19 Janeiro 2017
É “normal ou, melhor, salutar encontrar dificuldades, que, no caso da reforma, poderiam se apresentar em diversas tipologias de resistências: as resistências abertas, que muitas vezes nascem da boa vontade e do diálogo sincero; as resistências ocultas, que nascem dos corações assustados ou petrificados que se alimentam das palavras vazias da hipocrisia espiritual, daqueles que, com palavras, dizem estar prontos para a mudança, mas querem que tudo permaneça como antes; existem também as resistências malévolas, que brotam em mentes distorcidas e se apresentam quando o demônio inspira más intenções (muitas vezes ‘em pele de cordeiro’). Este último tipo de resistência se esconde atrás das palavras justificadoras e, em muitos casos, acusatórias, refugiando-se nas tradições, nas aparências, nas formalidades.” O balanço que, no fim do ano, o papa fez diante da Cúria também incluía essa passagem muito dura que se referia, em primeiro lugar, aos contrários à reforma na Igreja.
A análise é de Maria Elisabetta Gandolfi, jornalista, publicada no blog L’Indice del Sinodo, 08-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É lícito pensar que, sendo o Sínodo e a sinodalidade o coração da primeira reforma Bergoglio, ele possa se estender também à discussão que, há meses, cerca a exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia (publicada no dia 8 de abril), e uma certa cacofonia comunicativa que se gerou em torno do documento, graças também à liberdade de expressão que Francisco pratica e pede que se pratique na comunidade eclesial.
Assim, estão sendo misturados dois elementos: a recepção do texto nas Igrejas locais e a rica messe dos influenciadores profissionais ou não, com ou sem cargos eclesiais, todos ocupados na “contagem” entre pró ou contra as aberturas da exortação, e pró ou contra o papa. Debate intra e extra-eclesial torna-se uma coisa só, uma vez que se sai totalmente do “espaço protegido” da discussão sinodal.
Tentemos refazer a trajetória principal. Havíamos publicado uma primeira panorâmica [disponível em italiano aqui], identificando imediatamente as posições “sem rodeios” dos contrários à hipótese – simplifiquemos – de poder readmitir aos sacramentos os divorciados recasados (o lefebvriano B. Fellay, o canonista cardeal R. Burke e o leigo “wojtyliano” R. Spaemann) e, em vez disso, as dos favoráveis a uma abordagem que poderíamos chamar “do discernimento caso a caso”, majoritária especialmente entre os bispos diocesanos, mas não só (cardeais G. Müller, D. Wuerl, R. Blásquez Pérez, R. Marx, G. Bassetti, V. Nichols e Dom B. Forte, P. A. Durocher).
Seguindo o debate também no nosso blog, tínhamos assinalado a intervenção de Dom F. G. Brambilla, que, no L’Osservatore Romano (17-05-2016), abria uma reflexão parafraseando uma conhecida oração: “O amor nosso de cada dia nos dai hoje!”; e os critérios fundamentais para a aplicação do capítulo VIII da Amoris laetitia, escritos pelos bispos argentinos da região pastoral de Buenos Aires aos seus sacerdotes [disponível em espanhol aqui].
Este último é o texto que marca uma ruptura no debate, porque, tendo recebido uma carta de recomendação por parte do papa, torna-se um modelo para a interpretação autêntica da exortação pós-sinodal e da vontade do pontífice. “O texto é muito bom – escreve Francisco – e mostra claramente o significado do capítulo VIII da Amoris laetitia. Não há outras interpretações.”
Depois, soou um primeiro alarme para o fronte dos “contrários”, aos quais se acrescenta um segundo algumas semanas mais tarde, quando é publicado, com excessiva ênfase, um estudo do Wijngaards Institute (Londres) que considera o recurso à contracepção como moralmente fundado, que recebe como resposta uma contra-declaração em defesa do ensinamento da Humanae vitae proveniente dos Estados Unidos.
Os “contrários” decidem, então, sair em público com uma lista de cinco argumentadas dubia assinadas por quatro cardeais (W. Brandmüller, R. Burke, C. Caffara, J. Meisner), todos já fora dos cargos de governo, mas com uma forte propensão a um uso desenvolto da mídia, embora Burke – o líder do grupo – seja um canonista e, portanto, um bom conhecedor das normas.
Aproveitando-se do direito de expressão (hoje) e da preocupação com o povo de Deus julgado como “confuso e desorientado”, eles entregaram ao pontífice no dia 19 de setembro o seu próprio abaixo-assinado. No entanto, como se passaram dois meses, e o papa “decidiu não responder [...] interpretamos essa sua soberana decisão como um convite a continuar a reflexão e a discussão, pacata e respeitosa. E, portanto, informamos sobre a nossa iniciativa todo o povo de Deus, oferecendo toda a documentação” no dia 14 de novembro aos meios de comunicação de todo o mundo. Em suma, recorre-se à mais ampla divulgação pro salus animarum.
Pode-se perguntar por que são tão interessantes para as mídias generalistas não tanto as questões morais em sentido lato, mas sim a especificidade da disciplina eclesiástica sobre elas, como, nesse caso, a readmissão aos sacramentos dos divorciados recasados que, numericamente falando, representam uma fatia de público muito pequena.
Os quatro cardeais mostram inescrupulosidade no plano comunicativo, sabendo que muitos meios de comunicação estão interessados em enfatizar a sua posição. A pergunta é: quem se beneficia? Por que combater uma “batalha” interna à Igreja, pressionado de fora e esperando influenciar e trazer para si uma opinião pública eclesial e eclesiástica que, no entanto, tinha sido amplamente interpelada antes, dentro, fora e depois dos dois Sínodos de 2014 e de 2015? E por que ameaçar até uma “correção pública do pontífice”?
O esquema comunicativo leva a pensar que o percurso seguido responde a lógicas acima de tudo estadunidenses: o fato de o debate ter se intensificado no rescaldo da vitória do candidato Trump (9 de novembro) não é uma coincidência. E, como o poder comunicativo dos Estados Unidos e de língua inglesa constitui uma massa de impacto não negligenciável pelas mídias em geral, ele dita a pauta e ignora tudo o que não passa pelo seu fluxo.
Assim, teve uma ampla ressonância, por exemplo, o debate entre o arcebispo da Filadélfia, Dom J. Chaput – que publicou diretrizes pastorais para a diocese, que entraram em vigor no dia 1º de julho – e o cardeal (então designado e depois criado no dia 19 de novembro) Kevin Farrell, ex-bispo de Dallas, prefeito do novo dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, que lhe repreendeu por ter forçado os tempos sobre as normativas diocesanas e por não ter esperado o debate da Assembleia Plenária dos bispos em novembro, que devia examinar a pesquisa realizada junto aos bispos e os responsáveis pelas organizações católicas do país sobre a recepção da exortação apostólica Amoris laetitia [1].
Ao contrário, o recente e amplo documento da 11ª Assembleia Plenária da Federação das Conferências Episcopais da Ásia (FABC, na sigla em inglês), The catholic family in Asia: domestic Church of the poor on a mission of mercy [A família católica na Ásia: Igreja doméstica dos pobres em uma missão de misericórdia], que tenta uma leitura em chave asiática – antigamente, se diria “inculturada” – passou quase totalmente despercebido, mesmo tendo sido expressão de uma cúpula que reúne, de toda a Ásia, 19 Conferências Episcopais e oito representações (para os países onde a Igreja tem uma presença menor).
Outro exemplo: a diocese de Portland (Oregon) certamente é importante, e deve-se lembrar que Dom A. K. Sample, na sua carta do dia 7 de outubro, publicada em inglês e espanhol, reafirma um claro “não” às modificações da disciplina eclesiástica, citando de mãos cheias a encíclica Veritatis splendor de João Paulo II; mas não devem ser silenciadas – sem pretensão de exaustividade – as cartas pastorais ou as intervenções argumentadas dos italianos A. Vallini (auxiliar de Roma), E. Castellucci (Modena); P. Lagnese (Ischia) ou dos bispos do Piemonte oriental (Mana, Catella, Brambilla e Arnolfo), que instituíram um Centro Interdiocesano de Acompanhamento para os Fiéis Separados; do francês D. Lebrun, bispo de Rouen; do irlandês D. Martin (Dublin); dos alemães S. Burger (Friburgo) e K.-H. Wiesemann (Speyer); ou, de novo, do estadunidense R. McElroy, bispo de San Diego que, depois da publicação de uma carta pastoral ad hoc, convocou um sínodo diocesano, que terminou nos dias 29 e 30 de outubro passados [2].
Subentendido a tudo isso, está a indomável alma intransigente, decidida a batalhar contra um curso do pontificado considerado “moderno” demais, mas que, para fazer isso, recorre ao meio moderno por excelência: a mídia mainstream, como demonstram os textos do editorialista do New York Times (em particular o dia dia 19-12-2016, disponível aqui, em inglês), Ross Douthat, o brilhante retórico que defende as razões do grupo tradicionalista.
Os quatro cardeais – escreve ele – apontam para a Amoris laetitia como para uma barreira para defender uma fronteira geral de “civilização”, que inclui a ideia de que as opções liberais da normativa sobre os sacramentos possam, depois, ser aplicadas a “casais do mesmo sexo, poligamistas e coabitantes”; ou que abram à “intercomunhão entre católicos e protestantes”, para se estender, por fim, à questão da “eutanásia”...
No entanto, superestimando a importância das palavras e dos sujeitos que as pronunciam, os chamados “defensores do papa”, talvez, também ultrapassaram o sinal, quando se lançaram em dissertações sobre os barretes cardinalícios a serem devolvidos ou sobre a necessidade de manifestações formais de obediência ao papa…
Enquanto isso, talvez, os quatro se tornarão três, visto que o cardeal Brandmüller se distanciou em parte do grupo, afirmando que Burke não é um “porta-voz” deles; que o objetivo que se queria obter, isto é, “a abertura de um debate na Igreja”, foi alcançado; e que, no entanto, “uma possível correção fraterna do papa deve ocorrer in camera caritatis e não através de atos públicos ou escritos postos para circular”.
Em todos os casos, parece que os instrumentos eclesiais que foram conduzidos até aqui, ou seja, dois Sínodos dos bispos e o relativo trabalho a montante e a jusante, foram esquecidos. Confundir comunhão e comunicação não fez com que a Igreja desse um passo à frente.
No entanto, a partir da recente entrevista com Stefania Falasca, não parece que o Papa Francisco tenha perdido a serenidade: “Alguns – ele pensa em certas respostas à Amoris laetitia – continuam não compreendendo, ou branco ou preto, mesmo que seja no fluxo da vida que se deve discernir. O Concílio nos disse isso. Os historiadores, porém, dizem que um Concílio, para ser bem absorvido pelo corpo da Igreja, precisa de um século... Nós estamos na metade”.
1. Chaput, depois, respondeu nestes termos: “Eu acho que cada bispo nos Estados Unidos sente uma fidelidade especial ao Papa Francisco como Santo Padre. Vivemos essa fidelidade fazendo o trabalho para o qual fomos ordenados como bispos. De acordo com o direito canônico – sem falar segundo o senso comum – o governo de uma diocese pertence ao bispo do lugar como sucessor dos apóstolos, não a uma Conferência, embora uma Conferência de bispos, muitas vezes, possa oferecer um valioso espaço para a discussão. Como ex-bispo residencial, o cardeal designado Farrell certamente sabe disso. E isso torna os seus comentários ainda mais estranhos, à luz do nosso compromisso com uma colegialidade fraterna” (Catholic News Service, 17-11-2016). Uma visão meramente acessória da colegialidade episcopal que está do lado oposto daquela expressada pelo cardeal D. Wuerl, arcebispo de Washington, na conferência dada à Canon Law Society of America (Houston, Texas, 10 a 13-10-2016), intitulada: “Pope Francis: Fresh Perspectives on Synodality” [Papa Francisco: novas perspectivas sobre Sinodalidade".
2. A essa lista não completa, devem ser acrescentados os episcopados latino-americanos e africanos, e muitos outros que responderam tanto em nível nacional quanto de Conferências Episcopais.
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Amoris laetitia e a "salus animarum": resistências abertas, ocultas, malévolas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU