20 Setembro 2016
"Para Belchior, as palavras são um instrumento de luta política, do despertar da consciência contra a opressão e seus mecanismos ideológicos", escreve Alberto Sartorelli, estudante de filosofia e escritor, em artigo publicado por Outras Palavras, 16-09-2016.
Eis o artigo.
Que tal a civilização
Cristã e ocidental…
Deploro essa herança na língua
Que me deram eles, afinal.
- BELCHIOR, “Quinhentos anos de quê?”
(Bahiuno, 1993)
A imagem de Belchior vendida pela indústria cultural é a do artista brega, de voz fanha e bigodão – uma figura! Poucos prestam atenção nas letras. A forma simples de suas canções possibilitou sua assimilação pela indústria fonográfica, que criou-lhe uma imagem caricata e reproduziu suas músicas em massa, entre shows, premiações e programas de auditório, fazendo tábula rasa de seu conteúdo crítico. Belchior foi reduzido a um mero cantor romântico.
Em estética, o artista engajado politicamente deve escolher entre dois caminhos: o da forma artística de difícil assimilação – e remuneração! – para o público e para a indústria cultural; ou o da forma mais simples, de fácil assimilação do público e do show business. Ambas as opções estão fadadas ao silêncio político: uma não apela, a outra tem seu apelo anulado pela caricaturização. No fim, a indústria cultural impede que qualquer artista seja levado muito a sério, por seu ostracismo ou por sua redução a uma imagem vendável.
A especificidade de Belchior é a sua consciência perante esse processo todo. “Aluguei minha canção / pra pagar meu aluguel / e uma dona que me disse / que o dinheiro é um deus cruel / […] hoje eu não toco por música / hoje eu toco por dinheiro / na emoção democrática / de quem canta no chuveiro / faço arte pela arte / sem cansar minha beleza / assim quando eu vejo porcos / lanço logo as minhas pérolas” (Tocando por música, Melodrama, 1987).
Belchior demonstra uma compreensão total do processo de nivelamento – por baixo – da cultura por parte da indústria cultural, dificultando demasiado a ocorrência de composições com alto grau de complexidade – os artistas que se propõem a tal correm sempre o risco da miséria material e do esquecimento. Os próprios arranjos dos discos de Belchior são bem simples, com o teclado tendendo ao “engraçado”. Não é da mesma maneira em relação às letras, sempre de uma profundidade abissal e crítica ácida.
Belchior, antes de músico no sentido geral, é um compositor de canções. Cada autor encontra uma forma para se expressar: o ensaio filosófico, a pintura não-figurativa, a ópera, a canção. A canção foi a forma adequada que Belchior encontrou para transpassar seus pensamentos. É preciso ter em mente, ao pensarmos a obra de Belchior, um autor de vasta erudição, de poesia refinadíssima, conhecedor das línguas latinas e da literatura clássica, e um artista engajado politicamente de maneira radicalíssima. A partir da forma canção, Belchior oferece uma visão do Brasil e do mundo que pouquíssimos filósofos nascidos em nossas terras puderam vislumbrar. Como diz Nietzsche, o homem verdadeiramente de seu tempo sempre está à frente de seu tempo. É o caso de Belchior.
Uma das críticas mais ferrenhas do cancionista sobralino é contra a arte alegre, moda da época nos anos 1960-70. O filósofo Theodor Adorno, em sua Teoria Estética (1969) diz que a arte se utiliza de elementos da vida enquanto seus materiais; se a vida social é cindida pela divisão do trabalho, que separa o homem de sua produção e da natureza, e impede a felicidade enquanto reconhecimento recíproco entre sujeito e objeto, a arte que imita essa vida deve ser triste, como a própria vida. A arte alegre seria, então, ideológica, uma falsa verdade. A Bahia alegríssima de Caetano Veloso dos anos 1970 (a triste é de Gregório de Matos) não passa de logro, ilusão. “Veloso / o sol não é tao brilhante pra que vem / do norte / e vai viver na rua” (Fotografia 3X4, Alucinação, 1976). Surpreendente o jogo de ambiguidade: “veloso” pode ser tanto um adjetivo do Sol, velando pelo migrante e suas dificuldades na metrópole, ou assumir outro sentido completamente oposto, identificado com o próprio Caetano enquanto imperativo moral – “Veloso (Caetano), veja!, para quem sofre, o sol não é tão brilhante quanto dizes”. Ou então esta outra: “Mas trago de cabeça uma canção do rádio / em que um antigo compositor baiano me dizia / tudo é divino / tudo é maravilhoso / […] mas sei que nada é divino / nada, nada é maravilhoso / nada, nada é sagrado / nada, nada é misterioso, não” (Apenas um rapaz latino-americano, Alucinação, 1976).
Chamado de “antigo”, pois já havia deixado de ser vanguarda e caído no pop, encontramos mais uma crítica a Caetano e sua composição “Divino Maravilhoso” (1968), em parceria com Gilberto Gil e que foi imortalizada na voz de Gal Costa. Vale notar, sem dúvida, que a crítica de Belchior a Caetano provém de alguma admiração: em entrevista ao Pasquim em 1982, Belchior diz que Caetano Veloso é o melhor letrista da MPB, “o autor da modernidade musical no Brasil”. Todavia, é com enorme verve materialista que ele fortemente rebate a letra de Caetano – “nada é divino, maravilhoso, sagrado, misterioso!”
O materialismo é um dos fundamentos da música de Belchior. Seus grandes inimigos são os escapistas, os fugidios, aqueles que diante de crenças metafísicas falam de uma vida reconciliada, feliz. Musicalmente representada na Tropicália, essa ideia era disseminada pelos hippies, com a cabeça feita por alucinógenos e um mix de espiritualidade. A resposta do materialista é ácida [sic]. “Eu não estou interessado em nenhuma teoria / em nenhuma fantasia / nem no algo mais / nem em tinta pro meu rosto / oba oba, ou melodia / para acompanhar bocejos / sonhos matinais / eu não estou interessado em nenhuma teoria / nem nessas coisas do oriente / romances astrais / a minha alucinação é suportar o dia-a-dia / e meu delírio é a experiência / com coisas reais” (Alucinação, Alucinação, 1976). É como se Belchior dissesse que não é por estar num registro de experiência desconhecido que essa experiência é necessariamente divina; especular metafisicamente sobre isso não passa de teoria vazia. E que o importante não é o plano espiritual, mas este aqui, o da miséria e do sofrimento, a realidade empírica e social.
Aos 29 anos em 1976, quando do lançamento do álbum Alucinação, Belchior teve o tempo, a maturidade e o olhar aguçado para ver a dissolução do sonho pacifista de liberdade. Os libertários de outrora logo se tornaram os burgueses. “Já faz tempo / eu vi você na rua / cabelo ao vento / gente jovem reunida / na parede da memória / esta lembrança é o quadro que dói mais / minha dor é perceber / que apesar de termos feito / tudo, tudo o que fizemos / ainda somos os mesmos e vivemos / como os nossos pais / […] e hoje eu sei / que quem me deu a ideia / de uma nova consciência e juventude / está em casa guardado por Deus / contando seus metais” (Como os nossos pais, Alucinação, 1976). É curioso notar que foi exatamente “Como os nossos pais”, na magnífica voz de Elis Regina, a canção que colocou Belchior de fato no mercado fonográfico.
O radicalismo político de Belchior tem seu principal fundamento na crítica do dinheiro em si e do trabalho alienado, uma crítica mais profunda do que a mera crítica do capitalismo. O dinheiro é tratado enquanto fetiche e abstração, mas também enquanto necessidade material e fonte da corrupção moral. “Tudo poderia ter mudado, sim / pelo trabalho que fizemos – tu e eu / mas o dinheiro é cruel / e um vento forte levou os amigos / para longe das conversas / dos cafés e dos abrigos / e nossa esperança de jovens / não aconteceu” (Não leve flores, Alucinação, 1976). E é o trabalho aquilo separa o homem da natureza, exterior e interior, desumanizando-o. “E no escritório em que eu trabalho e fico rico / quanto mais eu multiplico / diminui o meu amor” (Paralelas, Coração Selvagem, 1977). Por isso, o aspecto político da obra de Belchior ultrapassa a defesa do socialismo centralista ou qualquer outro sistema que envolva a burocracia. O problema é um problema fundamental, primeiro, filosófico: a civilização. “Aqui sem sonhos maus, não há anhanguá / nem cruz nem dor / e o índio ia indo, inocente e nu / sem rei, sem lei, sem mais, ao som do sol / e do uirapuru” (Num país feliz, Bahiuno, 1993). Profundo como um antropólogo anarquista, um Pierre Clastres da canção, a crítica mira o fundamento da coisa: a racionalidade ordenadora, dominadora, instrumental, como fora notado por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento (1946).
Belchior faz as denúncias fundamentais; sua arte é hegemonicamente negativa. Todavia, há um resquício de esperança nessa visão do Apocalipse, mesmo que a esperança fale sobre o que não deve ser. Nada absurdo para o cancionista sobralino, pois para ele a sociedade é ruim por excesso, não por falta. “Não quero regra nem nada / tudo tá como o diabo gosta, tá / já tenho este peso / que me fere as costas / e não vou, eu mesmo / atar minha mão / o que transforma o velho no novo / bendito fruto do povo será / e a única forma que pode ser norma / é nenhuma regra ter / é nunca fazer / nada que o mestre mandar / sempre desobedecer / nunca reverenciar.” (Como o diabo gosta, Alucinação, 1976). “Como o diabo gosta” deveria ter sido um hino da liberdade; passou despercebida, sem ninguém contestar a “Pra não dizer que não falei das flores” (Geraldo Vandré, 1968) o posto de canção de protesto.
Para Belchior, as palavras são um instrumento de luta política, do despertar da consciência contra a opressão e seus mecanismos ideológicos. “Se você vier me perguntar por onde andei / no tempo em que você sonhava / de olhos abertos, lhe direi / amigo, eu me desesperava / […] e eu quero é que esse canto torto feito faca / corte a carne de vocês” (A palo seco, Alucinação, 1976). Para tal intento, sua canção deve ter um quê de dissonância para com o sistema estabelecido, e em vez de cantar as “grandezas do Brasil”, tem de denunciar os horrores de uma sociedade civil falida. “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve / correta, branca, suave / muito limpa, muito leve / sons, palavras, são navalhas / e eu não posso cantar como convém / sem querer ferir ninguém / mas não se preocupe meu amigo / com os horrores que eu lhe digo / isso é somente uma canção / a vida realmente é diferente / quer dizer / a vida é muito pior” (Apenas um rapaz latino-americano, Alucinação, 1976). Se a arte é a mímese da vida, toda arte, por mais verdadeira que seja enquanto parte, não dá conta do todo. A realidade é pior do que a tristeza que a arte transpassa, e pior do que o pesadelo em sonho. É essa realidade que importa mudar.
Um mecanismo utilizado nas letras e nas melodias de Belchior é o da aproximação perante o ouvinte. Cearense, migrante, que na cidade grande sofreu, tocou em puteiros, foi explorado para “fazer a vida”. “Pra quem não tem pra onde ir / a noite nunca tem fim / o meu canto tinha um dono e esse dono do meu canto / pra me explorar, me queria sempre bêbado de gim” (Ter ou não ter, Todos os sentidos, 1978). É assim, por meio de sua experiência de vida trash, que Belchior realiza o approche para com o ouvinte. Ritmo simples e letra aguda, essa foi a aposta do cancionista para a politização da massa. “A minha história é talvez / é talvez igual a tua / jovem que desceu do norte / que no sul viveu na rua / que ficou desnorteado / como é comum no seu tempo / que ficou desapontado / como é comum no seu tempo / que ficou apaixonado e violento como você / eu sou como você que me ouve agora” (Fotografia 3X4, Alucinação, 1976). Ao dizer “eu sou como você”, Belchior almeja arrebatar o outro como identidade, e trazer à tona a revolta contra a opressão; seu público – alvo, escolhido a dedo, não é o intelectual burguês letrado, mas o pobre que vai ao boteco depois da jornada de trabalho; ele o reconhece como indivíduo ativo a ser despertado: o sujeito revolucionário. Mas é claro que a indústria cultural fez de tudo para anular esse conteúdo: em plena ditadura militar, transformaram Belchior numa personagem caricata, num astro romântico, o galã de “Todo sujo de batom” (Coração Selvagem, 1977).
Belchior sabe, desde muito tempo, que “Eles venceram / e o sinal está fechado pra nós / que somos jovens” (Como os nossos pais, Alucinação, 1976). Mesmo assim, não foi em vão seu esforço: além de todas as canções citadas até agora, ainda há muitas outras de conteúdo crítico ferrenho, como por exemplo “Pequeno perfil de um cidadão comum” (Era uma vez um homem e seu tempo, 1979), uma epopeia sem o elemento épico, que fala de como é vã a vida do sujeito raso, de gosto pouco refinado, cuja finalidade é voltada ao trabalho; “Arte Final” (Bahiuno, 1993), grande canção sobre tudo aquilo que deveria ter acontecido e não aconteceu; ou “Meu cordial brasileiro” (Bahiuno, 1993), que identifica a tese do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil, 1936), o elemento diferenciador do brasileiro, com o aspecto consentido do nosso povo perante a política e o trabalho. Belchior teve sua poesia impregnada pela frustração de não ter podido colocar em prática o projeto por um mundo melhor, e sua música é mais verdadeira e mais revolucionária por isso: não promete a felicidade, mas escancara a impossibilidade dela no estado de coisas vigente.
No fim, em meio a essa cena sombria, nos tempos dele e no nosso tempo de agora, ainda há alguma esperança. Para Belchior, mais importante do que a filosofia ou a arte é a vida. “Primeiro o meu viver / segundo este vil cantar de amigo” (Amor de perdição, Elogio da Loucura, 1988). Sua filosofia é oposta à de Caetano: se para o compositor baiano, quem “mora na filosofia” está separado dos sentimentos humanos, a filosofia de Belchior provém da experiência; é pensamento vivo. “Deixando a profundidade de lado / eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia / fazendo tudo de novo / e dizendo sim à paixão / morando na filosofia” (Divina comédia humana, Todos os sentidos, 1978).
Marcado no cancioneiro latino-americano como uma de suas grandes vozes, Belchior foi um mestre da poesia. Foi assimilado pela indústria cultural, de fato, como Mercedes Sosa ou Che Guevara. Ele se jogou na contradição da música popular, assim como qualquer um se joga nas contradições da lógica do trabalho. Assimilado, mas não rendido. “Marginal bem sucedido e amante da anarquia / eu não sou renegado sem causa” (Lamento de um marginal bem sucedido, Bahiuno, 1993). Não é por ter sido reproduzido e veiculado pela indústria cultural que Belchior perdeu totalmente a sua virulência: ela se mantém viva em ouvintes atentos que, como nós, encontram nele uma manifestação da consciência de seu tempo, e mais: a esperança de um mundo melhor, inteiramente outro. Por agora, o importante é viver. “Bebi, conversei com os amigos ao redor de minha mesa / e não deixei meu cigarro se apagar pela tristeza / sempre é dia de ironia no meu coração” (Não leve flores, Alucinação, 1976). Belchior, como Nietzsche, diz sim à vida, apesar de tudo, e talvez por isso tenha caído fora dessa loucura midiática que é a vida de um artista famoso sempre sob os holofotes.
Em relação às dúvidas acerca de seu paradeiro, que me perdoem os escandalizados, mas a letra já estava dada há muito tempo. “Saia do meu caminho / eu prefiro andar sozinho / deixem que eu decido a minha vida” (Comentário a repeito de John, Era uma vez um homem e seu tempo, 1979).
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O Belchior que a crítica vulgar não viu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU