14 Outubro 2016
No Brasil, metade das universitárias já sofreu assédio, sendo que quase 30% delas já passaram por violência sexual durante a vida acadêmica. Os números alarmantes revelados pela pesquisa de 2015 do Instituto Avon/Data Popular mostram o lado de um modelo cultural reproduzido até mesmo num ambiente que deveria ser o lugar da diferença e da diversidade. Em vez de ser um espaço plural, a universidade se revela também o lugar do preconceito implícito à mulher no que diz respeito à progressão na carreira acadêmica e científica, conforme demonstrou o debate As Mulheres na Universidade e na Ciência: Desafios e Oportunidades, realizado no dia 15 de setembro, no IEA ( Instituto de Estudos Avançados) da USP. O encontro foi uma realização do Consulado Geral da França em São Paulo, do Institut Français no Brasil, do USP Mulheres e do IEA.
A reportagem é de Sylvia Miguel, publicada por Jornal da USP, 13-10-2016.
“Muito dessa discussão está associado ao poder da mulher, ou ao conflito de poder em relação aos homens e às implicações sociais, culturais e políticas disso. Na esfera privada e na pública, as mulheres não são admitidas de boa vontade nos domínios do poder. Mesmo nas grandes democracias, o poder se conjuga no masculino, em pleno século 21”, disse a conferencista Leila Saadé, presidente da Resuff (Rede Francófona de Mulheres Responsáveis pelo Ensino Superior e Pesquisa, na sigla em francês).
A Resuff tem como missão educar líderes e acadêmicos a questionar a desigualdade homem-mulher nas universidades, especialmente no acesso a cargos de responsabilidade. Vem desenvolvendo módulos de ensino a distância sobre gênero que oferecem ferramentas de capacitação em estratégias profissionais e institucionais. O organismo também abriu uma chamada de propostas para o Observatório de Gênero na Universidade, que deverá funcionar com um representante da rede em cada universidade participante, com o objetivo de consolidar dados e indicadores sobre a participação da mulher na vida acadêmica.
Especialista em direito e presidente da Escola Doutoral de Direito do Oriente Médio, Leila abordou experiências do Líbano e da França sobre a questão de gênero na academia e na ciência. Explorou também as ações afirmativas criadas pela AUF (Agência Universitária da Francofonia), que vem consolidando iniciativas para promover o acesso de mulheres a cargos de responsabilidade. A associação, fundada no Canadá, financia projetos universitários de ensino e pesquisa e sua sede está instalada num escritório na Unesp (Universidade do Estado de São Paulo), no bairro do Ipiranga, São Paulo.
“Não podemos querer um mundo melhor onde metade da população está num cantinho escondido do planeta. Se as mulheres estão lutando para chegar ao cume dos postos de responsabilidade, e se efetivamente isso acontecer, ao fazermos isso estamos oferecendo um presente à democracia, pois lutamos pelo triunfo de um conjunto de valores que fundaram as democracias, ou seja, o princípio da igualdade de direitos, que inclui a igualdade de oportunidades também”, disse.
A física Carolina Brito Carvalho dos Santos, professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e coordenadora do programa de extensão universitária Meninas na Ciência, participou como debatedora. A moderação foi feita por Vera Soares, assessora do USP Mulheres.
Segundo Leila, na França, em 2008, 20% dos presidentes em cargos universitários eram mulheres e recentemente essa proporção caiu pela metade. Se naquele ano havia 58% de mulheres cursando mestrado e licenciatura, e ainda 48% no doutorado, apenas 23% chegaram ao cargo de professora universitária, demonstrando que quanto mais alto o nível da carreira, maior é o efeito tesoura.
A média europeia não foge à regra: apenas 9% dos cargos de direção de pesquisa são ocupados por mulheres e apenas 11% ocupam postos de alta responsabilidade acadêmica, mostrou. No Líbano, as mulheres representam 37% dos pesquisadores acadêmicos, sendo que 11% delas estão nas áreas de engenharias e tecnologia. “Pedimos um observatório nacional no Líbano para definir os indicadores de gênero e estruturar estratégias de inclusão”, disse Leila.
O efeito tesoura tem raízes profundas em estereótipos que, infelizmente, até as próprias mulheres acreditam e reproduzem, afirmou. “A Fundação L´Oreal realizou uma pesquisa sobre a visão que os europeus têm da mulher na ciência e revelou que 67% acreditam que as mulheres não estão qualificadas para ocupar postos de alta função na ciência. As razões apresentadas é que elas sofreriam de falta de perseverança, de espírito prático, de rigor e espírito científico, de espírito racional e analítico. O grave é que as mulheres têm o mesmo olhar. É uma visão universal. A mesma pesquisa foi feita entre os chineses, que reproduziram o mesmo rosário poético. Somos obrigadas a admitir que os fatores culturais e os estereótipos possuem um papel importante nessa visão sobre a mulher”, mostrou.
A pesquisadora acredita que é possível mudar esse quadro, mesmo que seja preciso um longo caminho pela frente. Primeiramente, é preciso criar uma rede que, além de consolidar dados e indicadores, incentive e apoie a mulher cientista. “Faltam indicadores. Os números são incertos e muitas vezes falsos. Precisamos de levantamentos sobre a real situação da mulher na ciência e na academia, para que possamos criar estratégias de ação”, disse.
Além de consolidar indicadores, a rede proposta por Leila precisará atuar no sentido de “romper o círculo vicioso em que os projetos de pesquisa sejam criados e avaliados apenas por homens e nos quais apenas homens sejam aceitos”.
Uma pesquisa na França revelou que as mulheres no último ano do curso de ciências tinham melhores menções em relação aos homens e isso prova que elas possuem espírito científico, disse. “Sendo assim, precisamos quebrar o teto de vidro, abandonar a solidão e o silêncio. Valorizar a mulher, suas competências e seu ego; dar a elas a possibilidade de se apaixonar pela esfera da ciência”, disse.
Carolina Brito, física e professora da UFRGS, disse que ao longo da carreira acadêmica a mulher sofre tanto segregação vertical quanto horizontal. A primeira está relacionada ao efeito tesoura. A segregação horizontal diz respeito às áreas nas quais a mulher geralmente não busca posição devido aos preconceitos pré-existentes na escolha da carreira.
Carolina mostrou dados do Censo Escolar de 2006, em que as mulheres eram maioria no ensino médio tanto em número de matrículas (54%) quanto de concluintes (58%).
As mulheres também eram maioria discente nas universidades brasileiras, segundo dados de 2012 do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Porém, de cada 100 graduandos, 15 do total se formaram nas engenharias e matemática, sendo que apenas cinco mulheres se direcionaram para as chamadas ciências duras.
No caso da física, a segregação é ainda maior, mostrou Carolina. Se algo como 30% das bolsas de Iniciação Científica em física vão para mulheres, elas ficam com 15% das bolsas de doutorado e apenas 5% das bolsas de pesquisa nível 1A.
Estereótipos, cultura, influência da família e da escola exercem um papel importante para que as mulheres não escolham a carreira científica, acredita Carolina, que aponta ainda outra tendência importante. “Insisto na falta de modelos femininos em altas posições científicas. São muito poucas dando esse exemplo. Por isso, as mulheres não se enxergam em carreiras assim”, disse.
Além disso, é preciso acabar com comitês científicos formados majoritariamente pelo sexo masculino. O comitê científico da área de física do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), por exemplo, tem apenas 10% de mulheres na sua composição. “O caso da farmácia é ainda pior. Embora a área possua majoritariamente mulheres, o comitê científico no CNPq é 100% composto de homens”, disse.
Não é preciso ir muito longe para ver que as exigências para as mulheres são muito maiores. “Na Academia Brasileira de Ciências, a presença nas cadeiras é majoritariamente masculina. Mas se analisarmos o perfil dos ocupantes, por exemplo, escolhendo como critério os membros com menos de 35 anos do doutorado, veremos que, entre os homens, 15% não possuem bolsa de PQ (Produtividade em Pesquisa), sendo que apenas 1% delas não possuem a PQ. Isso mostra que os critérios são mais restritivos para as mulheres”, disse Carolina.
Entre os participantes da plateia, o professor Marcos Nogueira Martins, diretor do IF (Instituto de Física) da USP mostrou alguns números de uma instituição do exterior para corroborar que a segregação de gênero ocorre no mundo todo.
“Na Universidade de Chicago, os homens compõem 87% do corpo acadêmico e apenas 13% são mulheres. Isso é um fenômeno global. Mas na minha experiência acadêmica, não noto nenhuma diferença de capacidade entre homens e mulheres e concordo que há uma perda de talentos ao deixarmos as mulheres de fora. Mas fica difícil uma pessoa se interessar por aquilo que não conhece ou não entende. Infelizmente, não dá para fazer milagre com o ensino que temos no Brasil”, disse Martins.
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