13 Setembro 2016
Vincenzo Paglia, arcebispo italiano, designado pelo Papa Francisco para dirigir a Pontifícia Academia para a Vida, publicou um recente livro sobre a morte em que diz que uma vida vivida sem pensar sobre a morte e o ato de morrer não é plenamente humana.
Em meados do mês de agosto, o Papa Francisco criou um megadepartamento para a família, os leigos e a vida, que entre outras coisas absorveu o antigo Pontifício Conselho para a Família. Em teoria, isso significava que então o chefe do Conselho, o arcebispo italiano Vincenzo Paglia, perderia o emprego, porém resultou disso que num breve período o mesmo prelado foi indicado para um novo cargo.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 10-09-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Imagem: Divulgação | Piemme
No mesmo anúncio, Francisco também nomeou Paglia, de 71 anos de idade, para liderar a Pontifícia Academia para a Vida e o Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família.
Pode parecer irônico que em seu primeiro ato público, depois de se tornar a pessoa nomeada para assumir o Pontifício Conselho para a Família, Paglia apresente ao mundo um livro dedicado ao tema da morte. Escrever isso a seu respeito é algo que não deve surpreender a ninguém, uma vez que o prelado insiste que uma vida vivida sem enfrentar a realidade da morte é “desumano”.
“Hoje, normalmente se morre ou sozinho ou na companhia dos médicos e técnicos, e isso significa que perdemos algo precioso”, disse Paglia. “É como se estivéssemos perdendo a dimensão humana da morte, o que significa que estamos perdendo a dimensão humana da vida”.
As reflexões de Paglia sobre a morte são apresentadas em um livro chamado “Sorella Morte: Dignity in Living and Dying” (publicado em italiano pela Piemme). A referência do título à “irmã morte “invoca o termo célebre de São Francisco de Assis. E o livro reflete a experiência de décadas de Paglia na Comunidade de Sant’Egidio, movimento católico conhecido por seu trabalho social com os idosos e portadores do vírus da Aids.
Esse histórico na Sant’Egidio também significa que Paglia é um homem de diálogo, alguém que se vê como um construtor de pontes em vez de um guerreiro cultural, o que nem sempre foi a reputação da Academia que ele agora lidera. Ao longo dos anos, a Academia para a Vida foi vista como a principal linha de frente do Vaticano para os líderes mais francos do movimento pró-vida.
Paglia, no entanto, diz que dialogar nada tem a ver com relativizar; ele não titubeia em dizer que a humanidade, hoje, está em uma “batalha epocal” para defender o que chama de o “tríptico” do matrimônio, da família e da sacralidade da vida.
Paglia falou com o sítio Crux sobre o livro em sua nova sala na Pontifícia Academia para a Vida no dia 5 de setembro, e também sobre a sua nova função de agora em diante.
Confira a entrevista.
Como surgiu a ideia de um livro sobre a morte?
Ele nasceu como um pequeno texto para responder a situações sociais que resultam de uma maneira de pensar que, em minha opinião, está errada. Acredito que a criação de uma legislação sobre assuntos tão íntimos sem pensar o suficiente provoca enormes danos. Legislar sem um contexto cultural adequado é criar uma legislação cega, que não consegue enxergar a realidade.
O que espero com este livro é desenvolver uma cultura sobre as realidades da vida, uma cultura multifacetada, complexa, entre todos os componentes da sociedade. Há uma necessidade urgente de um debate amplo sobre estas questões, para se chegar a conclusões compartilhadas e para estar em condição de criar uma legislação que reflita verdadeiramente o bem-comum.
Qual a influência da Sant’Egidio no livro?
O livro surgiu de uma reflexão que fiz sobre o tema da morte e da passagem à morte há cerca de um ano, com meus amigos na Comunidade de Sant’Egidio, comunidade com a qual mantenho uma amizade muito antiga. Tudo começou pensando sobre a nossa experiência com os jovens que morriam de Aids, e também com a nossa experiência antiga de estar com as pessoas idosas. Isso me levou a um modo de pensar sobre as coisas ainda mais profundo e amplo, que eventualmente acabou resultando nestas 250 páginas.
A experiência na Sant’Egidio, baseada na ideia de tentar ajudar os mais fracos, os mais pobres, automaticamente significou um contato com doenças, com pessoas em sofrimento. Víamos o quanto as pessoas idosas eram abandonadas, víamos a agonia de pessoas lutando contra as doenças. Por esse motivo, o encontro com os doentes vem sendo uma característica da vida da Sant’Egidio há um bom tempo, com pessoas que passam suas vidas na fraqueza.
Isso me ajudou a dar um sentido ao que significa viver e morrer de forma digna (...) não abandonada, não esquecida, não excluída.
O que há de errado com a forma como abordamos a morte hoje?
Uma sociedade que descarta os fracos, que descarta qualquer um que não pode produzir algo, é uma sociedade cruel. O critério parece ser a produção, e os únicos destinados a uma vida digna, de respeito, são os que produzem. É por isso que vemos um número tão surpreendente de idosos abandonados. Nós [da Comunidade Sant’Egidio] percebemos isto anos atrás, e nos sentimos responsáveis por fazer alguma coisa.
Em 1992, na Sant’Egidio houve a assinatura do pacto que pôs fim à guerra em Moçambique. Depois de anos, com mais de um milhão de pessoas mortas, e um milhão e meio de refugiados, teve finalmente a paz. Fomos a Moçambique, e rapidamente percebemos que havia uma outra guerra acontecendo: a morte generalizada de jovens em decorrência do vírus da Aids. Era uma tragédia inacreditável, porque eles estavam morrendo às centenas. Consequentemente, nós elaboramos um projeto chamado DREAM para combater a doença.
Estávamos escandalizados com a frequência com que as pessoas estavam morrendo, por terem sido abandonadas e por não haver ninguém para cuidar delas. Começamos com o costume – e eu estava pessoalmente envolvido nisso – de ir ao hospital anualmente em 31 de dezembro para celebrar o Ano Novo com aquelas pessoas à beira da morte, sabendo que para muitas delas aquilo poderia ser o último Ano Novo que veriam. Essas pessoas sabiam disso. Elas ficavam consoladas com a presença de amigos, em vez de estarem sozinhas.
Parece que este é um tema bastante pessoal para o senhor.
Sim, e muito. Não faço ideia de quantas pessoas exatamente eu acompanhei na última parte de suas vidas, até o momento em que elas morreram, mas estou falando aqui de algumas dúzias. Se falarmos da Comunidade de Sant’Egidio em geral, serão milhares e milhares. Portanto, este é um tema que reflete uma experiência muito pessoal para mim, uma experiência que tenho de dizer que achei difícil e, no entanto, incrivelmente satisfatória. Ela possui uma profundidade humana e espiritual que a torna absolutamente única.
Para mim, não há nela nada de abstrato. Eu já inclusive estive com pessoas enquanto elas esperavam pela morte, pessoas que foram meus professores em certo momento, ou amigos, bem como pessoas que eu não conhecia na realidade. Frequentemente eu fazia isso em minhas instalações onde morei como pároco. Todas foram experiências que me trouxeram uma sabedoria tremenda (...) De forma alguma foram banais. Às vezes, segurávamos a mão dessas pessoas. Às vezes, falávamos sem saber se elas podiam realmente nos entender. Apenas tentávamos encontrar as palavras certas e esperávamos que, em um certo nível, de um certo modo, elas tivessem algum efeito.
O senhor acha que a morte tem algo a nos ensinar?
Eu na verdade a chamo de uma “cátedra”, uma disciplina de ensino.
Sei que pode parecer um tanto estranho que este livro esteja saindo bem no momento em que assumo essa nova responsabilidade na Pontifícia Academia para a Vida. A coincidência entre ir para a Academia para a Vida e publicar um livro sobre a morte é estranha, muito embora a obra obviamente tenha sido finalizada bem antes. Visto de um outro ângulo, entretanto, é perfeita. Por muitas vezes pensei, disse e escrevi que não se pode simplesmente viver sem pensar sobre a morte, sem falar sobre ela, sem, de alguma maneira, buscar compreendê-la, mesmo se no final ela é sempre um mistério. Hoje, vivemos num mundo em que tentamos ocultar a morte.
No livro, o senhor chama de morte a “nova pornografia”.
Exatamente. Não é que a morte esteja ocultada: nós fingimos que ela não está aí e tentamos não falar a respeito, começando desde a infância. Achamos que os nossos filhos precisam ser poupados de qualquer contato com a morte.
O senhor escreveu que, uma vez ou outra, os filhos e a família inteira reuniam-se ao redor do leito de morte de um ente querido, partilhando aqueles momentos finais, mas que acabamos perdendo esta tradição.
Hoje, normalmente ou a pessoa morre sozinha ou na companhia dos médicos e técnicos, e isso significa que perdemos algo precioso. É como se estivéssemos perdendo a dimensão humana da morte, o que significa que estamos perdendo a dimensão humana da vida.
Voltando à sua nomeação para a Academia para a Vida e para o Instituto João Paulo II. Isto tudo foi planejado com antecedência, ou foi também uma surpresa?
Foi uma enorme surpresa. O convite para ambos os casos veio diretamente do papa, que quer abordar os temas da família, do matrimônio e da vida de um modo que seja culturalmente responsável e eficaz. O papa está bem preocupado com que simplesmente combinar estas coisas via conceitos não seja o suficiente (...) Ele quer que o nosso pensamento, a nossa cultura, ajude todos a viverem vidas melhores. Nesse sentido, eu compreendi o que ele quer, e imediatamente disse ‘sim’ ao papa. É indispensável que uma reflexão teológica e científica ajude as famílias, as mulheres e os homens de hoje a viver o evangelho e o valor da família com efetividade.
Precisamos estar em diálogo com a cultura e com as ciências, em todos as frentes.
O senhor sabe da existência de algumas pessoas que consideram o papel da Academia para a Vida como o de lutar nas guerras culturais. O senhor acha importante abrir o diálogo também dentro da própria Academia?
Sim, absolutamente, sem dúvida alguma. A minha estratégia é tentar ajudar todo mundo a travar uma batalha que considero epocal, e não podemos perder tempo discutindo entre nós mesmos. Algo muito maior está em jogo. Pela primeira vez na história o tríptico do matrimônio, da família e da vida, que é um tríptico unificado, está sendo dilacerado. Todo mundo hoje faz as coisas como bem entendem. Temos de restaurar uma visão cristã e humanista destas coisas, a fim de ter o tríptico de volta. É por isso que precisamos dialogar, urgentemente.
Precisamos ler em profundidade, e temos de reescrever para este tempo, o Livro de Gênesis. A grande direção dada neste livro vem quando o Criador confia duas grandes responsabilidades à aliança entre homens e mulheres: o cuidado da criação e a história das gerações futuras. Hoje, temos de tornar presentes novamente estas ideias, estas responsabilidades às pessoas. Gênesis ilustra os riscos da pessoa humana que tenta se pôr no lugar de Deus (...) Esta é a moral da história, não da maçã! O pecado original é o homem querer construir tudo segundo a sua própria medida.
Temos também de enfrentar um mundo que, pela primeira vez na história, tem a capacidade de destruir-se com armas nucleares, com desastres ecológicos e com desastres antropológicos. A esta altura, percebemos que uma exploração e destruição exagerada do meio ambiente é perigosa. Ainda não percebemos que um dano antropológico demasiado grande cria os mesmos riscos.
Basicamente o que precisamos hoje é de uma nova Arca de Noé (...) e esta é a minha estratégia.
O senhor falou de uma batalha epocal, mas geralmente a vossa pessoa é vista não como um alguém que se envolve em batalhas culturais, e sim como alguém de diálogo e construtor de pontes. Como lutar na batalha que o senhor descreve, porém de uma maneira dialógica?
Usei o exemplo dos pilares da nossa identidade, que são fundamentais, mas que estão projetados para apoiar algo mais, sem o qual a construção não é completa. No topo destes pilares, temos de construir pontes para alcançar outros, percebendo que nem você nem o outro indivíduo a que está estendendo sua mão possuem a verdade plena e completa, de uma vez por todas. A verdade é apenas uma ideia, mas é também uma amizade, é também diálogo.
Quero combater a ignorância e o obscurantismo, mas também promover o encontro. Quanto mais conversamos uns com os outros, tanto mais as nossas palavras se libertam das amarras do preconceito e se tornam ferramentas para a amizade.
Lembro que dialogar não é relativizar, de forma alguma. Dialogar tem a ver com encontrar uma identidade capaz do encontro. Francisco de Assis foi capaz de dialogar não só com o Islã, mas também com os lobos e pássaros, com a lua e mesmo com a própria morte, porque ele estava profundamente enraizado na fé cristã.
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Bispo nomeado por Francisco para a “Academia para a Vida” medita sobre a morte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU