29 Novembro 2016
O Cardeal Kevin Farrell diz que se o trabalho da Igreja for feito corretamente, nunca chegaremos às disposições do 'Amoris Laetitia' sobre divórcio e novo matrimônio. "Há muito mais a ser feito pelas conferências de bispos... Ao invés de dizer, 'Nossa, que documento maravilhoso, e que cada bispo faça o que quiser', ele tem que se tornar prioridade. Senão, seria como se nunca tivesse sido lançado", disse o Cardeal.
A entrevista é de John L. Allen Jr., publicada por Crux - Taking The Catholic Pulse, traduzida por Luísa Flores Somavilla, 25-11-2016.
Duas das maiores preocupações do Papa Francisco, desde o início de seu papado, têm sido a família e os leigos. Isso faz do Cardeal Kevin Farrell, clérigo nomeado pelo próprio Papa para o novo departamento do Vaticano sobre essas questões, uma figura bastante influente na cena romana.
Ele é agora prefeito da nova Congregação do Vaticano para os Leigos, a Família e a Vida, tendo atuado anteriormente como bispo de Dallas, no Texas, a partir de 2007. Nascido em Dublin em 1947, Farrell é cidadão americano naturalizado e um dos americanos adotivos mais entusiasmados já conhecidos.
Farrell falou à Crux na quinta-feira - Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos, mas apenas mais um dia em Roma - sobre sua nova missão, o Papa Francisco e sua tentativa de construir um novo departamento do Vaticano praticamente sem modelos ou planos de jogo.
Eis a entrevista.
Não é todo dia que surge no Vaticano um departamento que tem que ser construído do zero, e certamente você acabou de aterrissar. Em que ponto você está agora?
Em que ponto eu estou? Até agora, passei seis semanas aqui. Ouvi todo mundo, conversei com todo mundo, entrevistei todos os funcionários e tentei entender o que é que eles fazem.
Qual é a sua equipe?
É o antigo Conselho para os Leigos e o antigo Conselho para a Família. Na parte da Vida, ainda não temos uma equipe. Pretendemos formar essa equipe nos próximos meses, eu diria. Eu já sei como as coisas funcionam e o que as pessoas fazem. Agora a questão é como reunir isso tudo.
No novo estatuto da fusão, há ideias concretas sobre o que o dicastério para a família, para os leigos e para a vida deve fazer. Por exemplo, uma de nossas questões é os leigos, mas o que isso significa? No passado, o Conselho para os Leigos foi responsável, e nós vamos continuar sendo responsáveis, por todos os movimentos espirituais ao redor do mundo, o que representa uma enorme quantidade de organizações.
Como, por exemplo, a L'Arche, a Comunidade de Sant'Egídio, a Comunhão e Libertação, o Regnum Christi, o Movimento dos Focolares, e assim por diante?
Todos esses, e isso é nossa responsabilidade. Temos que nos certificar de que estão no caminho certo e resolver quaisquer problemas que surjam. No entanto, como disse o Papa Francisco, há muito tempo atrás, quando me ligou e pediu para que viesse, talvez dez por cento da Igreja Católica esteja envolvida em algum desses movimentos!
O que provavelmente é um número exagerado, certo?
Com certeza! Eu diria que 99,5 por cento [dos católicos] não fazem parte dos movimentos. Portanto, precisamos pensar essa questão.
A respeito dos movimentos, muitos analistas da Igreja questionam-se sobre se você está mais próximo de algum movimento específico.
Na verdade, não. Em Dallas, tive contato com o Neocatecumenato no seminário, com o Movimento dos Focolares, Opus Dei, Legionários de Cristo, Regnum Christi... com todos eles. Claro, eu entrei na Legião de Cristo há muito tempo, mas também saí há muitos anos. Eu não diria que minha espiritualidade se configura de alguma maneira específica por qualquer um deles em particular. Tenho boas relações com muitos deles... A seção das mulheres do Regnum Christi, por exemplo, ficava a duas quadras de mim em Dallas e eu ia visitá-los de vez em quando.
O que posso dizer é que me considero totalmente imparcial: não estou do lado de ninguém.
Voltando ao seu dicastério... É um dicastério, certo?
Sim, um "dicastério". Acho que todos serão chamados de "dicastérios" depois que o novo documento da Cúria sair, pelo menos é o que ouvi... Seja lá quando isso aconteça.
Há também a questão de que mais e mais leigos envolvam-se na Igreja e aceitem a sua responsabilidade de cristãos católicos por batismo. Eles, portanto, têm responsabilidades perante a Igreja.
Nos Estados Unidos, sempre foi assim. Na minha experiência pessoal, tanto em Washington, D. C., na chancelaria, quanto em Dallas, eu vi isso. Em Dallas, de 120 pessoas, apenas um outro padre e eu trabalhávamos na chancelaria. Os leigos se envolvem... Pense nas nossas paróquias, por exemplo. Se não fossem as mulheres leigas, nossas paróquias estariam mortas! É assim lá, mas não na maior parte do mundo.
A questão é convencer as conferências de bispos, assim como todos os bispos que vêm aqui em suas visitas ad limina, de que eles precisam se envolver nisso, precisam trazer os leigos para a Igreja, para que eles façam aquilo que geralmente fazem na Igreja.
Você se refere a ter responsabilidades na Igreja?
Sim, me refiro a ter cargos na Igreja. Por exemplo, liderar o sistema educacional ou o sistema financeiro... A única coisa que é carta fora do baralho, neste momento, é a ordenação de mulheres ao sacerdócio! Todo o resto está em aberto.
Isso inclui o Vaticano?
Papa Francisco me disse expressamente que gostaria de ver mais leigos aqui. Uma de suas preocupações é que temos muitos sacerdotes trabalhando na Cúria em posições que, em princípio, não precisam ser desempenhadas por membros do clero. Por que eles não estão aqui? Por exemplo, no meu departamento, eu tenho o Conselho para a Família, o Conselho para o Matrimônio, o Conselho para a Vida, e tudo o mais.
Bem, eu penso comigo mesmo, eu tenho vários sacerdotes que trabalham a temática do matrimônio, mas o que eles sabem sobre isso? O que eles sabem sobre a vida familiar? Talvez alguns deles tenham entrado no seminário aos 12 ou 13 anos; o que eles sabem sobre a vida familiar? Eles sabem os princípios, eles sabem a teologia, mas falta a dimensão existencial.
Será que depende, em certa medida, do tempo no confessionário?
Essa experiência não é existencial, é vicária. É importante fazer estas distinções, não que eu usasse essa linguagem no Texas! Eu gostaria que os leigos se envolvessem nas temáticas do matrimônio e da vida familiar e sei que é isso o que o Papa Francisco quer.
Suponho que uma possível reação possa ser: se o Papa realmente quer incentivar os leigos, por que um cardeal tem que liderar este novo dicastério?
Eu diria que isso pode vir a mudar no futuro. No momento, acho que eu estou lá apenas para juntar tudo isso e dar uma nova direção. Mas os estatutos deste novo dicastério dizem que o secretário pode ser um leigo ou um bispo e que as subsecretarias das várias seções devem ser lideradas por leigos. Diz que o prefeito será um cardeal neste momento, mas deixa o futuro em aberto.
Você já selecionou alguém para sua secretaria, ou seja, alguém para o segundo cargo mais importante?
Não.
Muitas vezes, os líderes de dicastérios não participam da escolha de seus secretários. É assim que está funcionando?
Não necessariamente. O Papa pediu para que eu olhasse ao redor e encontrasse um bom secretário e que o avisasse quando tiver encontrado.
Que perfil de pessoa você está procurando?
Eu gostaria de alguém muito dinâmico, interessado no trabalho dos leigos na Igreja e também na família e na vida humana. Isso é uma série longa e complexa de qualidades! Pessoas assim não aparecem do nada. É um desafio encontrá-las e um desafio encontrar leigos qualificados também.
Você acredita que seria melhor um secretário leigo ou clérigo?
Para ser honesto, no momento, para este primeiro ano, eu preferiria alguém que entenda de secretariado e que tenha alguma experiência com a Cúria. Eu gostaria de um secretário com quem eu não precisasse me preocupar em relação à administração.
Para você, isso significa um clérigo, pensando a curto prazo?
A curto prazo, sim.
Isso também significa que seria um italiano?
Não, não necessariamente, apenas alguém que tenha alguma experiência aqui.
Provavelmente não um falante de inglês nativo?
Não, eu quero alguém de outra cultura. Parte do meu trabalho é internacionalizar um pouco este novo dicastério, porque no momento um departamento é 90 por cento composto por italianos e o outro é uma mistura.
Quais são as suas prioridades para o primeiro ano?
O Dia Mundial da Juventude está chegando... Irei para o Panamá durante estes dias, seja na mesma semana ou na semana seguinte. O evento ocorrerá na Cidade do Panamá. Tenho também o Encontro Mundial das Famílias novamente, que será em 2018, em Dublin, na Irlanda, e que será mais um desafio, então há coisas em andamento que são certamente desafiadoras.
Claro, eu gostaria de não precisar lidar com a parte administrativa. Gostaria de construir uma equipe e acho que é preciso fazê-lo antes de me aventurar em qualquer outra coisa. Assim que eu tiver essa equipe, nós precisaríamos ser um pouco mais criativos do que no momento.
E o que isso significa?
Significa fazer as coisas diferente da maneira como já fizemos. As mídias sociais, por exemplo, praticamente não têm sido usadas. Temos um site, mas está quase morto. Temos Twitter, mas eu nem sei como funciona...
Você tem a senha? Se você quisesse twittar algo do dicastério hoje, você conseguiria?
Não, eu não conseguiria! Pretendo conseguir em breve.
Você sente que tem os recursos necessários para fazer isso?
Sim, eu tenho o único recurso que realmente preciso, que é o Papa!
O Papa Francisco está bastante comprometido? Você pode ligar para ele e dizer: 'Preciso encontrá-lo'?
Sim, eu posso ligar para ele e solicitar uma reunião.
Diretamente? Não precisaria passar pela Secretaria de Estado?
Não. Ele tem muito interesse nisso tudo. Além disso, temos um problema de localização... Nós estamos fisicamente em duas partes diferentes da Piazza San Calisto.
Quando sua equipe estiver montada, você acha que será muito grande?
Cerca de 75 pessoas, o que para a Cúria é grande.
Depois da equipe montada, você tem alguma - ou algumas - prioridades imediatas?
Há algumas coisas que eu gostaria de fazer muito rapidamente. Gostaria de fazer uma série de conferências... Estamos nos aproximando das visitas ad limina e eu gostaria de aproveitar essa oportunidade para envolver os bispos na valorização da Amoris Laetitia e dos leigos nas dioceses e nas paróquias.
O que isso significa?
Fazer com que as pessoas repensem o modo como fazemos as coisas e a forma como preparamos para o matrimônio, a forma como educamos nossos filhos. A preparação para o matrimônio que fazemos hoje, um curso de seis semanas antes do casamento, é uma loucura. Eu penso que a preparação deveria começar na escola.
Então, para você, a Amoris Laetitia vai muito além do divorciados e dos que se casaram novamente?
Essa é a menor das questões! Eu entendo, eu morei nos Estados Unidos. Mas a realidade do mundo em que vivemos é que a Igreja encontra-se nessa situação pela falta de educação cristã, ou seja, do ensino católico. Será que as pessoas realmente entendem no que e por que acreditamos no que acreditamos? Eu gostaria que pessoas do mundo inteiro se reunissem e desenvolvessem programas.
Sobre os princípios da Amoris Laetitia?
Sim, sobre o amor humano e os fundamentos da união matrimonial, a partir do sentido católico.
Em outras palavras, você quer promover tudo o que não for a nota de rodapé 351 da Amoris Laetitia?
Sim! Eu quero evitar essa nota de rodapé, através de uma boa preparação matrimonial para as pessoas.
Então, se fizermos bem essa preparação, nunca chegaremos à nota de rodapé 351?
Sim, exatamente, não devemos chegar a ela. Há muito mais a ser feito pelas conferências de bispos... Ao invés de dizer, 'Nossa, que documento maravilhoso, e que cada bispo faça o que quiser', ele tem que se tornar prioridade. Senão, seria como se ele nunca tivesse sido lançado.
Você não estava totalmente satisfeito com as prioridades adotadas pelos bispos dos EUA?
Totalmente, não. Eu preferia um senso um pouco mais forte [de adesão a Amoris Laetitia]...
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O czar da família no Vaticano diz que divórcios e novos casamentos civis não são o ponto principal de 'Amoris' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU