07 Mai 2024
"Belchior propõe sonharmos de olhos abertos, mas de não deixarmos de sonhar! O sonho de olhos fechados é ilusão, mistificação. O sonho de olhos abertos, e aqui que entra a canção de Belchior feito faca expondo todas as entranhas deste mundo para jamais fecharmos os olhos, é aquele realismo utópico, aquela mística encarnada, aquele 'delírio com coisas reais' ", escreve Vitor César Zille Noronha, doutorando em Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), mestre em Filosofia, economista, teólogo pela UFES, presbítero da Arquidiocese de Vitória/ES e atua em Pastorais e Movimentos Sociais.
Hoje completa 7 anos que Belchior nos deixou. Como ele disse: "Só mesmo o tempo Vai poder provar A eternidade das canções A nosso música está no ar Emocionando corações" ("Eternamente", Belchior). Então, 7 anos depois, podemos afirmar, provado está.
Quando morreu Belchior, morreu um pouco da nossa brasilidade, morreu um pouco da nossa latinoamericanidade. Uma poesia melancólica, concreta, até meio pessimista, mas inconformista com o mundo vigente. Uma poesia que faz sonhar, mesmo que não saiba como realizar seus sonhos. Um grito de socorro, com sotaque cearense, que fala muito do que somos nós hoje.
Belchior foi, fundamentalmente, um compositor de canções. Simplicidade nas melodias - e somente por isso que conseguiu lograr êxito na indústria cultural, mesmo que fizesse a ela uma profunda crítica interna -, mas complexo e de uma profundidade abissal nas letras e no cancioneiro. Fundamentalmente, Belchior foi um pensador nacional autêntico, coisa raríssima, que expressou sua análise e sua crítica por meio da forma-canção. Trata-se de um autor de larguíssima erudição, de rica poesia, de enorme conhecimento das línguas latinas e da literatura clássica, e, o que é frequentemente ignorado, um artista engajado politicamente de modo ativo. Não só no Movimento das "Diretas Já", o que é mais conhecido, mas em toda a sua carreira, bem como na sua vida precedente. Como diz Frei Betto, "a cabeça pensa onde os pés pisam".
Tudo isso se expressa de modo clarividente na sua crítica a Caetano Veloso e a todo o movimento Tropicalista. Estes apregoavam uma Bahia (e um Brasil) alegríssima nos anos 70. Poderíamos admitir que faltou Gregório de Matos ao Tropicalismo. Mas, em Belchior, não. Ele sabia que essa alegria fugidia era ilusão, ou pura ideologia: "Veloso o sol não é tão brilhante pra que vem do norte e vai viver na rua” ("Fotografia 3x4", Belchior). Aqui aparece mais uma vez a genialidade literária do cearense: "veloso" pode ser uma qualidade do sol que assiste o imigrante nas suas intempéries na cidade grande e, ao mesmo tempo, também pode ser uma interpelação moral ao (Caetano) Veloso, mostrando que para os imigrantes (e para a maioria do povo brasileiro), o sol não brilha da mesma forma que para os alegres tropicalistas.
Acidamente, o cearense dispara contra o baiano: "Mas trago de cabeça uma canção do rádio em que um antigo compositor baiano me dizia tudo é divino tudo é maravilhoso […] mas sei que nada é divino nada, nada é maravilhoso nada, nada é sagrado nada, nada é misterioso, não” ("Apenas um rapaz latino-americano", Belchior). Caetano e os tropicalistas se tornaram "antigos" porque celebravam a miséria do real, alegremente passavam no vale de lágrimas, e produziram música que legitimavam ideologicamente essa mesma realidade. Esse realismo posicionado a partir do sofrimento humano (a formação cristã e franciscana de Belchior não é secundária aqui, ele, inclusive, foi Frade Capuchinho), o distancia do caldo cultural da época, muito debitario de uma cultura meio hippie, de um espiritualismo eclético (qualquer semelhança atual não é mera coincidência), talvez acentuada com certo abuso de alucinógenos. A tudo isso, Belchior se contrapõe de modo realista e ácido: "Eu não estou interessado em nenhuma teoria em nenhuma fantasia nem no algo mais nem em tinta pro meu rosto oba oba, ou melodia para acompanhar bocejos sonhos matinais eu não estou interessado em nenhuma teoria nem nessas coisas do oriente romances astrais a minha alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é a experiência com coisas reais" ("Alucinação", Belchior).
Como disse certa vez José Saramago: "Eu não sou pessimista, o mundo é que é péssimo". Assim, na obra de Belchior, há um lugar para reconhecer as agruras do real, nunca celebrá-las, porém também há abundante presença da esperança de um mundo novo: "o que transforma o velho no novo bendito fruto do povo será" ("Como o diabo gosta", Belchior) e "você não sente, não vê mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo que uma nova mudança em breve vai acontecer o que há algum tempo era novo, jovem hoje é antigo e precisamos todos rejuvenescer" ("Velha Roupa Colorida", Belchior). Assim, se é denúncia - deste mundo - e anúncio - do mundo que virá - onde está a sua poesia? Qual papel ele pretende para ela? Ele responde:
“Se você vier me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava de olhos abertos, lhe direi amigo, eu me desesperava […] e eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês” ("A palo seco", Belchior). Enquanto muitos sonhavam de olhos fechados (a título de exemplo, como vimos, Caetano), Belchior propõe sonharmos de olhos abertos, mas de não deixarmos de sonhar! O sonho de olhos fechados é ilusão, mistificação. O sonho de olhos abertos, e aqui que entra a canção de Belchior feito faca expondo todas as entranhas deste mundo para jamais fecharmos os olhos, é aquele realismo utópico, aquela mística encarnada, aquele "delírio com coisas reais".
Muitas coisas sobre Belchior poderíamos dizer e ainda temos muitas músicas dele para o ouvir, não obstante, movido por seu mote "amar e mudar as coisas" ("Alucinação", Belchior), o que certamente me interessa mais, deixo suas palavras como mensagem derradeira:
"Quero desejar, antes do fim,
pra mim e os meus amigos,
muito amor e tudo mais;
que fiquem sempre jovens
e tenham as mãos limpas
e aprendam o delírio com coisas reais" ("Antes do fim", Belchior).
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Eternamente, Belchior. Artigo de Vitor César Zille Noronha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU