ocasionais, sazonais, militantes, místicos etc. Vemos seus sinais precursores no Novo Testamento, especialmente nos Evangelhos, em que conjuntos diferentes e diversificados de pessoas entram em relação com Jesus de Nazaré, como a multidão, os anônimos em contato com ele, os discípulos, os doze apóstolos e alguns mais próximos como Pedro, Tiago e João. Gosto de insistir no caráter variado, misturado, miscigenado do povo de Deus para evitar a tentação da ameaça dos puros e da ameaça sectária. Isto é verdade para cada comunidade eclesial, incluindo a paróquia. As pessoas que entram em relação de uma maneira ou outra com a Igreja, como aqueles que se comprometem com ela, fazem isso com bases motivacionais distintas, que determinam a sua identificação ou, pelo menos, a sua relação com a Igreja Católica. O pertencimento eclesial é dinâmico em termos de biografia, de caminho, de percurso. Hoje, mais do que nunca. Mas cada um está a caminho, sempre porque foi chamado à conversão para se tornar e permanecer um cristão. É, portanto, um trabalho de base que deverá ser colocado em prática para nutrir e desenvolver a fé dos fiéis, apoiando e incentivando o testemunho das comunidades em seus respectivos ambientes. Sem tal consideração pelo sujeito primário da missão, isto é, a comunidade eclesial, cada aspecto perde a sua consistência e, acima de tudo, relevância.
E o recurso aos laicos como coordenadores das equipes pastorais?
Há duas hipóteses. Tanto a hipótese de que esses coordenadores assumam o papel de coordenação do trabalho da equipe pastoral para favorecer sua missão de estreita colaboração pastoral no cargo pastoral do pároco, na preparação das reuniões, na sua dinâmica, no seu andamento etc.; como a segunda hipótese, em que os coordenadores exerçam o seu ministério na ausência do pároco no sentido exato do cânone 519, mas no contexto da fórmula de suplência de acordo com o cânone 517 § 2, na figura de um padre "moderador", ou seja, responsável pelo serviço pastoral, mas sem ser pároco.
No segundo caso, o coordenador assume a função de direção da vida e do testemunho das comunidades interessadas, gerindo o compromisso dos voluntários laicos e dos agentes pastorais (ou seja, eventuais assalariados). Na França, várias dioceses, não tendo padres suficientes para o papel de párocos para as unidades pastorais ou novas paróquias - em ambos os casos realidade que acomunam diversas igrejas – lançaram mão desta nova figura do coordenador pastoral.
É uma solução para lidar com a escassez... mas, no curto prazo, irá criar problemas, porque, apesar da utilidade do serviço dos coordenadores, está ocorrendo uma ruptura entre a direção pastoral e direção eucarística. Na tradição eclesial a direção da eucaristia cabe àquele que assume a direção da comunidade e não o inverso. A eucaristia não é apenas para a satisfação de devoção individual, mas é a ação por meio da qual a comunidade eclesial toma forma como corpo de Cristo. A participação ou comunhão com o corpo eucarístico de Cristo dá origem à comunhão ou participação ao corpo eclesial de Cristo".
E o recurso a sacerdotes estrangeiros (primeiro da Europa Oriental, agora da África e da Asia) ...
É evidente a utilidade do recurso a esses sacerdotes: as dioceses precisam deles. Geralmente eles se inserem bem nas comunidades onde suas qualidades humanas e sensibilidades especiais com os idosos os tornam bem aceitos. São ainda mais apreciados, pois permitem a continuidade da eucaristia que, sem eles, seria ainda mais rara. Mas não podem ser ignorados os problemas de integração no presbitério e, a partir daí, na realidade da diocese, na sua história, cultura, costumes e tradições etc. A sua presença claramente requer discernimento, mas também demanda o acompanhamento e a formação. Considerando que as dioceses não são mais capazes de ter seus próprios sacerdotes autóctones, o que precisa ser observado quando se recorre a padres estrangeiros?
A primeira questão é saber se a presença desses padres não nativos contribui para a catolicidade de nossas Igrejas locais. Isso pressupõe a vontade de se inserir neste lugar, tomando efetivamente parte na realidade da diocese e no seu destino. Nesse contexto, destaca-se a memória da Igreja local: em que medida poderá ser assumida por um clero alóctone mais e mais numeroso? Temos que confiar em sua capacidade de entrar plenamente no espírito da Igreja diocesana, para perceber o que caracteriza a sua própria originalidade no contexto mais amplo da cultura circundante. Para além de sua boa vontade e das condições favoráveis à sua integração, esses padres - pelo menos aqueles chamados para permanecer de forma permanente com a gente – serão e continuarão a ser "mestiços", no mesmo nível de outros imigrantes; não do lugar mas, também, não estranhos.
Por isso, é crucial operar o discernimento necessário para a sua inclusão, especialmente quando esta se anuncia durável, se não perpétua. Tal discernimento não pode, portanto, ser limitado às qualidades humanas e espirituais dos sacerdotes estrangeiros. Será necessário verificar a sua capacidade de se inscrever em um novo universo cultural e, mais ainda, sua capacidade para entrar no ethos democrático que caracteriza as nossas práticas eclesiais na Europa Ocidental. É necessário considerar o necessário arraigamento desses padres alóctones em nossas dioceses para compartilhar a memória eclesial e promover a catolicidade. Mas, ao mesmo tempo, esses padres vindos do exterior, trazem consigo seus próprios carismas, biografias específicas, os caminhos de fé, experiências de Igreja etc. Em outras palavras, radicados em nossas dioceses, eles contribuem para o intercâmbio de bens espirituais com os fiéis locais, para seu enriquecimento evangélico e para a comunhão das nossas dioceses com toda a Igreja. Papa Francisco recorda enfaticamente que "a diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja" (EG 117).
A segunda questão é, portanto, saber em que medida as nossas comunidades podem ser tocadas e desafiadas ou transformadas pela contribuição desses sacerdotes, mas também, dado o fluxo migratório, pelos outros fiéis alóctones. Uma vez que esses outros fiéis, incluindo os sacerdotes, estão entre nós, como comunicar junto com eles o Evangelho aqui e agora? É um verdadeiro "trabalho" análogo à gestação. É um trabalho de longo prazo, porque pode dar frutos só depois de alguns anos, ou até mesmo décadas.
Levando em conta o que já foi mencionado, a contribuição dos sacerdotes não-nativos deve ajudar a viver "a conversão pastoral e missionária" (cf. EG 5-27, 30-32, 97). É com eles que temos que trabalhar para a catolicidade da Igreja local, e, em especial, para o "nós" do presbitério, que já não pode mais ser pensado como uma divisão entre autóctones e alóctones. Frente à escassez de sacerdotes locais, o acolhimento destes sacerdotes de fora não resolve por si só a precariedade das dioceses. Estas devem promover as condições para acolher candidatos locais para o sacerdócio".
E investir em diáconos como responsáveis pelo cuidado da pastoral territorial?
Os diáconos não se destinam ad sacerdotium, à direção eclesial eucarística (cf. cânones 1008 e 1009 § 3). No entanto, existe uma diversidade de perfis diaconais, dependendo das necessidades da comunidade; alguns deles alinham-se melhor com um perfil voltado para a dinâmica das comunidades e de direção da oração. O Vaticano II não excluía esse papel para os diáconos, devido ao fato de que os padres conciliares tinham como modelo os catequistas das jovens Igrejas para projetar o restabelecimento do diaconato permanente. Da mesma forma, hoje, não devemos excluir tal possibilidade, mas, se todos os diáconos começarem a exercer um papel de liderança, vai haver certa preocupação quanto à manutenção do restabelecimento do diaconato permanente. Seria teologicamente mais consistente que cripto-presbíteros serem ordenados padres.
Reconhecer a responsabilidade pastoral às religiosas?
Eu não descartaria isso. Nos países do norte da Europa o colapso das vocações femininas "apostólicas" torna essa eventualidade pouco provável. De acordo com o carisma de sua congregação que pode ser, por exemplo, de apoio da pastoral paroquial, estas religiosas podem encontrar o seu lugar em uma equipe pastoral, eventualmente como coordenadoras da unidade pastoral (ver acima). Seria problemática uma generalização do recurso às religiosas frente ao problema já mencionado, ou seja, a separação entre direção eclesial e direção eucarística. Ressalto que não é suficiente "distribuir a Sagrada Comunhão", como é feito nas comunidades latino-americanas... O que deve ser salvaguardado é a ação eucarística como um todo, através da qual o povo de Deus "toma corpo", em Cristo, pelo Espírito, em torno da dupla mesa da Palavra e do pão!
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“Estão faltando padres”. Entrevista com Alphonse Borras, teólogo belga - Parte 1 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU